de revoada

06.04.2019 – Sobre “Instinto de Nacionalidade” de Machado de Assis

 

 

Em 1873, um jovem Machado de Assis de 34 anos escreveu um ensaio crítico sobre a literatura brasileira então nos seus primórdios. Deu ao seu estudo o nome de “Instinto de Nacionalidade”, que definiu como “o geral desejo de criar uma literatura mais independente”.

E advertia: “Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.”

Na literatura de seu tempo, já vislumbrava uma tendência a essa desejada independência na escolha de temas próprios da terra, o que ele chama cor local. Analisava com muita propriedade o tema do índio que era então explorado nas obras de Gonçalves Dias, José de Alencar e outros. Afirmava:

“É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos de nossa personalidade literária.”

Mas ponderava que essa constatação não exclui os índios das páginas literárias, por serem um tema capaz de inspirar os escritores. E continuava lembrando que a paisagem exuberante das terras brasileiras não só estimula como desafia o estro de nossos poetas e prosadores.

Alertava, entretanto, que essa primeira fase de explorar a cor local devia ser ultrapassada, e propunha a questão da brasilidade em termos que ainda não foram superados nem mesmo neste nosso século XXI. Dizia:

“O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

E explicitava o que estava querendo dizer:

“Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial.”

Machado de Assis vai fundo no que constitui a cultura de um grupo humano. Ele sabe que os aspectos exteriores são apenas faceta vistosa, muitas vezes incapazes de revelar a trama sutil das vivências que urdem o tecido do convívio humano.  Por isso diz que a personalidade literária brasileira não será encontrada na beleza variegada de nossas paisagens, no caudaloso Amazonas nem nos córregos que enfeitam as várzeas, nem tampouco nos costumes pitorescos de cada região.

Apesar de os brasileiros terem uma forte inclinação para a anarquia do carnaval, a brasilidade não precisa vestir fantasias para se realizar. Deve ser antes buscada no sentimento interior dos que habitam esta terra. Como diz Machado de Assis:

“… e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e o Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.”

Isto é, os brasileiros podemos nos fantasiar de dançarinos de tarantela, messalinas, super-heróis, arlequins e pierrôs que a brasilidade íntima acabará se revelando entre os panos e véus.

Já se passou mais de século desde a publicação do ensaio machadiano, e muitas obras de nossa literatura percorreram o caminho da busca de nossa brasilidade intrínseca, inclusive a própria obra de Machado de Assis. Duas realizações sobressaem nessa procura, dois grandes escritores que se debruçaram sobre o sertão brasileiro, Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa.

“Os Sertões” relata a luta que se desenrolou em Canudos, região norte da Bahia, no final do século XIX, entre as forças governamentais e os rebeldes aglomerados em torno de Antonio Conselheiro.  O livro se divide em três partes: a terra, o homem e a luta. Na primeira, Euclides da Cunha está longe de criar apenas a cor local com a descrição da catinga nordestina. A sua apresentação geográfica é dramática, a natureza revelando o embate das grandes forças em ação na região. Ao falar do homem na segunda parte, Euclides recorre às teorias correntes no seu tempo para tentar caracterizar os seres humanos que habitam o nordeste brasileiro. Emula o cientista que se debruça sobre seu objeto de estudo com lupas especiais, sem se preocupar em verificar a precisão das lentes. E ao descrever a luta em Canudos na terceira parte, Euclides parte ao encontro de uma realidade que até então desconhecia. A tarefa que se propusera realizar era reportar o conflito que se desenrolava na região, mas o repórter se viu às voltas com a descrição de um país que era o seu, mas que lhe era estranho. Euclides da Cunha vinha tornar visível o hiato entre os brasileiros e eles próprios, focalizando a distância concreta entre o Brasil litorâneo e o Brasil dos sertões. Mais uma descoberta do Brasil, numa lista que não parece ter fim.

João Guimarães Rosa é outro desbravador da realidade brasileira. Em sua obra, vamos encontrar de novo as lacunas concretas de nossa cultura fragmentada, e a busca de conhecer um Brasil envolto num sertão que adquire contornos míticos. Ele vivencia esse confronto com o país desconhecido no âmbito da linguagem. No seu livro de estreia, Sagarana, ainda coloca entre aspas as expressões e frases idiomáticas com que entrava em contato na paisagem mineira. Mas nos livros seguintes, a linguagem já se metamorfoseia para tentar revelar a fusão de idiomas diversos, uma multiplicidade barroca abrindo-se em tudo quanto é direção. A leitura de João Guimarães Rosa proporciona encontros e desencontros brasileiros, estonteante a diversidade das veredas a serem trilhadas pelo grande sertão.

E que dizer do próprio Machado de Assis? Ele ajustou suas lentes sobre o ambiente urbano, seguindo uma linha já experimentada por Manuel Antônio de Almeida em seu Memórias de um Sargento de Milícias. E coerente com o que escreveu em seu ensaio de 1873, não se deteve no superficial, nem deixou que os clichês e a cor local embaçassem sua visão. Procurou transpor o hiato entre o brasileiro que vive uma realidade e o brasileiro que se vê vivendo essa realidade com toda a sutileza de sua ironia. Num de seus romances, Quincas Borba, caricaturou a Belle Époque no Rio de Janeiro, os brasileiros macaqueando os costumes, os trejeitos, o luxo, as modas de Paris. Mas esses quadros gerais são apenas contrapontos aos indivíduos que têm sua trajetória acidentada traçada em busca de algum ou nenhum sentido para suas vidas. De suas histórias relatadas com muita ironia é que tende a brotar o encontro com o brasileiro.

O interessante é observar a reação dos leitores aos romances de Machado de Assis. A maioria dos brasileiros trata Machado como se fosse bicho raro, alguma coisa que não conseguem compreender muito bem. Declaram que ele não falou dos brasileiros, mas escreveu histórias universais. Pasteurizam Machado de Assis e sentem-se aliviados por serem capazes de guardar o incômodo em gavetas emperradas. Os leitores ainda procuram nas letras a cor local, os aspectos exteriores mais fáceis de serem assimilados. Preferem ler Jorge Amado que criou vários romances redigidos, com todo o devido respeito, quase que para turistas. E mesmo a ironia de um Lima Barreto, a carnavalização de um Mario de Andrade parecem mais palatáveis por se manterem à tona sem se embrenharem nos caminhos iluminados pela luz oblíqua de Machado de Assis.

A caricatura da Belle Époque no Rio de Janeiro traçada por Machado de Assis talvez nos conduza a uma possível compreensão dessa incapacidade de os brasileiros saberem de si mesmos, de irem além dos aspectos exteriores. Com as honrosas e múltiplas exceções – por exemplo, o estudo de Gilberto Freyre em Casa Grande Senzala – os brasileiros tendemos a ver o Brasil com lentes estrangeiras adquiridas em Paris, nos Estados Unidos, na Europa, nos grandes centros culturais do Ocidente. Essa visão de fora trai a realidade, e por isso recuamos assustados quando um Euclides da Cunha ou um João Guimarães Rosa nos mostra um país desconhecido. Ou quando um Machado de Assis nos convida a acompanhá-lo numa busca de nós mesmos.

A verdade muito amarga é que o alerta do artigo machadiano sobre Instinto de Nacionalidade não perdeu sua validade. Neste século XXI, os brasileiros ainda não sabemos de onde viemos, quem somos, para onde vamos. Ele avisou que nossa independência “não se fará num dia” – ainda tarda o cumprimento de nosso destino.

 

Rosaura Eichenberg

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