de revoada

16.12.2020 – Tu Pisavas Nos Astros Distraída

 

Hoje muitos falam em refundar a República no Brasil. Outros dizem que o país tem de se tornar verdadeiramente independente. Talvez seja sinal de minha grande ignorância, mas me parece que o Brasil tem é de ser descoberto pelos brasileiros. A minha impressão é que não fazemos ideia da nossa terra.

Entre várias razões, cabe apontar os estudiosos da realidade brasileira que usam óculos fabricados em Harvard, na Sorbonne, em Cambridge, em Oxford. As lentes distorcem irremediavelmente as imagens do Brasil e só conseguem criar uma enxurrada de estereótipos em que poucos brasileiros se reconhecem.

Não está mais que na hora de o país do futuro voltar os olhos para o presente ou para o passado e começar a se descobrir? Tom Jobim já avisou que o Brasil não é para principiantes. A tarefa será bem complicada.

A nossa terra é peculiar. Único país na América do Sul que fala português. Único país na América do Sul que tem a cultura marcada pelos negros, e não pelos índios. Diversidade na flora, na fauna, no povo. Riquezas naturais em abundância, mas pobreza e miséria em regiões assoladas por estruturas sociais caducas.

Um olhar claro e honesto para nós mesmos encontrará obstáculos. Muitas vezes vamos até querer desviar os olhos do que percebemos. Apesar de o brasileiro já ter sido chamado de cordial, o nível de violência assusta. Mas é preciso enfrentar os fantasmas, afastar as névoas para ter uma visão da realidade. Minha intuição é que também se vai descobrir beleza que jamais sonhamos. Volta e meia me ocorre no vaivém da vida o verso do Chão de Estrelas:

Tu pisavas nos astros distraída

 

 

Rosaura Eichenberg

16.12.2020 – HIGH NOON

 

Rever um clássico do faroeste, High Noon, é um prazer e tanto pelas qualidades artísticas do filme, além de nos levar a refletir sobre os americanos tão bem retratados nos bangue-bangues que encantaram adolescentes e jovens de todas as épocas.  

O xerife de uma cidadezinha de New Mexico se casa e renuncia ao seu cargo. A noiva é quaker, e os quakers, como se sabe, são contra armas e guerra. Os recém-casados devem sair da cidade para iniciar nova vida em outras paragens.

Eles se casam de manhã, o novo xerife só chegará no dia seguinte, e de repente surge a notícia de que um bandido antigo, preso pelo xerife, tinha saído da prisão e chegaria no trem do meio-dia em busca de vingança. 

Apesar dos pedidos de todos na cidade e sobretudo da noiva, o xerife se recusa a deixar a cidadezinha à mercê do bandido. Passa o filme inteiro tentando reunir homens para lutar ao seu lado. Ninguém quer saber de tiroteios, todos abandonam o xerife. Apenas dois se oferecem como voluntários – um velho meio bêbado com problema de visão e um menino de 16 anos, voluntários inaceitáveis. Na cena final, é o xerife sozinho lutando contra os quatro bandidos – quem o ajuda é a noiva quaker que mata um dos quatro. 

 

Quem faz o xerife é Gary Cooper. John Wayne recusou o papel, porque não concordava com a história do filme, que considerava antiamericana. Essa foi a polêmica do filme na época – o roteirista tinha sido comunista e ainda era de esquerda. Entendo a polêmica – as velhas instituições americanas, a família e a religião são criticadas por não apoiarem o xerife. No final do filme, antes de sair da cidadezinha com a noiva, o xerife atira sua estrela no chão e a espezinha, o que representava uma afronta para John Wayne.

À luz dessa polêmica da época – o filme é de 1952 – o exame do roteiro sem o impacto emocional das cenas revela certamente uma denúncia da sociedade americana e da figura do xerife que estabelece a lei e a ordem nos filmes de faroeste. O juiz sai da cidade, os negociantes que detêm algum poder preferem os desmandos dos bandidos.

Numa das cenas, dentro da igreja, o pastor e os fiéis discutem se devem formar um grupo para ajudar o xerife. Não adianta uma mulher dizer que com o bandido solto não seria mais possível caminhar pela cidadezinha em paz. Todos declaram que, apesar de ter sido o melhor xerife e estabelecido a ordem no lugar, ele deve ir embora sem tiroteios – todos já estavam acostumados a conviver com bandidos.

Até mesmo o antigo xerife, bem mais velho e amigo do protagonista, aconselha que ele não enfrente os bandidos. O seu desalento provém de uma falta de objetivo, isto é, para que colocar vidas em risco? Para que o empenho de todos os xerifes em estabelecer a ordem no faroeste? Ele responde para si mesmo – para nada. Um aparte. Cada povo tem o seu éthos, e as grandes dúvidas existenciais, o absurdo da vida, não batem com o modo de ser americano. Mesmo depois de terríveis golpes, eles estão sempre prontos a levantar a cabeça e enfrentar a realidade.

