de revoada

30.08.2023 – Tom Jobim e o Brasil

 

 

O BRASIL NÃO É PARA PRINCIPIANTES

 

Tom Jobim foi preciso em seu diagnóstico do Brasil. Talvez por amar muito a sua terra. Disse: BRASIL NÃO É PARA PRINCIPIANTES.

Tenho visto muitos reagirem a este veredicto. Lembram os disparates recheados de clichês do país do carnaval, que todos acham difíceis de aceitar e compreender. Riem muito e enganam-se, porque os principiantes não têm dificuldade em compreender o carnaval e seus malabarismos com a lógica.

O que desafia o discernimento de todo mundo é conhecer o fio que corre desde 1500 urdindo um tecido bastante peculiar. O Brasil sempre surpreendente? Um imprevisto a cada esquina? O que assombra os brasileiros comuns é a dificuldade de conhecer o país em que vivem. Entre ufanismo e desdém pela pátria, quem consegue vislumbrar o que é o Brasil? O país do futuro? Uma quimera? Quase inevitável a conclusão difícil – o Brasil precisa ser descoberto. Ainda que não seja para principiantes, os brasileiros continuam a arregaçar as mangas com Tom Jobim para a tarefa.

 

Rosaura Eichenberg

21.07.2022 – Encontrando Circe no Mundo Moderno

 

Aprendi com os gregos uma lição valiosa. Uma linha mestra de seu pensamento revela que, para verdadeiramente ser, o homem precisa reconhecer e aceitar seus limites. Se tenta ir além, o homem comete húbris (em grego ὕϐρις), desmedida, o que causa sua destruição. Em palavras mais simples, o homem precisa viver e pensar dentro da sua realidade, senão está fadado a sucumbir.

No poema épico Odisseia, Homero narra a viagem de retorno de Ulisses, que volta ao seu lar em Ítaca depois da guerra de Troia. É um percurso acidentado de longos dez anos. Ulisses aparece pela primeira vez no poema saindo do mar, após o naufrágio que destruiu seu barco. Nadando até a praia, Ulisses chega à terra dos Feácios onde é acolhido pela adolescente Nausicaa, e no meio desse povo desconhecido, ele narra suas aventuras desde que saiu de Troia até aquele momento. Depois a narrativa acompanha Ulisses no seu retorno a Ítaca, onde tem de reconquistar seu reino.

No primeiro grupo de aventuras até o naufrágio, Ulisses e seus companheiros enfrentam perigos dos quais quase sempre escapam por um triz. É possível observar um padrão nessas aventuras: ao vencer, por exemplo, o ciclope Polifemo, os gregos afirmam não ser monstruosos. A última aventura é na ilha de Calypso, uma ninfa do mar que vive prisioneira na ilha de Ogigia. Ulisses chega à ilha em condições precárias, e Calypso cuida do herói por longos anos e por ele se apaixona. Ela quer conservá-lo na ilha para sempre, o que significa que Ulisses precisa tornar-se imortal. Ulisses afirma ser humano – isto é, não divino – quando recusa a imortalidade, e com a intervenção de Atena e Zeus consegue que Calypso o deixe partir. Antes no curso de suas aventuras, Ulisses e seus companheiros encontram outra divindade perigosa chamada Circe. Trata-se de uma feiticeira que sabe manipular venenos e poções mágicas para fins maléficos. Circe seduz por engodo os companheiros de Ulisses, transformando-os em porcos. Com a ajuda do deus Hermes, Ulisses consegue vencer Circe obrigando-a a restituir a forma natural a seus companheiros. Nesse episódio, os gregos afirmam ser humanos – isto é, não animais. Um detalhe a observar – para afirmar sua mortalidade, Ulisses recebe ajuda de Zeus, o senhor supremo do Olimpo, ao passo que para afirmar sua forma humana, recebe ajuda de Hermes, o mensageiro que providencia a comunicação entre os deuses e os homens vivos e mortos.                            

Lembrando as aventuras de Ulisses, é de assustar o que está acontecendo em nosso mundo quanto a venenos de Circe imiscuídos em ideologias sobre o “gênero” dos seres humanos. Sexo é crucial para os humanos por integrar o impulso de vida. Dois são os sexos biológicos, o masculino e o feminino, e cada um deles tem suas próprias características corporais e mentais. É uma realidade que o ser humano não pode negar ou adulterar sob pena de perder a si mesmo.

