de revoada

16.01.2021 – Rosa em Mutação

 

“As though a rose should shut and be a bud again.”
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaJohn Keats   “The Eve of St. Agnes”

 

“Como se uma rosa se fechasse e voltasse a ser um botão.”

 

 

Rosaura Eichenberg

12.01.2021 – A statement by Mark Twain

 

“It doesn’t matter what the press says

It doesn’t matter what the politicians or the mobs say

It doesn’t matter if the whole country decides that

Something wrong is something right.

 

Republics are founded on one principle above all else

The requirement that we stand up for what we believe in

No matter the odds and consequences.

 

When the mob and the press and the whole world tell you to move

 Your job is to plant yourself like a tree

Beside the river of truth and tell the whole world:

                         ‘No, you move.’ “

 

Mark Twain

 

Não importa o que diz a imprensa

Não importa o que dizem os políticos ou a turba

Não importa se todo o país decidir que

Algo errado é algo correto.

 

As repúblicas são fundadas num único princípio acima de tudo

O requisito de defendermos aquilo em que acreditamos

Sejam quais forem os reveses ou as consequências.

 

Quando a turba, a imprensa e todo o mundo mandarem você se mover

O que deve fazer é plantar-se como uma árvore

Ao lado do rio da verdade e dizer ao mundo inteiro:

                        “Não, mova-se você.”

 

 

Rosaura Eichenberg

11.01.2021 – Robert Frost on Winter

 

The woods are lovely, dark and deep,

But I have promises to keep,

And miles to go before I sleep,

And miles to go before I sleep.

Robert Frost

 

As matas são belas, escuras e profundas,

Mas tenho promessas a cumprir,

E léguas a trilhar antes de dormir,

E léguas a trilhar antes de dormir.

 

 

Rosaura Eichenberg

08.01.2021 – Calendário do Livro das Horas do Duque de Berry

 

Na primeira metade do século XV, a Europa Ocidental estava no final da Guerra dos Cem Anos, uma série de conflitos entre a França e a Inglaterra para a conquista do poderoso reino da França. A guerra e a praga estavam por toda parte. Tumulto, dor no coração e desespero eram o esteio para muitos homens medievais.

Ninguém saiu ileso.

Durante esses tempos tumultuados, faz-se mister uma fé sólida e a busca de alguma forma de esperança para a sobrevivência cotidiana. Assim como o fluxo da noite e do dia, a única constante nesses tempos desafiadores é o próprio tempo. Por isso, um calendário nos ajuda a seguir adiante e esperar tanto uma regularidade como algo melhor – o futuro.

 

Na arte ocidental, um dos mais refinados calendários está no início do manuscrito de devoção do século XV –  ”As Horas Muito Ricas do Duque de Berry”.

 

Inverno     –     Dezembro

 

Primavera    –    Março

 

Verão   –    Junho

 

Outono  –    Setembro

 

 

Rosaura Eichenberg

04.01.2021 – Vírus Retóricos: Hate Speech, Teoria da Conspiração, Fake News

 

Em janeiro de 2015, um ataque terrorista islâmico matou 12 jornalistas do hebdomadário francês Charlie Hebdo, um periódico esquerdista com sátiras virulentas contra seus alvos preferidos – governos e ideologia de direita, com especial ênfase para a religião católica e o Papa. Em 2005, quando um cartum dinamarquês sobre Maomé atraiu a fúria islâmica contra seu autor, o Charlie Hebdo tinha se solidarizado com o cartunista e publicado o cartum. Por essa razão, os muçulmanos juraram matar os jornalistas franceses, ameaça cumprida em 2015.

O massacre abalou o mundo ocidental. Muitos chefes de estado participaram de marchas em Paris contra o terrorismo, e nas manifestações que se seguiram, os cartazes repetiam “Je suis Charlie”. Passadas algumas semanas, observei uma mudança nas discussões que lia entrecortadas nas agências de notícias. Em vez de refletirem sobre o terrorismo e as doze vidas ceifadas, a maioria parecia querer determinar os limites da crítica, se era realmente possível ofender alguém sem qualquer freio de moderação. E todos se perdiam nos detalhes dessa argumentação, esquecendo os doze jornalistas que tinham perdido a vida.

Lembrei as aulas de retórica e pensei – se alguém se descobre sem argumentos numa discussão, o truque mais fácil é mudar de assunto. Parece ter sido o que fizeram. Minha amiga americana ponderava que até o Papa tinha dito que não se podia ofender ninguém com tanta virulência. Tentando dirigir a discussão para a realidade, respondi que os cartunistas eram de esquerda, e o que já tinham publicado contra Jesus Cristo e a Virgem Maria era muito pior que seus cartuns sobre Maomé. E aí perguntei, qual foi o cristão que pegou um fuzil para matar os jornalistas que ofenderam Jesus Cristo e a Virgem Maria?

