de revoada

03.12.2019 – O alerta de Ricardo III

 

William Shakespeare criou Ricardo III ainda antes de 1600.

A peça histórica se debruça sobre a ascensão de Ricardo III ao poder. Uma consulta à Enciclopédia Britânica nos informa que o reinado de Ricardo III foi curto e que, por ser muito bom administrador e ter diminuído os impostos, esse rei foi bastante popular. Entre o período de vida de Ricardo III e o de Shakespeare estende-se um longo século, e foi com as lendas criadas em torno do rei já remoto que o dramaturgo inglês moldou o corcunda maligno que marcou para sempre a imaginação da humanidade. Mesmo pessoas que nada sabem de Shakespeare e suas obras assentem com um olhar de reconhecimento, se alguém lhes fala da cena magistral do corcunda correndo pelo campo de batalha a gritar ‘Meu reino por um cavalo!’

A peça abre com um longo monólogo do protagonista corcunda. Obedecendo as regras do teatro elizabetano, ele tem de fornecer ao público as coordenadas principais da ação que se desenrolará no palco. Assim, ele começa dizendo que as guerras acabaram na Inglaterra e que os York venceram.

“Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York.”

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E passa a descrever os tempos de festas e folguedos que substituíram as agruras das batalhas. Mas ele, corcunda, malformado a ponto de os cães ladrarem à sua passagem, ele não tem lugar nesses dias felizes. E por isso, como não pode amar e ser amado, decidiu ser um vilão.

“…since I cannot prove a lover,
To entertain these fair well-spoken days,
I am determined to prove a villain.”

Dessa forma, a plateia toma conhecimento de que ele tem uma agenda de destruição por ser um vilão. Seus companheiros de palco de nada sabem, não desconfiam de sua pessoa nem de seus planos, imersos em ignorância, mas o público está ciente do mal a ser cometido e por quem. É com essa estrutura delineada na cena inicial que Shakespeare constrói sua peça.

Ao longo do desenrolar da trama, as intrigas e matanças vão obedecer a agenda destrutiva do autodeclarado vilão, e o grande espetáculo é o modo insinuante com que ele consegue distorcer a visão de todos, impedindo que sejam desmascarados seus engodos. Ele é certamente o grande protagonista, todos os outros personagens esvaecem à sua sombra. Sua inteligência e retórica brilham ao enganar todo mundo, seja porque sua lábia ludibria os incautos, seja porque sabe fazer uso das fraquezas alheias.

Dentre as várias cenas de engambelação, salienta-se a demagogia de quando os cidadãos se dirigem ao mosteiro onde o monstro corcunda se recolheu contrito a ler escrituras sagradas, para insistirem e acabarem com sua relutância em aceitar a coroa e o reino. Mas nem essa armação consegue superar a repulsa de outra cena.

Nos corredores do palácio, passa o cortejo fúnebre do rei Henrique VI, derrubado pelos York. Ao seu lado, uma dama da corte, Lady Anne, viúva do filho desse rei, presta as últimas homenagens ao morto. O cortejo se interrompe quando o corcunda entra em cena e passa a falar com a dama. Por meio de malabarismos retóricos, consegue convencê-la a se casar com ele. E no pequeno monólogo após a cena, ele tripudia em cima da dama: como é possível ter vencido sua resistência quando ele é que matou o rei no caixão e seu filho que era o marido da dama? A malignidade do monstro corcunda é esse seu total desprezo pelos outros seres humanos, meros joguetes nas suas mãos.

A peça foi encenada pela primeira vez antes de 1600. Informa com clareza cristalina que só se estabelece uma tirania havendo duas condições:

– Um ser deformado, um corcunda, alguém que quer o poder pelo poder para destruir

–  Um bando de palermas, patetas, imbecis, estúpidos, ignorantes, retardados mentais, gente incapaz de pensar

Não é extraordinário que seu alerta esteja mais atual que nunca neste nosso século XXI? Os corcundas proliferam no globo, com os olhos apertados dos chineses, os traços eslavos dos russos, os turbantes e túnicas dos povos do Oriente Médio e do islã, as faces ocultas dos globalistas que vazam moedas por todos os poros.

Para que seus planos de impérios globais, necessariamente totalitários, tenham êxito, é preciso criar a segunda condição prescrita por Shakespeare. Há que transformar a humanidade numa manada de imbecis. Assim inventaram mecanismos eficazes para disseminar a parvoíce pelo mundo, ou não é esse o objetivo mais evidente do pensamento politicamente correto? Não é preciso ter uma avaria nos neurônios para cair na cilada da argumentação falha e da retórica bandida das mudanças climáticas? Apenas quem desistiu do potencial de pensar embarca nos engodos das políticas identitárias, desconsidera a inversão do sentido das palavras, julga normal o total desprezo pela realidade dos fatos.

Shakespeare gosta de inserir no desenrolar da trama personagens populares que tecem comentários sobre a ação representada. Assim um escriba que acabou de redigir um mandado de prisão e execução de um dos inimigos do corcunda já rei observa:

Here’s a good world the while! Why, who’s so gross,
That seeth not this palpable device?
Yet who’s so blind, but says he sees it not?
Bad is the world, and all will come to nought,
When such bad dealing must be seen in thought.

Quando se observa o mundo imbecilizado que está sendo estabelecido pelos corcundas modernos, fica-se em dúvida – será o mundo dos yahoos e huyhnhnms visitado por Gulliver ou o mundo insano de Alice no País das Maravilhas?

Resta-nos ler e reler Ricardo III. A peça de Shakespeare deveria ser encenada pelo mundo afora hoje em dia, para que a humanidade escutasse com atenção um alerta de tantos séculos atrás.

 

Rosaura Eichenberg

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