de revoada

2.09.2019 – Dies Irae

 

Difícil muitas vezes compreender que não é sonho este país em que os bandidos posam de congressistas e membros da Suprema Corte para interrogar o juiz que ousou desmantelar parte do grande sistema de corrupção.  Afinal um estrangeiro com um histórico pouco confiável resolveu publicar conversas roubadas entre o juiz, agora Ministro da Justiça, e os procuradores, e ninguém achou por bem tomar a única medida sensata – expulsar esse pseudojornalista para bem longe, quem sabe para Marte. Não, os jornais e os noticiários antes cuidavam de registrar todas as informações suspeitas na procura de alguma falha mínima que pudesse invalidar o trabalho duro, corajoso e competente do juiz e dos procuradores. Enquanto essa guerra de foice se desenrolava no cenário hostil da principal cidade do país, ficava-se sabendo que o ex-presidente, ora presidiário, mais a ex-presidente fantoche que o sucedeu, tinham roubado do país meio trilhão para financiar o projeto comunista de poder de seu partido. E a lembrança da presidente que não conseguia falar, nem pensar tornava o sonho ou realidade ainda mais nublado.

Se esse capitão for eleito, vai começar a barbárie entre nós. Era o que se escutava, e complicado entender a frase depois que o capitão foi esfaqueado e quase morto.  Que barbárie ainda vai começar quando o país tem mais de 70.000 homicídios por ano? Os vampiros de capa preta que insistem em soltar bandidos presos, em garantir que todos possam roubar e matar em paz, em rasgar a Constituição do país dia sim, outro também – não são os que fazem de tudo para que a barbárie vingue? É a terra do carnaval, dizem – e por isso tem que ser uma terra em que não se pode viver em paz? Um bandido a cada esquina, um perigo sempre à espreita nas cidades e nos campos.  

Novas leis são aprovadas na calada da noite, penalizando os agentes da lei e cuidando para que os bandidos não sejam insultados. Muito mais importante protegê-los do que se preocupar com os pobres coitados que perdem a vida e seus bens, materiais e morais, numa luta desigual com criminosos que ostentam armas de último tipo recém-chegadas do tráfico nas fronteiras. Há muitos anos luta este país por uma vida decente. Foi com grande esforço que conseguiu retirar a presidente espantalho e prender seu comparsa de crimes, mas não dá para negar que apenas começou a trilhar o caminho difícil. Emprego decente para o sustento, menos violência nas cidades, crianças e jovens estudando pra valer nas escolas, uma vida que não seja de faz de conta. Ainda tudo muito enevoado, pairando na capital congressistas imundos e os vampiros da capa preta a berrar que devem ser respeitadas as instituições carcomidas e aos pedaços em que insistem em se apoiar cambaleantes.

 

Todo esse mundo insano ainda poderia ser enfrentado como eventos num país desconhecido de seus próprios habitantes, uma terra que se atribui o epíteto “país do futuro”. Mas o sonho ou realidade também assombra o outro lado das fronteiras e o remoto além-mar.

Atentados terroristas estrondam aqui e ali, mas os responsáveis pelos crimes, ou em nome de quem eles são cometidos, recebem loas por serem os oprimidos do mundo, os que sofrem insultos e afrontas de todo tipo, os que devem ser protegidos. O algoz é incensado, a vítima aniquilada. Um grupo ativista se denomina Antifa – antifascistas, e seus protestos violentos revelam que não passam de uma moderna versão dos camisas pretas de Mussolini. Um menino é morto a pauladas pela mãe porque se recusou a vestir roupas de menina. Em nome de uma religião que se proclama pacífica, doze cartunistas são assassinados, e até o Papa justifica os homicídios. Nas universidades, os estudantes não querem estudar Shakespeare porque o grande dramaturgo os ofende. Um juiz a ser confirmado para a Suprema Corte é acusado de ter atacado sexualmente uma colega da escola há mais de 30 anos – nenhuma prova, nenhuma testemunha, apenas o depoimento da moça que o acusa, algo a ser acreditado porque ela é mulher. Os dedos acusadores apontam para os racistas, os sexistas, os nazistas, os fascistas, mas o ódio de todos os “istas” estampa a cara de quem mantém os dedos em riste. Rostos igualmente deformados pela ira e pelo ódio nas mulheres que lutam pelo direito de matar seus bebês. A insanidade parece ser a regra, e o sonho é tão amedrontador que surge o pensamento mais plausível – o mundo está em guerra. A terceira guerra mundial tão temida e tão negada, ao que parece, já começou.

 

 

O pesadelo do mundo virado de cabeça para baixo acaba por confirmar que o mal tomou conta da Terra. “O diabo na rua no meio do redemoinho…” O nada chacoalha o planeta, e não há como negar que a clara intenção é dar cabo da humanidade.