Os gregos insistiam que os seres humanos têm de reconhecer seus limites. Não existe maneira de alguém poder viver uma quimera. A morte vem a cavalo. Ninguém pode ser o que não existe. Ninguém pode ser o que não é. A tentativa tresloucada de seguir esse caminho gera apenas seres monstruosos com um só desejo, o da própria destruição.

Do remoto século V a.C., os gregos acendem o alerta máximo para o cenário humano atual. Mais ainda, quando os donos do poder incentivam crianças e adolescentes a viver quimeras, o alerta estronda de vez.

 

Rosaura Eichenberg

06.10.2021 – Sobre o amor – Santa Terezinha do Menino Jesus

 

  “À des amants, il faut la solitude.”

 

Ste. Thérèse de Lisieux   

 

 

Rosaura Eichenberg

20.07.2021 – Fariseus dos tempos modernos

Encontram-se fariseus na Bíblia com certa frequência. Uma explicação do significado de seu nome é fornecida por Hadriano Simon em Praelectiones Biblicae Novum Testamentum. A palavra fariseu tem origem hebraica – perushim (de parash = separar). Do hebraico passou para a forma grega – ϕαρισαιοι, isto é, fariseus = separados.  Não eram assim chamados porque evitassem o contato com os pagãos, pois separar-se dos gentios era comum entre os judeus. Eles evitavam o povo, de quem insistiam em se manter separados.

Em seus comentários sobre o Evangelho de São Mateus, Santo Tomás de Aquino comenta a malignidade dos fariseus. “Fariseus, isto é, separados, porque perversamente interpretavam, convertendo o bem em mal (Eclesiástico 11,33).” E mais: “Neles vemos um exemplo e tipo dos que não querem crer, para os quais não bastam nem os argumentos mais manifestos, porque, obscurecendo o intelecto com a malícia da vontade, enganam-se a si mesmos com vãos raciocínios.”

Em nossos tempos, as ideologias dominantes estão infestadas de fariseus. É verdade que, como os fariseus bíblicos, eles interpretam perversamente e convertem o bem em mal. Mas o que chama atenção é que, como na análise de Santo Tomás, 1) eles não querem ver a verdade – se Santo Tomás fala da verdade divina dizendo que eles não querem crer, os “fariseus” atuais nem querem reconhecer a realidade dos fatos. 2) Eles obscurecem o intelecto com a malícia da vontade – como querem ver apenas o que serve a seus interesses, o intelecto deixa de funcionar a contento. Por isso, não compreendem nem aceitam argumento algum, inviabilizando qualquer tentativa de discussão. 3) Eles se enganam a si mesmos com vãos raciocínios – tudo o que falam é um engano para si mesmos e para os outros, o que torna seus raciocínios vãos para usar o termo elegante de Santo Tomás. De maneira bem mais grosseira, diríamos que acabam em puro besteirol.

Interessante observar um dado nessa comparação entre os fariseus da Bíblia e os de hoje em dia. Conforme o significado da palavra fariseu, eles se mantinham apartados do povo. Um dos traços da ideologia esquerdista é o imenso desprezo pelo povo, que eles consideram apenas massa de manobra. Não sei se a ideologia global dominante é tão somente esquerdista, mas seus agentes certamente se apartam do povo no sentido de que não querem contato com a realidade.

A guerra tomou conta do nosso planeta. Um dos requisitos da defesa é conhecer o inimigo, por isso essa reflexão de Santo Tomás sobre os fariseus é oportuna.

 

 

Rosaura Eichenberg

28.03.2021- Enigma antigo

 

Existirá realmente esta identidade coletiva vaga a que chamamos de povo de um país? Miguel de Unamuno não gostava da palavra povo. 

Os habitantes das nações modernas partilham costumes em comum, paisagens, modos de ver as coisas, tradições culturais e, sobretudo, uma mesma língua, tesouro em que se guardam e se transmutam todas as suas experiências.

