de revoada

06.02.2021 – Ainda sobre Machado de Assis

 

É bastante conhecida a mudança inesperada que ocorreu na carreira literária de Machado de Assis com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas talvez valha a pena comentá-la mais uma vez, ainda que sem o rigor de um estudo aprofundado. 

Machado começou a trabalhar numa tipografia, depois passou a escrever para os jornais e aventurou-se como escritor em vários gêneros: escreveu poesia, peças de teatro, contos e romances. A quebra na linha de sua trajetória literária se torna mais visível no romance com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas em 1881. 

Antes Machado tinha publicado quatro romances, Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia, que seguiam moldes literários franceses. Os capítulos saíam em revistas femininas à maneira de folhetim. Cumpre dizer que apesar da grande influência francesa na cultura daqueles tempos, os romances revelam um escritor com força e estilo próprios. Um tema constante nos quatro é a questão moral confrontada pelas protagonistas – moças envolvidas em casos amorosos, que pelo casamento terão uma ascensão social. O que lhes tortura o espírito é saber se é amor ou interesse o que as impele ao casamento. A ironia machadiana já marca presença nesses romances, com especial destaque em Iaiá Garcia.

Eis que em 1881 Machado publica um romance em que reconhece a influência inglesa de Laurence Sterne e deixa a ironia extravasar numa conversa direta do narrador com o leitor. Mas o que espanta no romance é menos o estilo literário adotado que a maneira desabusada como descreve e comenta as fraquezas humanas. Afinal, o narrador que comanda o romance está morto, e essa condição lhe permite observar o interior dos seres humanos sem qualquer entrave imposto pela vida. Machado é impiedoso em seu retrato das criaturas humanas na sua lida diária.

Mesmo naquela época, o mundo literário reagiu a mudança tão brusca nas obras do escritor. Até hoje, mais de um século passado, muitos ainda buscam respostas para o enigma. A ruptura na linha literária até então traçada se deu quando Machado se encontrava no final de seus trinta anos e início dos quarenta. Foi por esse período que Machado teve a primeira crise de epilepsia, fato marcante que o levou a refugiar-se na serra por algum tempo. Mas quase todos reconhecem que ligar a manifestação da doença com a inesperada reviravolta em seus escritos seria dar uma resposta simples a uma questão complexa, o que em geral se revela falho.

Num artigo escrito por Lúcia Miguel Pereira, encontrei uma observação que me apontou um possível esclarecimento. A autora menciona a resposta de Machado de Assis a um contemporâneo que lhe perguntou a razão de ele ter tomado desvio tão imprevisto ao escrever Memórias Póstumas de Brás Cubas. Disse Machado: “Eu apenas me desiludi dos seres humanos.”  

Numa compreensão tosca, concluí que depois de tanta discussão moral a respeito dos atos humanos e suas intenções, Machado tinha jogado a toalha e decidido que ser humano não presta. Com essa visão desassombrada da vida humana, Machado afiou suas observações sobre os embates interiores de seres tão fracos, sem recuar diante do que seus olhos revelavam. A partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, sua obra se pautou pela busca da verdade, ainda que ingrata, da humana condição. Essa sua visão amarga se traduz muito bem numa das últimas frases de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”

Os grandes romances que se seguiram – Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Ayres – obedecem a diretiva determinada no romance de 1881, cada um aprofundando a seu modo as revelações de Machado. Essa mesma amargura também se manifestará nos contos, outro gênero que a pena de Machado honrou com verdadeiras obras-primas.

Há de se convir que não é palatável o que Machado de Assis mostra na sua obra a respeito da vida sobre a Terra. Machado exige dos leitores muito estudo e reflexão para que possam começar a entrever o que ele está dizendo. Até os próprios estudiosos da sua obra tentam por vezes atalhos pouco esclarecedores na sua tentativa de compreendê-lo. Estudar Machado de Assis em busca de um retrato das contradições da vida social no II Império me parece atalho que proporciona um voo curto de galinha. A vida social não é o que mais importa nos escritos machadianos. Os ensaios de Augusto Meyer sobre Machado de Assis aproximam-se bem mais do Bruxo do Cosme Velho propondo vislumbrar na sua obra o homem subterrâneo de Dostoiévski, mas esse atalho não é prazeroso pois se embrenha na amargura da visão machadiana.

