de revoada

23.08.2014 – De sabiás e bandas

A morte de uma das integrantes do Quarteto em Cy, Cybele, me transportou ao passado, e vi num dos jornais online o vídeo em que ela e a irmã Cynara cantam “Sabiá”, de Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque,  no Festival Internacional da Canção em 1968. A canção venceu o festival, e seu prêmio foi aplaudido debaixo de muitas vaias. À época eu estava distraída lidando com os confrontos e sofrimentos de ser jovem, por isso ouvi falar do que tinha acontecido, mas não registrei que a canção derrotada, que o público queria vencedora (razão das vaias), era de Geraldo Vandré, aquela que dizia “Quem sabe faz a hora…”, tantas vezes entoada nas passeatas em todo o Brasil contra a ditadura militar.

Nos anos 60, os festivais eram acontecimentos estrondosos, com torcidas e paixões de jogos de futebol. E lembrei que noutro festival famoso, em 1966, a música de Chico Buarque, “A Banda”, cantada por Nara Leão, dividiu o prêmio com uma canção de Geraldo Vandré chamada “Disparada”, se não me engano. Nesse festival não houve vaias, só muita animação, dança e aplausos. Entre a juventude, mais tarde, é que circulou a polêmica sobre o acerto ou não do empate, sobre qual das músicas seria a melhor. Hoje, relembrando esses eventos, achei curioso que por duas vezes Chico Buarque e Geraldo Vandré tenham se enfrentado na febre dos festivais.

Nunca deixei de gostar de “A Banda”. Anos mais tarde, falando com uma professora de música, ela me chamou atenção para uma característica musical do Brasil – em todo canto deste país, principalmente nas cidadezinhas do interior, há sempre uma praça com um coreto ou plataforma, e ali, todo fim de semana, toca a banda. Chico Buarque foi buscar água nessa bica, e aproveitou a tradição com bastante esperteza, porque (se o meu parco conhecimento de música não me engana) fez sua canção imitar o som de uma banda, o mesmo ritmo ingênuo e simples. O resultado é que, com vinte e poucos anos, pôs o país inteiro a dançar – não é pouca coisa.

O sabiá canta muito bonito. Numa aula de língua alemã nos anos 90, o professor levou uma gravação do canto do rouxinol, para que conhecêssemos a beleza que os poetas alemães exaltam em seus escritos. Problema de gravação ou meu ouvido nada apurado, não sei, mas não pude deixar de considerar o rouxinol um cantor bem mixuruca perto do sabiá que eu conhecia na natureza.

John Keats evocou o canto do rouxinol em versos de pura música:

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaThat thou, light-winged Dryad of the trees
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaIn some melodious plot
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaOf beechen green, and shadows numberless,
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaSingest of summer in full-throated ease.

Tom Jobim escreveu uma música delicada e melodiosa como o canto de sabiá que eu tinha escutado, e Chico Buarque travou um diálogo com o sabiá que canta na minha terra de palmeiras que já não há, uma conversa melancólica condizente com o tom sombrio da época. A voz doce das duas cantoras em Cy completava o clima intimista da canção, suave e graciosa, talvez pouco apropriada para os entusiasmos nada harmônicos das torcidas dos festivais.

As duas canções de Geraldo Vandré eram, essas sim, bem próprias de festival, adequadas para os conflitos sociais, mas aos meus ouvidos de hoje soam pobres e tremendamente chatas. A ditadura militar foi uma desgraça que nos aconteceu impregnando de feiura as terras brasileiras. E esse breu que nos cobriu não poupou nem mesmo muitos daqueles que se insurgiam contra o arbítrio. A música de Vandré traz em seu bojo um Brasil feio. Por isso, quando vi o vídeo do Festival Internacional da Canção, senti que Tom Jobim e Chico Buarque, em pé atrás das moças que entoavam o canto do sabiá, pareciam desajeitados, sem saber muito bem o que estavam fazendo ali, como se estivessem cumprindo missão ingrata, mas imperiosa. A beleza da música abafada e amarfanhada pelo ruído do público, sorrisos entre irônicos e acanhados, mas um brilho tênue resistindo na paisagem brasileira. Senti vontade de atravessar os anos para estar lá, batendo palmas para o sabiá, Gonçalves Dias, Tom Jobim e Chico Buarque, protagonistas da resistência.

Rosaura Eichenberg

Copyright 2012 © Todos os direitos reservados à Íbis Literatura & Arte