Mas o que existe para além das circunstâncias não é sempre o jeito individual de ser, a aventura iniciada no mistério do nascimento, assumida como possível no combate com o tempo, e desaguando sem imprevistos no outro grande mistério de não ser?

 

 

Rosaura Eichenberg

03.02.2021 – Ler Machado de Assis não é fácil

 

Machado de Assis é o maior escritor que o Brasil já teve. Trata-se de um consenso bastante sólido na cultura brasileira. Mas, como nada no Brasil é simples e corriqueiro, ele não é leitura que se abre generosa aos que dele se aproximam. Ler Machado é uma conquista árdua que exige grande trabalho. Ele próprio tinha ciência dessa dificuldade, pois escreveu em Memórias Póstumas de Brás Cubas:

“Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.”

Difícil ou não, sua importância na literatura brasileira só faz crescer com os anos, e sim, ele tem presença obrigatória no currículo escolar dos brasileiros, porque todos têm de conhecer a cultura de seu país. Como na superfície nossa vida cultural está infestada de estereótipos, faz-se necessário saber dos veios do minério de real valor.

A dificuldade de leitura da obra de Machado já rendeu muita polêmica. Além de pessoas sem bagagem cultural chegarem a pensar em tirá-lo do currículo escolar, houve quem apresentasse a sugestão de reescrever textos de Machado com linguagem mais moderna para facilitar a leitura. Uma ideia falha por se apoiar num falso diagnóstico. A linguagem de Machado é do século XIX, mas coloquial. Apesar de alguns termos em desuso, a compreensão flui pelas palavras. O máximo que se poderia fazer é um glossário dos termos antiquados, mas várias gerações leram Machado sem sentir essa necessidade. Estaria o problema nos jovens atuais que querem tudo mastigado, sem disposição para qualquer trabalho mais duro?

Embora isso possa ter um grão de verdade, não dá para negar que existe uma barreira real na leitura das obras de Machado de Assis. Não é um escritor fácil. A dificuldade não está na linguagem, mas na sua visão de mundo que requer maturidade e experiência de vida para começar a ser entrevista.  E existe ainda o agravante de Machado usar a ironia como seu recurso de linguagem preferido. Uma pintura com as tintas da ironia não resulta clara nem nítida. A luz que a revela é oblíqua.

Com base na minha própria experiência, considero bastante difícil que jovens compreendam Machado de Assis. O que ele apresenta não é agradável, antes muito amargo. Os jovens não apreciam esse travo. Mas isso não implica que a leitura de Machado de Assis deva desaparecer nas escolas. Pelo contrário. Seja qual for a resposta de cada um a essa experiência de leitura, terá sido um passo importante na sua percepção de nossa cultura.

Nós brasileiros temos de aceitar que somos um país peculiar, diferente. Nosso maior escritor trilhou caminho acidentado e pedregoso, mas isso não é motivo para deixar de acompanhá-lo na sua busca.     

 

 

Rosaura Eichenberg

04.01.2021 – Vírus Retóricos: Hate Speech, Teoria da Conspiração, Fake News

 

Em janeiro de 2015, um ataque terrorista islâmico matou 12 jornalistas do hebdomadário francês Charlie Hebdo, um periódico esquerdista com sátiras virulentas contra seus alvos preferidos – governos e ideologia de direita, com especial ênfase para a religião católica e o Papa. Em 2005, quando um cartum dinamarquês sobre Maomé atraiu a fúria islâmica contra seu autor, o Charlie Hebdo tinha se solidarizado com o cartunista e publicado o cartum. Por essa razão, os muçulmanos juraram matar os jornalistas franceses, ameaça cumprida em 2015.

O massacre abalou o mundo ocidental. Muitos chefes de estado participaram de marchas em Paris contra o terrorismo, e nas manifestações que se seguiram, os cartazes repetiam “Je suis Charlie”. Passadas algumas semanas, observei uma mudança nas discussões que lia entrecortadas nas agências de notícias. Em vez de refletirem sobre o terrorismo e as doze vidas ceifadas, a maioria parecia querer determinar os limites da crítica, se era realmente possível ofender alguém sem qualquer freio de moderação. E todos se perdiam nos detalhes dessa argumentação, esquecendo os doze jornalistas que tinham perdido a vida.

