de revoada

04.12.2020 – Sertão

 

“Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.”

Grande Sertão: Veredas
João Guimarães Rosa

 

 

Equipe Ibis

Rosaura Eichenberg

04.12.2020 – Thérèse de Lisieux

 

Aimer c’est tout donner et se donner soi même.” 

                                             Thérèse de Lisieux

                                 Santa Teresinha do Menino Jesus

 

 

Equipe Ibis

Rosaura Eichenberg

30.11.2020 – Leituras de Bob Dylan

 

No seu livro Chronicles (volume 0ne), Bob Dylan tece comentários sobre a leitura de Vom Kriege de Clausewitz:  

 “When he [Clausewitz] claims that politics has taken the place of morality and politics is brute force, he’s not playing… Don’t give me any of that jazz about hope or nonsense about righteouness. Don’t give me that dance that God is with us, or that God supports us. Let’s get down to brass tacks. There isn’t any moral order. You can forget that. Morality has nothing to do with politics… This is the way the world is and nothing’s gonna change it. It’s a crazy, mixed up world and you have to look it right in the eye. Clausewitz in some ways is a prophet.”

“Quando ele [Clausewitz]  afirma que a política tomou o lugar da moralidade e que a política é força bruta, ele não está brincando… Não me venham com esse jazz de esperança ou disparate a respeito de justiça. Não me venham com essa dança de que Deus está conosco, ou de que Deus nos sustenta. Vamos ao que importa. Não há ordem moral. Podem esquecer. A moralidade não tem nada a ver com a política… O mundo é assim e nada vai mudá-lo. Um mundo louco e confuso,  e temos de de encará-lo bem no olho. Clausewitz é de certa maneira um profeta.”   

É um comentário duro, difícil de aceitar por aqueles que acreditam que Deus está conosco e que Deus nos sustenta. Mas cabe refletir sobre a política ter tomado o lugar da moralidade e a política ser força bruta, que em nossos tempos modernos se diversifica em tecnologias sutis como as dos meios de comunicação. Diante do que estamos vendo acontecer em nosso mundo, Dylan não está longe da verdade quando diz que Clausewitz é de certa maneira um profeta.

 

 

Sua leitura de O General Ateniense de Tucídides também assusta:

“It was written four hundred years before Christ and it talks about how human nature is always the enemy of anything superior. Thucydides writes about how words in his time have changed from their ordinary meaning, how actions and opinions can be altered in the blink of an eye. It’s like nothing has changed from his time to mine.”

“Foi escrito quatrocentos anos antes de Cristo e diz que a natureza humana é sempre inimiga de qualquer coisa superior. Tucídides escreve que as palavras em seu tempo mudaram seu significado comum, que as ações e as opiniões podiam ser alteradas num piscar de olhos. É como se nada tivesse mudado de seu tempo para o meu.”

 

 

E para aliviar a dureza dessas duas passagens do livro, eis um trecho em que Dylan se revela americano até a medula dos ossos:

Being born and raised in America, the country of freedom and independence, I had always cherished the values and ideals of equality and liberty. I was determined to raise my children with those ideals.”

“Nascido e criado nos Estados Unidos, o país da liberdade e da independência, eu sempre prezei os valores e ideais de igualdade e liberdade. Estava determinado a criar meus filhos com esses ideais.”  

 

Equipe Ibis

04.08.2020 – Uma recomendação de Rainer Maria Rilke

 

Lesen Sie möglichst wenig ästhetisch-kritische Dinge, es sind entweder Parteiansichten, versteinert und sinnlos geworden in ihrem leblosen Verhärtetsein, oder es sind geschickte Wortspiele, bei denen heute diese Ansicht gewinnt und morgen die entgegengesetzte. Kunst-Werke sind von einer unendlichen Einsamkeit und mit nichts so wenig erreichbar als mit Kritik. Nur Liebe kann sie erfassen und halten und kann gerecht sein gegen sie. Geben Sie jedesmal sich und Ihrem Gefühl recht, jeder solchen Auseinandersetzung, Besprechung oder Einführung gegenüber; sollten Sie doch unrecht haben, so wird das natürliche Wachstum Ihres inneren Lebens Sie langsam und mit der Zeit zu anderen Erkenntnissen führen.

Rainer Maria Rilke 

 

Leia o mínimo possível de textos críticos e estéticos; ou são pontos de vista parciais, petrificados e sem sentido em seu endurecimento sem vida, ou são jogos de palavras hábeis nos quais uma visão vence hoje e a visão oposta amanhã. A solidão das obras de arte é infinita, e nada as alcança menos do que a crítica. Somente o amor pode compreendê-las, conservá-las e tratá-las com justeza. Sempre dê a si mesmo e a seus sentimentos a primazia sobre qualquer uma dessas explicações, recensões ou introduções; se você estiver errado, o crescimento natural de sua vida interior o levará lentamente com o passar do tempo a outras compreensões.

