de revoada

14.09.2023 – Capitu

 

Na leitura dos romances de Machado de Assis, um enigma intriga os brasileiros há mais de um século. Considero Dom Casmurro a obra-prima de Machado, e me fascina sua criação de Capitu, que figura na literatura ocidental como uma das maiores personagens femininas.

O romance é narrado em primeira pessoa por Bentinho, o marido de Capitu, e uma dúvida cruel impregna tudo o que ele apresenta ao leitor: Capitu o traiu com seu melhor amigo?

Como atestam as várias leituras ao longo dos anos, essa dúvida toma conta do próprio leitor – Capitu traiu ou não traiu? Quem acompanha as discussões que daí decorrem tem a sensação de que vão discutir ad aeternum. Muitos, como Millôr Fernandes e Otto Lara Resende, descem do alto de suas inteligências para afirmar que é claro que ela traiu, tá na cara, quem não percebe a traição deturpa Machado. Outros defendem que ela não traiu, que tudo não passa de ciúmes de Bentinho, o narrador do romance. E por aí vão – traiu ou não traiu… Eugênio Gomes chegou a escrever um ensaio sobre Capitu, O Enigma de Capitu.

Uma leitura atenta do romance constata uma característica peculiar, não sendo preciso ter conhecimento de recursos literários para perceber o que é bastante visível. Basta atenção ao ler.

O romance é construído pelo autor, isto é, por Machado de Assis, de um modo que inviabiliza qualquer resposta à dúvida – Capitu traiu ou não traiu? Atrás dos personagens, mesmo atrás do personagem narrador, o autor impede que o enigma encontre solução. Por isso acho que esses que se empenham em discutir a traição/não traição de Capitu vão passar a vida perguntando – traiu ou não traiu?

Minha impressão é que todos os que afirmam categoricamente que ela traiu, ou que ela não traiu, não estão falando de Capitu, nem do romance Dom Casmurro, mas apenas deles mesmos.

Não sou expert em Machado de Assis, e minha opinião pouco vale, mas não custa registrá-la.

Capitu é personagem de carne e osso, a menina com olhos de cigana oblíqua, a mulher com olhos de ressaca no velório do suposto amante. Minha leitura não tem nada a ver com símbolos, alegorias ou coisa parecida, porque figuras simbólicas nos romances tendem a ser planas como papel de parede. Capitu é de carne e osso.

Minha leitura é no sentido de que ela personifica, ou melhor, encarna a vida, e, como todo ser humano, o personagem narrador passa todo o tempo a se debater com a dúvida cruel:  Capitu traiu? Ela está me traindo? O que não o impede de amá-la muito.

Não é uma visão doce da vida, mas é real.

 

 

Rosaura Eichenberg

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