Lembrei as aulas de retórica e pensei – se alguém se descobre sem argumentos numa discussão, o truque mais fácil é mudar de assunto. Parece ter sido o que fizeram. Minha amiga americana ponderava que até o Papa tinha dito que não se podia ofender ninguém com tanta virulência. Tentando dirigir a discussão para a realidade, respondi que os cartunistas eram de esquerda, e o que já tinham publicado contra Jesus Cristo e a Virgem Maria era muito pior que seus cartuns sobre Maomé. E aí perguntei, qual foi o cristão que pegou um fuzil para matar os jornalistas que ofenderam Jesus Cristo e a Virgem Maria?

Essa reflexão já antiga me levou a examinar truques retóricos que vêm se repetindo para evitar qualquer debate sobre a realidade dos fatos. São formas de desviar a atenção da realidade e, para ser bem franca, constituem retórica para imbecis. O assustador é que esse discurso se infiltra na linguagem como um vírus, e os desavisados se deixam enredar nas teias armadas. Não se discute com imbecil – corta-se a linha da conversa e trata-se de encontrar novo fio da meada.

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Ao ver um vídeo com um trecho de um discurso de Hillary Clinton na campanha presidencial de 2016, senti um arrepio de pavor. Ela investia contra os que apoiavam o candidato Donald Trump, dizendo que eram racistas, sexistas, homofóbicos, nazistas, fascistas, a lista era interminável. Rotulou esses seres desprezíveis de deploráveis, afirmando que seria necessário colocá-los num cesto por serem irrecuperáveis. De olhos arregalados e o coração na mão, eu só troquei mentalmente “os apoiadores de Trump” pela palavra “judeus” e entendi quem estava falando. Seguindo a linha do genocida do III Reich, emprega-se hoje a retórica do ódio – Hate Speech.  Assim como Hitler desumanizou os judeus retirando-lhes o direito à própria vida, essa retórica demoniza qualquer adversário roubando-lhe o direito de se expressar dada a sua natureza demoníaca. De quebra, tal vírus retórico mascara o ódio sem freios de quem o emprega.

 

Em 2014, antes da eleição presidencial brasileira, o avião que transportava o candidato que tinha sido governador de Pernambuco caiu depois de decolar do aeroporto de Santos. Numa reunião de colegas do curso de alemão, comentávamos o acidente que abalou o país. Eu questionava o que poderia ter acontecido, achando escassas as explicações apresentadas. De repente, a colega ao meu lado me interrompeu ríspida afirmando que minhas dúvidas eram Teoria da Conspiração.  Atônita diante da dureza com que ela tinha falado, respondi que não tinha conhecimento de conspiração nenhuma, queria apenas saber por que a caixa preta do avião não estava funcionando na hora do acidente. Foi a primeira vez que me deparei com esse vírus retórico – alegar teoria da conspiração visa a acabar com qualquer discussão obrigando os desavisados a apresentar provas do que eles nem sabem o que é, enquanto seus oponentes escamoteiam a culpa em cartório. Por sinal, o acidente nunca foi explicado por causa da falha da caixa preta.

 

Não tenho certeza, mas acho que foi em 2016, antes da eleição americana, que comecei a encontrar na internet a expressão Fake News. Faço uma ligação entre o emprego desse vírus retórico e um escândalo que então estourou – era um caso de tráfico sexual de crianças, que ficou conhecido como Pizzagate por ter como centro de operações uma pizzaria. Um escândalo ligado a pessoas da campanha de Hillary Clinton. Pode ser que me engane, pois não navego na internet com destreza e grande frequência, mas de uma coisa tenho certeza: o efeito dessa expressão Fake News é altamente prejudicial. Esse vírus retórico consegue minar a credibilidade de qualquer news. Com isso, o jornalismo tem seus dias contados, e o único resultado possível é a instituição do Ministério da Verdade do romance de George Orwell.

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A melhor maneira de lutar contra um vírus é impedir que se introduza no organismo sadio. Esses três vírus retóricos mencionados já se tornaram lugar-comum nas discussões atuais, por isso cabe procurar o remédio adequado para neutralizá-los. Até agora o que parece mais eficaz é não se deixar enredar por eles, conduzir a discussão para fora do alcance de suas garras. E vigiar para que aqueles que os empregam saibam que não estão lidando com idiotas.  