Essa reflexão já antiga me levou a examinar truques retóricos que vêm se repetindo para evitar qualquer debate sobre a realidade dos fatos. São formas de desviar a atenção da realidade e, para ser bem franca, constituem retórica para imbecis. O assustador é que esse discurso se infiltra na linguagem como um vírus, e os desavisados se deixam enredar nas teias armadas. Não se discute com imbecil – corta-se a linha da conversa e trata-se de encontrar novo fio da meada.

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Ao ver um vídeo com um trecho de um discurso de Hillary Clinton na campanha presidencial de 2016, senti um arrepio de pavor. Ela investia contra os que apoiavam o candidato Donald Trump, dizendo que eram racistas, sexistas, homofóbicos, nazistas, fascistas, a lista era interminável. Rotulou esses seres desprezíveis de deploráveis, afirmando que seria necessário colocá-los num cesto por serem irrecuperáveis. De olhos arregalados e o coração na mão, eu só troquei mentalmente “os apoiadores de Trump” pela palavra “judeus” e entendi quem estava falando. Seguindo a linha do genocida do III Reich, emprega-se hoje a retórica do ódio – Hate Speech.  Assim como Hitler desumanizou os judeus retirando-lhes o direito à própria vida, essa retórica demoniza qualquer adversário roubando-lhe o direito de se expressar dada a sua natureza demoníaca. De quebra, tal vírus retórico mascara o ódio sem freios de quem o emprega.

 

Em 2014, antes da eleição presidencial brasileira, o avião que transportava o candidato que tinha sido governador de Pernambuco caiu depois de decolar do aeroporto de Santos. Numa reunião de colegas do curso de alemão, comentávamos o acidente que abalou o país. Eu questionava o que poderia ter acontecido, achando escassas as explicações apresentadas. De repente, a colega ao meu lado me interrompeu ríspida afirmando que minhas dúvidas eram Teoria da Conspiração.  Atônita diante da dureza com que ela tinha falado, respondi que não tinha conhecimento de conspiração nenhuma, queria apenas saber por que a caixa preta do avião não estava funcionando na hora do acidente. Foi a primeira vez que me deparei com esse vírus retórico – alegar teoria da conspiração visa a acabar com qualquer discussão obrigando os desavisados a apresentar provas do que eles nem sabem o que é, enquanto seus oponentes escamoteiam a culpa em cartório. Por sinal, o acidente nunca foi explicado por causa da falha da caixa preta.

 

Não tenho certeza, mas acho que foi em 2016, antes da eleição americana, que comecei a encontrar na internet a expressão Fake News. Faço uma ligação entre o emprego desse vírus retórico e um escândalo que então estourou – era um caso de tráfico sexual de crianças, que ficou conhecido como Pizzagate por ter como centro de operações uma pizzaria. Um escândalo ligado a pessoas da campanha de Hillary Clinton. Pode ser que me engane, pois não navego na internet com destreza e grande frequência, mas de uma coisa tenho certeza: o efeito dessa expressão Fake News é altamente prejudicial. Esse vírus retórico consegue minar a credibilidade de qualquer news. Com isso, o jornalismo tem seus dias contados, e o único resultado possível é a instituição do Ministério da Verdade do romance de George Orwell.

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A melhor maneira de lutar contra um vírus é impedir que se introduza no organismo sadio. Esses três vírus retóricos mencionados já se tornaram lugar-comum nas discussões atuais, por isso cabe procurar o remédio adequado para neutralizá-los. Até agora o que parece mais eficaz é não se deixar enredar por eles, conduzir a discussão para fora do alcance de suas garras. E vigiar para que aqueles que os empregam saibam que não estão lidando com idiotas.  

 

 

Rosaura Eichenberg

16.12.2020 – Tu Pisavas Nos Astros Distraída

 

Hoje muitos falam em refundar a República no Brasil. Outros dizem que o país tem de se tornar verdadeiramente independente. Talvez seja sinal de minha grande ignorância, mas me parece que o Brasil tem é de ser descoberto pelos brasileiros. A minha impressão é que não fazemos ideia da nossa terra.

Entre várias razões, cabe apontar os estudiosos da realidade brasileira que usam óculos fabricados em Harvard, na Sorbonne, em Cambridge, em Oxford. As lentes distorcem irremediavelmente as imagens do Brasil e só conseguem criar uma enxurrada de estereótipos em que poucos brasileiros se reconhecem.

