de revoada

21.06.2019 – O Brasil inteiro estudando…

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Ocorreram recentemente manifestações no Brasil contra o corte de verbas para a educação. Um grande número de pessoas invadiu as ruas pedindo maior empenho do governo nessa tarefa essencial em qualquer país. Vi algumas fotos das manifestações, e gostaria de comentar o cartaz que aparecia em primeiro plano numa delas. Dizia: “Educação não tem preço e sim investimento pois só educação nos TRAZERÁ crescimento!!”

É um atestado da grande tragédia brasileira – a educação está destruída em nosso país. E não se trata de uma questão de recursos, de financiamento, de subsídios. O Brasil é um dos países que mais investem em educação, mas ostenta no cenário mundial, se não os piores índices de educação, ao menos uma posição garbosa entre os três últimos colocados. Nosso sistema de ensino simplesmente saiu dos trilhos e não cumpre mais sua função. É preciso ser muito ingênuo para achar que o cartaz analfabeto seria apenas o erro de um aluno que não estudou bastante. Revela infelizmente a derrocada de nosso sistema de educação.

Erros em educação são especialmente danosos, porque não são corrigidos da noite para o dia. Eles se alastram por anos, às vezes décadas, e levam anos e provavelmente décadas para serem revertidos. Significam em geral gerações e gerações perdidas, as deficiências crescendo como bolas de neve ladeira abaixo.

Antes da ditadura militar, a escola pública constituía referência no ensino brasileiro. O patinho feio era então a escola particular. Vale pesquisar o que inverteu essa realidade – a escola pública se tornou lixo, e a escola particular, um lixo apenas mais aceitável a um custo exorbitante.

Não sei o que provocou essa perversão na educação brasileira, mas lembro que nos anos 70 o ensino secundário passou a ser incentivado como uma forma de se preparar para o exame vestibular da universidade. Proliferaram os cursinhos preparatórios, e o que se aprendia na escola visava apenas a melhorar o desempenho dos alunos nas provas de admissão que passaram a abranger múltiplas disciplinas. Um efeito colateral dessa tendência foi a adoção de testes de múltipla escolha, o que levou várias gerações de alunos a responder perguntas apenas marcando um X, isto é, sem elaborar frases. A redação tornou-se inexistente nos exercícios escolares, e isso certamente teve um impacto negativo no desenvolvimento intelectual. Tanto assim que os educadores reconheceram o erro e recuaram procurando voltar à prática antiga, mas o leite já estava derramado.

Ainda no início dos anos 70, tive contato com muitos colegas que seguiram a carreira docente, e observei uma atitude que à época considerei preocupante. Todos reclamavam do baixo rendimento dos alunos, muito ignorantes na sua opinião. A profissão de professor não era valorizada naqueles tempos, se é que algum dia o foi, e a posição de meus colegas parecia uma resposta ao desrespeito pela imagem do mestre. Reagiam atacando os alunos, exasperados por ter de aguentar seu escasso conhecimento e comportamento errático. Havia algo estranho, pois é natural que os alunos sejam ignorantes, eles estão na escola para aprender. Meus colegas pareciam querer lecionar a alunos mais adiantados, passar de professores do ensino médio para professores da graduação e até pós-graduação na universidade.

Mais tarde vim a compreender essa tendência no contexto de uma mudança então em andamento no ensino brasileiro. Por um efeito em cascata, propagou-se um erro muito danoso pelos vários níveis do aprendizado. Os pequenos do curso primário não aprendiam o que deveriam aprender, por isso tinham de repetir o aprendizado no curso secundário que ficava comprometido e incompleto.  Ao ingressarem nas universidades, os alunos não dominavam o que deveriam ter aprendido no secundário, por isso ao menos os primeiros anos do curso superior eram perdidos com a revisão de conteúdos que não tinham sido estudados nos anos anteriores. O curso universitário tornava-se assim igualmente capenga, e procurava-se compensar grande parte de sua incompletude com os estudos na pós-graduação. De deficiência em deficiência, os anos de formação dos brasileiros viraram uma colcha de retalhos com mais buracos que remendos.

Nos anos 80, acompanhei de longe mudanças estranhas no ensino da língua portuguesa. Já nos anos 60, eu tinha lamentado a retirada do latim dos currículos do ensino secundário, porque sempre tive como fundamental a infraestrutura linguística que o estudo do latim proporciona. Mas depois observei certas características no mínimo bizarras do ensino das línguas. Por exemplo, ensinavam-se no secundário as funções da linguagem definidas pelo linguista russo Roman Jakobson. Ora, não seria essa análise mais pertinente para um grau avançado dos estudos linguísticos? Teria razão de ser para quem ainda aprendia a gramática da sua língua? Aliás, a nomenclatura gramatical deve ter sofrido muitas alterações ao longo dos anos, pois para minha surpresa, numa aula de mandarim, descobri que minhas colegas não sabiam o que era voz passiva. E outra amiga bem mais jovem me deixou estupefata, quando no meio de uma conversa a respeito de um texto, me perguntou: “O que é que você chama de pronome?” Segundo Graciliano Ramos, a gramática é nossa primeira prisão, porém é inescapável – mesmo com nomes diferentes, as estruturas gramaticais devem ser examinadas e exercitadas. A língua portuguesa, a “inculta e bela”, possui suas regras peculiares que, embora apinhadas de exceções, devem ser obedecidas. No Livro do Desassossego de Bernardo Soares, Fernando Pessoa reclama de algumas pessoas que diziam ter contato com espíritos – como é que elas querem que eu acredite que dominam os espíritos, quando não conseguem dominar nem a gramática da língua portuguesa?