Cumpre frisar que dois movimentos estão presentes na maneira como Machado de Assis considera a vida humana. Primeiro, nunca será demasiado lembrar a grande coragem para não recuar diante do que se revela a seus olhos. Ele aponta, esmiúça, detalha, pinta, perscruta os seres humanos sem evitar descrever o que está longe de ser aprazível. O segundo movimento é que só foi capaz desse trabalho duro por amar a vida que lhe revela seu ser tão amargo. No conto “Viver!” incluído em Várias Histórias, o final é um diálogo entre duas águias:

 

“Uma águia – Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo

                         e ainda sonha com a vida.   

A outra – Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.”

 

Machado apresenta uma visão nada agradável do ser humano, difícil de provocar sentimentos amorosos nos leitores. Mas se a amargura o dominasse por inteiro, ele não teria escrito nada. Escrever é um ato de amor.

Esses parágrafos são um apanhado muito superficial de minha reação à obra de nosso maior escritor. Mas não poderia terminar o texto sem fazer uma menção especial a uma de suas obras, o romance Dom Casmurro.  Capitu, a protagonista, é uma das maiores personagens femininas da literatura brasileira e da literatura ocidental. Uma realização extraordinária de Machado de Assis. Apesar de ser personagem controversa – os que conhecem o romance sabem disso – Capitu só adquire vida por ser a criação de um grande amor – de Machado de Assis e de seus leitores.

 

 

Rosaura Eichenberg

03.02.2021 – Ler Machado de Assis não é fácil

 

Machado de Assis é o maior escritor que o Brasil já teve. Trata-se de um consenso bastante sólido na cultura brasileira. Mas, como nada no Brasil é simples e corriqueiro, ele não é leitura que se abre generosa aos que dele se aproximam. Ler Machado é uma conquista árdua que exige grande trabalho. Ele próprio tinha ciência dessa dificuldade, pois escreveu em Memórias Póstumas de Brás Cubas:

“Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.”

Difícil ou não, sua importância na literatura brasileira só faz crescer com os anos, e sim, ele tem presença obrigatória no currículo escolar dos brasileiros, porque todos têm de conhecer a cultura de seu país. Como na superfície nossa vida cultural está infestada de estereótipos, faz-se necessário saber dos veios do minério de real valor.

A dificuldade de leitura da obra de Machado já rendeu muita polêmica. Além de pessoas sem bagagem cultural chegarem a pensar em tirá-lo do currículo escolar, houve quem apresentasse a sugestão de reescrever textos de Machado com linguagem mais moderna para facilitar a leitura. Uma ideia falha por se apoiar num falso diagnóstico. A linguagem de Machado é do século XIX, mas coloquial. Apesar de alguns termos em desuso, a compreensão flui pelas palavras. O máximo que se poderia fazer é um glossário dos termos antiquados, mas várias gerações leram Machado sem sentir essa necessidade. Estaria o problema nos jovens atuais que querem tudo mastigado, sem disposição para qualquer trabalho mais duro?

Embora isso possa ter um grão de verdade, não dá para negar que existe uma barreira real na leitura das obras de Machado de Assis. Não é um escritor fácil. A dificuldade não está na linguagem, mas na sua visão de mundo que requer maturidade e experiência de vida para começar a ser entrevista.  E existe ainda o agravante de Machado usar a ironia como seu recurso de linguagem preferido. Uma pintura com as tintas da ironia não resulta clara nem nítida. A luz que a revela é oblíqua.

Com base na minha própria experiência, considero bastante difícil que jovens compreendam Machado de Assis. O que ele apresenta não é agradável, antes muito amargo. Os jovens não apreciam esse travo. Mas isso não implica que a leitura de Machado de Assis deva desaparecer nas escolas. Pelo contrário. Seja qual for a resposta de cada um a essa experiência de leitura, terá sido um passo importante na sua percepção de nossa cultura.

Nós brasileiros temos de aceitar que somos um país peculiar, diferente. Nosso maior escritor trilhou caminho acidentado e pedregoso, mas isso não é motivo para deixar de acompanhá-lo na sua busca.     

 

 

Rosaura Eichenberg

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