Não está mais que na hora de o país do futuro voltar os olhos para o presente ou para o passado e começar a se descobrir? Tom Jobim já avisou que o Brasil não é para principiantes. A tarefa será bem complicada.

A nossa terra é peculiar. Único país na América do Sul que fala português. Único país na América do Sul que tem a cultura marcada pelos negros, e não pelos índios. Diversidade na flora, na fauna, no povo. Riquezas naturais em abundância, mas pobreza e miséria em regiões assoladas por estruturas sociais caducas.

Um olhar claro e honesto para nós mesmos encontrará obstáculos. Muitas vezes vamos até querer desviar os olhos do que percebemos. Apesar de o brasileiro já ter sido chamado de cordial, o nível de violência assusta. Mas é preciso enfrentar os fantasmas, afastar as névoas para ter uma visão da realidade. Minha intuição é que também se vai descobrir beleza que jamais sonhamos. Volta e meia me ocorre no vaivém da vida o verso do Chão de Estrelas:

Tu pisavas nos astros distraída

 

 

Rosaura Eichenberg

16.12.2020 – HIGH NOON

 

Rever um clássico do faroeste, High Noon, é um prazer e tanto pelas qualidades artísticas do filme, além de nos levar a refletir sobre os americanos tão bem retratados nos bangue-bangues que encantaram adolescentes e jovens de todas as épocas.  

O xerife de uma cidadezinha de New Mexico se casa e renuncia ao seu cargo. A noiva é quaker, e os quakers, como se sabe, são contra armas e guerra. Os recém-casados devem sair da cidade para iniciar nova vida em outras paragens.

Eles se casam de manhã, o novo xerife só chegará no dia seguinte, e de repente surge a notícia de que um bandido antigo, preso pelo xerife, tinha saído da prisão e chegaria no trem do meio-dia em busca de vingança. 

Apesar dos pedidos de todos na cidade e sobretudo da noiva, o xerife se recusa a deixar a cidadezinha à mercê do bandido. Passa o filme inteiro tentando reunir homens para lutar ao seu lado. Ninguém quer saber de tiroteios, todos abandonam o xerife. Apenas dois se oferecem como voluntários – um velho meio bêbado com problema de visão e um menino de 16 anos, voluntários inaceitáveis. Na cena final, é o xerife sozinho lutando contra os quatro bandidos – quem o ajuda é a noiva quaker que mata um dos quatro. 

 

Quem faz o xerife é Gary Cooper. John Wayne recusou o papel, porque não concordava com a história do filme, que considerava antiamericana. Essa foi a polêmica do filme na época – o roteirista tinha sido comunista e ainda era de esquerda. Entendo a polêmica – as velhas instituições americanas, a família e a religião são criticadas por não apoiarem o xerife. No final do filme, antes de sair da cidadezinha com a noiva, o xerife atira sua estrela no chão e a espezinha, o que representava uma afronta para John Wayne.

À luz dessa polêmica da época – o filme é de 1952 – o exame do roteiro sem o impacto emocional das cenas revela certamente uma denúncia da sociedade americana e da figura do xerife que estabelece a lei e a ordem nos filmes de faroeste. O juiz sai da cidade, os negociantes que detêm algum poder preferem os desmandos dos bandidos.

Numa das cenas, dentro da igreja, o pastor e os fiéis discutem se devem formar um grupo para ajudar o xerife. Não adianta uma mulher dizer que com o bandido solto não seria mais possível caminhar pela cidadezinha em paz. Todos declaram que, apesar de ter sido o melhor xerife e estabelecido a ordem no lugar, ele deve ir embora sem tiroteios – todos já estavam acostumados a conviver com bandidos.

Até mesmo o antigo xerife, bem mais velho e amigo do protagonista, aconselha que ele não enfrente os bandidos. O seu desalento provém de uma falta de objetivo, isto é, para que colocar vidas em risco? Para que o empenho de todos os xerifes em estabelecer a ordem no faroeste? Ele responde para si mesmo – para nada. Um aparte. Cada povo tem o seu éthos, e as grandes dúvidas existenciais, o absurdo da vida, não batem com o modo de ser americano. Mesmo depois de terríveis golpes, eles estão sempre prontos a levantar a cabeça e enfrentar a realidade.

O roteiro parece ter sido escrito para acabar com a sociedade americana que se afirmava nos filmes de faroeste pela lei e ordem estabelecidas pelo xerife. Só que uma obra de arte, quando bem feita, adquire vida própria e pode vir a expressar algo bem diferente do que pretendia o artista que a criou.