O roteiro parece ter sido escrito para acabar com a sociedade americana que se afirmava nos filmes de faroeste pela lei e ordem estabelecidas pelo xerife. Só que uma obra de arte, quando bem feita, adquire vida própria e pode vir a expressar algo bem diferente do que pretendia o artista que a criou.

A cena da estrela de xerife espezinhada, quase todos negando ajuda, tudo isso tem um impacto pequeno diante da recusa do protagonista a deixar a cidade desprotegida. Essa atitude é, na verdade, o filme inteiro, sua essência. Em oposição ao que pensava John Wayne, o filme é muito americano – retrata alguém que insiste em fazer o que lhe dita a consciência.

Se a intenção do roteirista era denunciar a corrupção da sociedade e valores americanos, o que ele acabou fazendo foi louvar o espírito americano que não abre mão de seus valores mais caros – individualidade e liberdade. Um hino de louvor ao xerife.

 

Em tempo, qualquer semelhança com a realidade contemporânea é mera coincidência.

 

 

Rosaura Eichenberg

12.12.2020 – Grande Sertão: Veredas

 

“O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”

Guimarães Rosa

 

 

Rosaura Eichenberg

08.12.2020 – Cleber Teixeira e o Jardim Botânico

 

Cleber Teixeira era do Rio de Janeiro, e foi ele quem me apresentou sua cidade quando vim de muda para cá em 1975. O lugar mais lindo, dizia ele, é o Jardim Botânico. Um segredo que não fazia questão de guardar, o Jardim Botânico morava em seu coração.

Eu o via atrapalhado quando falava de seus passeios com a filha Gabriela, porque a menina preferia brincar no Parque Tivoli a trilhar os caminhos do jardim. Mas ele acabava levando a Gabriela de vez em quando ao Jardim Botânico, e muitas vezes o acompanhei em seus passeios com a mulher e os filhos pequenos, até mesmo para comemorar o nascimento do João debaixo da grande sumaúma da entrada.

Com os anos passando, o Jardim Botânico seguiu sua vida com altos e baixos, como sói acontecer. Houve períodos de muito abandono, e chuvas e enchentes do Rio dos Macacos multiplicavam os sinais de nenhum cuidado. Ainda lembro que, em tempos muito ruins, os soldados do exército fizeram mutirão para limpar o jardim. Outras épocas experimentaram assaltos e falta de segurança, o que resultou, depois de grandes discussões, em grades ao redor do arboreto.

No início dos anos 90, realizou-se no Rio de Janeiro a conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, conhecida como ECO-92, e o Jardim Botânico teve de se engalanar para os encontros. Houve então uma série de convênios pontuais com a iniciativa privada para restaurar e recuperar certos tesouros históricos do jardim. Foi assim que se tirou da ruína o Museu – Sítio Arqueológico dos Pilões, endireitaram-se as armações de ferro das casas envidraçadas com suas exposições de plantas carnívoras e outros espécimens, arrumou-se o roseiral em círculos. A saga das estátuas de Narciso e Eco com o escritor Antonio Callado fez história ao lado das musas do chafariz.

Mais tarde comecei a praticar taichi no Canteiro da Restinga e acompanhei de perto todas essas vicissitudes, a lembrança do Cleber sempre iluminando meus passos pelo jardim. Num certo passeio antigo, um temporal estourou bem em cima de nós – eu estava com o Cleber, a Gabriela e uma amiga da Gabriela. Buscamos refúgio num dos mirantes laterais, e vi o Cleber acalmando a filha que estava com medo da chuva, mas também saboreando a beleza tão escondida no estrondo dos trovões e no aguaceiro que caía sem dó. Quando um lugar penetra na alma de uma pessoa, todo momento é motivo para descobrir mais algum detalhe, nova preciosidade, mesmo no meio das intempéries.

Hoje essa recordação vem me consolar, porque meu coração está chorando pelo Jardim Botânico. Ameaçam atacar mais uma vez o lugar mais lindo do Rio de Janeiro. Planejam demolir o Museu do Meio Ambiente e construir um hotel butique. Nem sei o que é isso, e imagino que o Cleber tampouco saberia. Há que aguardar, pois a esperança de que deixem o Jardim Botânico em paz é grande.

Minha mãe dizia para nós pequenos, quando um se machucava: vai passar. Tudo passa, mas a beleza do Jardim Botânico que vislumbrei pelas frestas do coração de meu amigo Cleber não passará. O Jardim Botânico foi inaugurado no dia de Santo Antônio — o grande santo de Lisboa haverá de proteger o nosso jardim.

 

Rosaura Eichenberg

04.12.2020 – Sertão

 

“Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.”

Grande Sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

 

 

Equipe Ibis

Rosaura Eichenberg

04.12.2020 – Thérèse de Lisieux

 

Aimer c’est tout donner et se donner soi même.” 

                                             Thérèse de Lisieux

                                 Santa Teresinha do Menino Jesus

 

 

Equipe Ibis

Rosaura Eichenberg

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