 

 

Rosaura Eichenberg

16.12.2020 – Tu Pisavas Nos Astros Distraída

 

Hoje muitos falam em refundar a República no Brasil. Outros dizem que o país tem de se tornar verdadeiramente independente. Talvez seja sinal de minha grande ignorância, mas me parece que o Brasil tem é de ser descoberto pelos brasileiros. A minha impressão é que não fazemos ideia da nossa terra.

Entre várias razões, cabe apontar os estudiosos da realidade brasileira que usam óculos fabricados em Harvard, na Sorbonne, em Cambridge, em Oxford. As lentes distorcem irremediavelmente as imagens do Brasil e só conseguem criar uma enxurrada de estereótipos em que poucos brasileiros se reconhecem.

Não está mais que na hora de o país do futuro voltar os olhos para o presente ou para o passado e começar a se descobrir? Tom Jobim já avisou que o Brasil não é para principiantes. A tarefa será bem complicada.

A nossa terra é peculiar. Único país na América do Sul que fala português. Único país na América do Sul que tem a cultura marcada pelos negros, e não pelos índios. Diversidade na flora, na fauna, no povo. Riquezas naturais em abundância, mas pobreza e miséria em regiões assoladas por estruturas sociais caducas.

Um olhar claro e honesto para nós mesmos encontrará obstáculos. Muitas vezes vamos até querer desviar os olhos do que percebemos. Apesar de o brasileiro já ter sido chamado de cordial, o nível de violência assusta. Mas é preciso enfrentar os fantasmas, afastar as névoas para ter uma visão da realidade. Minha intuição é que também se vai descobrir beleza que jamais sonhamos. Volta e meia me ocorre no vaivém da vida o verso do Chão de Estrelas:

Tu pisavas nos astros distraída

 

 

Rosaura Eichenberg

08.12.2020 – Cleber Teixeira e o Jardim Botânico

 

Cleber Teixeira era do Rio de Janeiro, e foi ele quem me apresentou sua cidade quando vim de muda para cá em 1975. O lugar mais lindo, dizia ele, é o Jardim Botânico. Um segredo que não fazia questão de guardar, o Jardim Botânico morava em seu coração.

Eu o via atrapalhado quando falava de seus passeios com a filha Gabriela, porque a menina preferia brincar no Parque Tivoli a trilhar os caminhos do jardim. Mas ele acabava levando a Gabriela de vez em quando ao Jardim Botânico, e muitas vezes o acompanhei em seus passeios com a mulher e os filhos pequenos, até mesmo para comemorar o nascimento do João debaixo da grande sumaúma da entrada.

Com os anos passando, o Jardim Botânico seguiu sua vida com altos e baixos, como sói acontecer. Houve períodos de muito abandono, e chuvas e enchentes do Rio dos Macacos multiplicavam os sinais de nenhum cuidado. Ainda lembro que, em tempos muito ruins, os soldados do exército fizeram mutirão para limpar o jardim. Outras épocas experimentaram assaltos e falta de segurança, o que resultou, depois de grandes discussões, em grades ao redor do arboreto.

No início dos anos 90, realizou-se no Rio de Janeiro a conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, conhecida como ECO-92, e o Jardim Botânico teve de se engalanar para os encontros. Houve então uma série de convênios pontuais com a iniciativa privada para restaurar e recuperar certos tesouros históricos do jardim. Foi assim que se tirou da ruína o Museu – Sítio Arqueológico dos Pilões, endireitaram-se as armações de ferro das casas envidraçadas com suas exposições de plantas carnívoras e outros espécimens, arrumou-se o roseiral em círculos. A saga das estátuas de Narciso e Eco com o escritor Antonio Callado fez história ao lado das musas do chafariz.