A cena da estrela de xerife espezinhada, quase todos negando ajuda, tudo isso tem um impacto pequeno diante da recusa do protagonista a deixar a cidade desprotegida. Essa atitude é, na verdade, o filme inteiro, sua essência. Em oposição ao que pensava John Wayne, o filme é muito americano – retrata alguém que insiste em fazer o que lhe dita a consciência.

Se a intenção do roteirista era denunciar a corrupção da sociedade e valores americanos, o que ele acabou fazendo foi louvar o espírito americano que não abre mão de seus valores mais caros – individualidade e liberdade. Um hino de louvor ao xerife.

 

Em tempo, qualquer semelhança com a realidade contemporânea é mera coincidência.

 

 

Rosaura Eichenberg

12.12.2020 – Grande Sertão: Veredas

 

“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”

Guimarães Rosa

 

 

Rosaura Eichenberg

08.12.2020 – Cleber Teixeira e o Jardim Botânico

 

Cleber Teixeira era do Rio de Janeiro, e foi ele quem me apresentou sua cidade quando vim de muda para cá em 1975. O lugar mais lindo, dizia ele, é o Jardim Botânico. Um segredo que não fazia questão de guardar, o Jardim Botânico morava em seu coração.

Eu o via atrapalhado quando falava de seus passeios com a filha Gabriela, porque a menina preferia brincar no Parque Tivoli a trilhar os caminhos do jardim. Mas ele acabava levando a Gabriela de vez em quando ao Jardim Botânico, e muitas vezes o acompanhei em seus passeios com a mulher e os filhos pequenos, até mesmo para comemorar o nascimento do João debaixo da grande sumaúma da entrada.

Com os anos passando, o Jardim Botânico seguiu sua vida com altos e baixos, como sói acontecer. Houve períodos de muito abandono, e chuvas e enchentes do Rio dos Macacos multiplicavam os sinais de nenhum cuidado. Ainda lembro que, em tempos muito ruins, os soldados do exército fizeram mutirão para limpar o jardim. Outras épocas experimentaram assaltos e falta de segurança, o que resultou, depois de grandes discussões, em grades ao redor do arboreto.

No início dos anos 90, realizou-se no Rio de Janeiro a conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, conhecida como ECO-92, e o Jardim Botânico teve de se engalanar para os encontros. Houve então uma série de convênios pontuais com a iniciativa privada para restaurar e recuperar certos tesouros históricos do jardim. Foi assim que se tirou da ruína o Museu – Sítio Arqueológico dos Pilões, endireitaram-se as armações de ferro das casas envidraçadas com suas exposições de plantas carnívoras e outros espécimens, arrumou-se o roseiral em círculos. A saga das estátuas de Narciso e Eco com o escritor Antonio Callado fez história ao lado das musas do chafariz.

Mais tarde comecei a praticar taichi no Canteiro da Restinga e acompanhei de perto todas essas vicissitudes, a lembrança do Cleber sempre iluminando meus passos pelo jardim. Num certo passeio antigo, um temporal estourou bem em cima de nós – eu estava com o Cleber, a Gabriela e uma amiga da Gabriela. Buscamos refúgio num dos mirantes laterais, e vi o Cleber acalmando a filha que estava com medo da chuva, mas também saboreando a beleza tão escondida no estrondo dos trovões e no aguaceiro que caía sem dó. Quando um lugar penetra na alma de uma pessoa, todo momento é motivo para descobrir mais algum detalhe, nova preciosidade, mesmo no meio das intempéries.

Hoje essa recordação vem me consolar, porque meu coração está chorando pelo Jardim Botânico. Ameaçam atacar mais uma vez o lugar mais lindo do Rio de Janeiro. Planejam demolir o Museu do Meio Ambiente e construir um hotel butique. Nem sei o que é isso, e imagino que o Cleber tampouco saberia. Há que aguardar, pois a esperança de que deixem o Jardim Botânico em paz é grande.

Minha mãe dizia para nós pequenos, quando um se machucava: vai passar. Tudo passa, mas a beleza do Jardim Botânico que vislumbrei pelas frestas do coração de meu amigo Cleber não passará. O Jardim Botânico foi inaugurado no dia de Santo Antônio — o grande santo de Lisboa haverá de proteger o nosso jardim.

 

Rosaura Eichenberg

04.12.2020 – Sertão

 

“Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.”

Grande Sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

 

 

Equipe Ibis

Rosaura Eichenberg

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