Em primeiro lugar, o ataque da linha de frente mira a inteligência humana. Já no século XVI, Shakespeare ensinava didaticamente que duas condições se faziam necessárias para haver tirania – um ser deformado que busca o poder pelo poder, e um imenso bando de palermas, patetas, imbecis, estúpidos, retardados mentais, parvos, tolos e por aí vai. Assim é que os senhores poderosos fazem de tudo para emburrecer seus escravos.  Um de seus instrumentos é um enorme arsenal para destruir o sentido das palavras. Inventaram um “pensamento politicamente correto” que prende e elimina muitos vocábulos, tratando de deturpar os que escapam de seu controle. E cuidaram para que o sentido das palavras muitas vezes se invertesse, obrigando o belo a virar feio, o bem a se tornar o mal, o bandido a desempenhar o papel de mocinho.  O ataque é tão insistente e tenaz que a grande maioria nem vai perceber quando acordarem metamorfoseados em insetos. Outro ataque fulminante à inteligência se insinua nos meios de comunicação que a nova tecnologia acelera com os recursos digitais. De livros, artigos, cartas, textos, parágrafos longos, a comunicação passou para os Whatsapps, os Twitters, os Instagrams, os Facebooks, cada vez mais instantânea e menos compreensível. A linguagem humana agoniza aos olhos de todos, e com sua morte definha a literatura, a cultura, a religião, a ciência, a capacidade de pensar. Os próprios cientistas se deixam enredar em campanhas de retórica engana-trouxa como a das mudanças climáticas, afirmando sem pejo que o homem pode controlar o clima da Terra. Se a ação humana está destruindo o clima, não é curto o passo para declarar que está nas mãos dos homens controlá-lo?  Com isso contribuem para a falácia da ecologia em nível global, quando só é possível cuidar do meio ambiente em nível local.  É uma falácia de gibi, diga-se de passagem, porque transforma os seres humanos em Super-homens, Capitães Marvel, Batmans, e inflados Patetas. Muito triste, o ataque à inteligência humana passou a ser uma descomunal Marcha da Estupidez. 

Em segundo lugar, ataca-se a sexualidade humana. Isso faz sentido, quando a intenção é acabar com a humanidade, porque sexo é um impulso vital dos humanos. Criaram para esse fim um apanhado de sandices chamado “ideologia de gênero” – a base desse disparate é a afirmação de que gênero é um construto social. Sexo é em primeiro lugar uma realidade biológica, e a identidade sexual uma construção de vida inteira predominantemente individual. O social desempenha um papel bastante superficial nesse processo, como se fosse um verniz. Apoiados nas condenações sociais de algumas das práticas sexuais, os que se querem senhores do mundo trataram de conseguir meios de impor socialmente identidades sexuais. A maneira mais canalha utilizada foi tentar anular a realidade dos sexos biológicos. Ninguém mais seria homem ou mulher, apenas um X. Eliminada a realidade, a identidade sexual podia ser trocada quantas vezes se quisesse, isto é, sexo se transformou numa quimera. Criou-se uma esquisitice chamada queer, alguém que não se submete à divisão binária masculino/feminino, podendo atuar como homem ou como mulher, ou como nenhum dos dois. Em suma, a sexualidade humana desaparece, todo mundo com direito a ter todas as identidades sexuais, ou melhor, obrigado a não ter nenhuma. A vilania da ideologia de gênero é a sociedade se achar no direito de determinar a sexualidade ou não sexualidade de cada indivíduo, e seu caráter diabólico vem à tona quando procuram impor essa ideologia às crianças e adolescentes, isto é, a seres humanos em formação que vivem a fase talvez mais conturbada da procura individual de sua identidade sexual. Nesse caso, o que se comete é na verdade um crime. Como atestam histórias terríveis de meninos que morreram por se recusarem a cumprir o que manda a ideologia de gênero. E outro intuito nefasto dessa sandice é a destruição da família, pois as figuras de pai, mãe e filhos não são quimeras, estando atadas à realidade do sexo masculino e feminino.

Em terceiro lugar, investe-se pura e simplesmente contra a vida humana. Os senhores do mundo consideram necessário reduzir a população do planeta, e para isso têm vários recursos à mão como guerras, epidemia de drogas, falta de recursos sanitários, promoção da prática do aborto. Hitler mostrou à humanidade que o total desrespeito à vida desemboca no holocausto. Infelizmente esse desrespeito está em vigor entre nós. A China impôs por muito tempo a norma do filho único, e um dos dispositivos da agenda 2030 da ONU é a promoção da prática do aborto. Outro dispositivo, tão nefasto quanto, é a liberalização das drogas. No Brasil, o povo condena e abomina o aborto, por isso o Congresso, de olho nos votos futuros, não quer saber de legislar sobre a questão – quem está tentando impor a famigerada agenda da ONU goela abaixo do povo é o Supremo Covil dos Vampiros. Muitos alegam que a posição do povo em relação ao aborto se deve ao fato de ser religioso, mas sua forte pulsão de vida parece ser a causa mais provável.  Escreveu um autor já clássico: “O sertanejo é antes de tudo um forte”, aludindo talvez a esse impulso vital dos brasileiros. Juan Rulfo, um grande escritor mexicano, referiu-se à mesma atitude numa conferência em que falava sobre o México e seu povo. Disse ele que o México é quase um deserto, terra árida e agreste, hostil à vida. “Mas,” continuou ele, “nós mexicanos somos teimosos, insistimos em fazer filhos.” Sentimento tenazmente combatido por organizações como a americana Planned Parenthood, que promove o aborto com práticas que reportam aos experimentos genéticos de Hitler. Em nome de um suposto progresso da medicina, realizam-se também experiências estranhas que criam seres híbridos, meio ratos, meio humanos. Atrevem-se cada vez mais a desrespeitar a vida sem temer o castigo que há de vir, porque todos no fundo sabem que nem homem nem mulher tem a capacidade de decidir sobre vida e morte.

 

 

Não é agradável o mundo em que hoje vivemos. Somos talvez prósperos, mas o mal se insinua entre todos os disparates que grassam como nas gravuras de Goya. Em dias mais sombrios, a impressão é que nova Idade das Trevas tomou conta do planeta. Quando a estupidez galopante desanima por demais, bate por vezes o desespero. Em Macbeth, Shakespeare encenou um inferno que encerra a mesma máxima de Dante Alighieri – “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Àqueles a quem foi concedida a graça da fé ainda é possível seguir confiando na vida em meio à escuridão. Lemos em João Guimarães Rosa – “Deus é paciência”.  Mas no epicentro do redemoinho parece mais do que apropriado escutar Dies Irae de Wolfgang Amadeus Mozart.

 

Rosaura Eichenberg

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