Mais tarde comecei a praticar taichi no Canteiro da Restinga e acompanhei de perto todas essas vicissitudes, a lembrança do Cleber sempre iluminando meus passos pelo jardim. Num certo passeio antigo, um temporal estourou bem em cima de nós – eu estava com o Cleber, a Gabriela e uma amiga da Gabriela. Buscamos refúgio num dos mirantes laterais, e vi o Cleber acalmando a filha que estava com medo da chuva, mas também saboreando a beleza tão escondida no estrondo dos trovões e no aguaceiro que caía sem dó. Quando um lugar penetra na alma de uma pessoa, todo momento é motivo para descobrir mais algum detalhe, nova preciosidade, mesmo no meio das intempéries.

Hoje essa recordação vem me consolar, porque meu coração está chorando pelo Jardim Botânico. Ameaçam atacar mais uma vez o lugar mais lindo do Rio de Janeiro. Planejam demolir o Museu do Meio Ambiente e construir um hotel butique. Nem sei o que é isso, e imagino que o Cleber tampouco saberia. Há que aguardar, pois a esperança de que deixem o Jardim Botânico em paz é grande.

Minha mãe dizia para nós pequenos, quando um se machucava: vai passar. Tudo passa, mas a beleza do Jardim Botânico que vislumbrei pelas frestas do coração de meu amigo Cleber não passará. O Jardim Botânico foi inaugurado no dia de Santo Antônio — o grande santo de Lisboa haverá de proteger o nosso jardim.

 

Rosaura Eichenberg

07.01.2020 – Inteligência artificial

 

O olho humano é uma das tantas maravilhas da natureza, mas ele tem seus limites. Na sua busca de conhecimento, os humanos inventaram mecanismos para superar essas limitações – o telescópio permitiu a visão de objetos muito distantes, o microscópio tornou possível a inspeção de fenômenos extremamente pequenos. E com o avanço da ciência e tecnologia modernas, os auxílios para o olho humano se multiplicaram exponencialmente.

Hoje estão muito adiantados os estudos para o desenvolvimento da inteligência artificial. Entendo a inteligência artificial como um mecanismo que está sendo criado para superar as limitações da inteligência humana. Em vários aspectos, no estágio em que hoje se encontra, a inteligência artificial é muito superior à humana. Por exemplo, li que os estudos de energia nuclear obtida por meio da fusão de átomos estão sendo realizados com o auxílio imprescindível da inteligência artificial. Outro exemplo é o ramo da robótica – por meio de robôs, os seres humanos estão ampliando sobremaneira sua possibilidade de atuação na exploração do desconhecido.

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É importante, entretanto, não desvirtuar o desenvolvimento e o emprego desse valioso instrumento moderno.  Não devemos transformar a inteligência artificial num fetiche. Isto é, a inteligência artificial não tem por objetivo imitar a mente humana ou substituí-la. Achar que ela pode tomar o lugar da mente humana é alimentar uma mentalidade de super-heróis dos gibis. Por favor, menos.

Numa aula de cosmologia, o professor colocou no quadro-negro as proporções de nosso universo: num canto, um quadradinho representava todo o universo que, de algum modo, podemos ver ou conceber; do mesmo canto partia um quadrado maior que chegava ao centro do quadro-negro, indicando a matéria escura ainda desconhecida por nós; o resto do quadro-negro era ocupado pela energia escura, igualmente desconhecida. Nós, humanos, somos um nada invisível num pálido ponto azul (a Terra nas palavras de Carl Sagan) perdido naquele quadradinho diminuto no canto do quadro-negro. Uma lição de humildade.

Ainda assim, o quadradinho encolhido no alto do quadro-negro é o nosso universo, aquele que nos deslumbra pela imensidão e nos intimida pelo desconhecido. Entendo que cada um de nós possui na cabeça universo semelhante. A mente humana equivale ao universo na medida em que contém igual imensidão e igual desconhecido. Assim como os estudos sobre o universo, as pesquisas sobre a mente humana avançam com eficiência e celeridade, mas cumpre lembrar que ainda se encontram em fases preliminares.

Só que não é apenas a dificuldade dos estudos que impede a cópia da mente humana. Que esses estudos avancem cada vez mais e tragam auxílios de suma importância para o conhecimento humano. Mas é essencial desfazer o fetiche, a quimera. A mente humana não pode ser copiada, clonada, imitada, porque ela tem características irredutíveis a essa tentativa. Como a vida, a mente humana é imperfeita. Impossível copiar a imperfeição.

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Rosaura Eichenberg

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