Será que a escola passou a exigir dos alunos um apanhado superficial de cada disciplina, sem lhes proporcionar o aprendizado miúdo, repetitivo, gradual de cada um de seus conteúdos? Talvez uma onda libertária equivocada que procura evitar todo e qualquer estudo cansativo, o que só pode gerar alunos incapazes de estudar. Uma tendência ainda agravada pela falta de seriedade na avaliação do aprendizado. Chega-se até a não reprovar alunos por receio do trauma da repetência.

Uma das críticas correntes ao ensino brasileiro atual é a doutrinação ideológica e política desde os primeiros anos escolares. Já existe uma forte reação a essa tendência em todo o país, que parte principalmente dos pais dos alunos. Tem-se incentivado um movimento chamado Escola Sem Partido, que tenta minorar os efeitos adversos de aprender a pensar de uma só maneira. O aspecto mais preocupante dessa camisa de força que enfiaram no ensino brasileiro é a chamada ideologia de gênero, porque nesse caso o martelo bate sem dó numa característica vital e essencial de todo ser humano, sua sexualidade.

Na área do ensino de português, encontrei alguns exemplos nocivos dessa interferência ideológica. Num livro didático para a escola primária, apresentava-se um longo texto explicando que as pessoas do povo falam errado, que isso é aceitável, que não se deve desconsiderar as pessoas por esse motivo, que tal atitude seria preconceituosa. E no meio da explicação aparecia um exemplo da linguagem popular – “Nóis pega os peixe”. Eu nem conseguia acreditar no que estava lendo, mas o livro era bem concreto nas minhas mãos e a frase popular não se apagava diante de meus olhos. Meus estudos de didática na universidade foram modestos, mas acho que basta o bom senso para saber que as crianças esqueceriam toda a lenga-lenga sobre a fala do povo na hora do recreio, mas gravariam na memória os erros da frase visualmente fixada.

Outro caso, que felizmente não passou de uma ameaça, foi uma proposta de mudança curricular. Parecia uma proposta surrealista, porque a orientação ideológica impedia que nas aulas de história os alunos aprendessem sobre os antigos egípcios, a civilização dos gregos, o Império Romano, a Idade Média, o Renascimento, a Revolução Francesa e muito mais. Quanto ao estudo da língua portuguesa, não fiquei menos perplexa. Os autores da proposta achavam por bem retirar os escritores portugueses das aulas de literatura no ensino médio. Os alunos leriam apenas autores brasileiros. Nesse nível de aprendizado, os estudos de literatura são apenas os primeiros passos de um conhecimento cultural de enorme alcance, mas as leituras marcam indelevelmente a formação do aluno. Que me desculpem, mas a proposta é imbecil, pois de uma coisa podem ter certeza, quem lê Eça de Queiroz jamais escreve “TRAZERÁ crescimento”.

Como não sou professora, os dados que apresento são apenas os que colhi de longe, por meio de comentários de colegas ou na imprensa. Aliás, quando vejo o estado atual da educação brasileira, eu me recrimino por não ter seguido a carreira docente. Sem talento para ser professora, ainda assim poderia ter contribuído para minorar o descalabro atual.

Pelo que tenho lido, já foi diagnosticado o mal que assola a educação brasileira, e procura-se recuperar o aprendizado dos conteúdos básicos, focando principalmente o ensino elementar. A pirâmide foi corroída a partir da base, e por isso precisa ser refeita a partir de seus fundamentos. Um grande problema é que a recuperação terá de ser realizada com o carro andando – impossível parar o carro, trocar a peça e retomar o andamento normal. Tudo terá de ser feito em tempo real e em multiprocessamento.

A medida necessária e urgente é que todos os brasileiros precisam retornar às carteiras escolares e estudar. Estudar muito e com gosto. Além dos pequenos do primário, dos adolescentes do ensino médio, dos jovens das universidades, todos os professores precisam voltar aos seus livros e pesquisas, porque os mestres são elos falhos na cadeia do nosso sistema educacional. A recuperação do ensino brasileiro passa necessariamente por melhorar a qualidade dos professores em todos os níveis escolares. Apesar de minha ignorância na área, arrisco uma sugestão – planejar um sistema de prêmios e incentivos ou estabelecer um excelente plano de carreira docente, para que a qualidade de nossos mestres e, consequentemente, de nossos estudantes se torne cada vez mais aprimorada. Quem sabe se em futuro próximo a escola pública não voltará a ser referência no ensino brasileiro.

 

Rosaura Eichenberg

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