 

Equipe Ibis

03.08.2020 – Um pensamento de Rainer Maria Rilke

 

Wenn Ihr Alltag Ihnen arm scheint, klagen Sie ihn nicht an; klagen Sie sich an, sagen Sie sich, daß Sie nicht Dichter genug sind, seine Reichtümer zu rufen; denn für den Schaffenden gibt es keine Armut und keinen armen, gleichgültigen Ort.

                                                     Rainer Maria Rilke

 

Se o cotidiano lhe parece pobre, não o culpe por isso; culpe a si mesmo, diga a si próprio que não é deveras poeta para invocar suas riquezas; para quem cria, não há pobreza, nenhum lugar pobre e indiferente.

 

Equipe Ibis

03.12.2019 – O alerta de Ricardo III

 

William Shakespeare criou Ricardo III ainda antes de 1600.

A peça histórica se debruça sobre a ascensão de Ricardo III ao poder. Uma consulta à Enciclopédia Britânica nos informa que o reinado de Ricardo III foi curto e que, por ser muito bom administrador e ter diminuído os impostos, esse rei foi bastante popular. Entre o período de vida de Ricardo III e o de Shakespeare estende-se um longo século, e foi com as lendas criadas em torno do rei já remoto que o dramaturgo inglês moldou o corcunda maligno que marcou para sempre a imaginação da humanidade. Mesmo pessoas que nada sabem de Shakespeare e suas obras assentem com um olhar de reconhecimento, se alguém lhes fala da cena magistral do corcunda correndo pelo campo de batalha a gritar ‘Meu reino por um cavalo!’

A peça abre com um longo monólogo do protagonista corcunda. Obedecendo as regras do teatro elizabetano, ele tem de fornecer ao público as coordenadas principais da ação que se desenrolará no palco. Assim, ele começa dizendo que as guerras acabaram na Inglaterra e que os York venceram.

“Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York.”

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E passa a descrever os tempos de festas e folguedos que substituíram as agruras das batalhas. Mas ele, corcunda, malformado a ponto de os cães ladrarem à sua passagem, ele não tem lugar nesses dias felizes. E por isso, como não pode amar e ser amado, decidiu ser um vilão.

“…since I cannot prove a lover,
To entertain these fair well-spoken days,
I am determined to prove a villain.”

Dessa forma, a plateia toma conhecimento de que ele tem uma agenda de destruição por ser um vilão. Seus companheiros de palco de nada sabem, não desconfiam de sua pessoa nem de seus planos, imersos em ignorância, mas o público está ciente do mal a ser cometido e por quem. É com essa estrutura delineada na cena inicial que Shakespeare constrói sua peça.

Ao longo do desenrolar da trama, as intrigas e matanças vão obedecer a agenda destrutiva do autodeclarado vilão, e o grande espetáculo é o modo insinuante com que ele consegue distorcer a visão de todos, impedindo que sejam desmascarados seus engodos. Ele é certamente o grande protagonista, todos os outros personagens esvaecem à sua sombra. Sua inteligência e retórica brilham ao enganar todo mundo, seja porque sua lábia ludibria os incautos, seja porque sabe fazer uso das fraquezas alheias.

Dentre as várias cenas de engambelação, salienta-se a demagogia de quando os cidadãos se dirigem ao mosteiro onde o monstro corcunda se recolheu contrito a ler escrituras sagradas, para insistirem e acabarem com sua relutância em aceitar a coroa e o reino. Mas nem essa armação consegue superar a repulsa de outra cena.

Nos corredores do palácio, passa o cortejo fúnebre do rei Henrique VI, derrubado pelos York. Ao seu lado, uma dama da corte, Lady Anne, viúva do filho desse rei, presta as últimas homenagens ao morto. O cortejo se interrompe quando o corcunda entra em cena e passa a falar com a dama. Por meio de malabarismos retóricos, consegue convencê-la a se casar com ele. E no pequeno monólogo após a cena, ele tripudia em cima da dama: como é possível ter vencido sua resistência quando ele é que matou o rei no caixão e seu filho que era o marido da dama? A malignidade do monstro corcunda é esse seu total desprezo pelos outros seres humanos, meros joguetes nas suas mãos.

A peça foi encenada pela primeira vez antes de 1600. Informa com clareza cristalina que só se estabelece uma tirania havendo duas condições:

– Um ser deformado, um corcunda, alguém que quer o poder pelo poder para destruir

–  Um bando de palermas, patetas, imbecis, estúpidos, ignorantes, retardados mentais, gente incapaz de pensar

Não é extraordinário que seu alerta esteja mais atual que nunca neste nosso século XXI? Os corcundas proliferam no globo, com os olhos apertados dos chineses, os traços eslavos dos russos, os turbantes e túnicas dos povos do Oriente Médio e do islã, as faces ocultas dos globalistas que vazam moedas por todos os poros.

Para que seus planos de impérios globais, necessariamente totalitários, tenham êxito, é preciso criar a segunda condição prescrita por Shakespeare. Há que transformar a humanidade numa manada de imbecis. Assim inventaram mecanismos eficazes para disseminar a parvoíce pelo mundo, ou não é esse o objetivo mais evidente do pensamento politicamente correto? Não é preciso ter uma avaria nos neurônios para cair na cilada da argumentação falha e da retórica bandida das mudanças climáticas? Apenas quem desistiu do potencial de pensar embarca nos engodos das políticas identitárias, desconsidera a inversão do sentido das palavras, julga normal o total desprezo pela realidade dos fatos.

Shakespeare gosta de inserir no desenrolar da trama personagens populares que tecem comentários sobre a ação representada. Assim um escriba que acabou de redigir um mandado de prisão e execução de um dos inimigos do corcunda já rei observa:

Here’s a good world the while! Why, who’s so gross,
That seeth not this palpable device?
Yet who’s so blind, but says he sees it not?
Bad is the world, and all will come to nought,
When such bad dealing must be seen in thought.

Quando se observa o mundo imbecilizado que está sendo estabelecido pelos corcundas modernos, fica-se em dúvida – será o mundo dos yahoos e huyhnhnms visitado por Gulliver ou o mundo insano de Alice no País das Maravilhas?

Resta-nos ler e reler Ricardo III. A peça de Shakespeare deveria ser encenada pelo mundo afora hoje em dia, para que a humanidade escutasse com atenção um alerta de tantos séculos atrás.

 

Rosaura Eichenberg

14.05.2019 – Uma frase de Oscar Wilde

 

Muitas vezes lemos, no meio de ensaios e até reportagens, citações que nos detêm na correria do cotidiano e nos fazem refletir. O cérebro como que se volta para o interior e imprime novo ritmo à nossa busca de compreensão. A frase que hoje veio conversar comigo é do grande escritor Oscar Wilde, nascido na Irlanda como sói acontecer na literatura inglesa.

“We are all in the gutter, but some of us are looking at the stars.”

Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão olhando para as estrelas.”

 

A citação é da comédia de costumes Lady Windermere’s Fan de 1892.

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Rosaura Eichenberg

06.04.2019 – Sobre “Instinto de Nacionalidade” de Machado de Assis

 

 

Em 1873, um jovem Machado de Assis de 34 anos escreveu um ensaio crítico sobre a literatura brasileira então nos seus primórdios. Deu ao seu estudo o nome de “Instinto de Nacionalidade”, que definiu como “o geral desejo de criar uma literatura mais independente”.

E advertia: “Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.”

Na literatura de seu tempo, já vislumbrava uma tendência a essa desejada independência na escolha de temas próprios da terra, o que ele chama cor local. Analisava com muita propriedade o tema do índio que era então explorado nas obras de Gonçalves Dias, José de Alencar e outros. Afirmava:

“É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos de nossa personalidade literária.”

Mas ponderava que essa constatação não exclui os índios das páginas literárias, por serem um tema capaz de inspirar os escritores. E continuava lembrando que a paisagem exuberante das terras brasileiras não só estimula como desafia o estro de nossos poetas e prosadores.

Alertava, entretanto, que essa primeira fase de explorar a cor local devia ser ultrapassada, e propunha a questão da brasilidade em termos que ainda não foram superados nem mesmo neste nosso século XXI. Dizia:

“O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

E explicitava o que estava querendo dizer:

“Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial.”

Machado de Assis vai fundo no que constitui a cultura de um grupo humano. Ele sabe que os aspectos exteriores são apenas faceta vistosa, muitas vezes incapazes de revelar a trama sutil das vivências que urdem o tecido do convívio humano.  Por isso diz que a personalidade literária brasileira não será encontrada na beleza variegada de nossas paisagens, no caudaloso Amazonas nem nos córregos que enfeitam as várzeas, nem tampouco nos costumes pitorescos de cada região.

Apesar de os brasileiros terem uma forte inclinação para a anarquia do carnaval, a brasilidade não precisa vestir fantasias para se realizar. Deve ser antes buscada no sentimento interior dos que habitam esta terra. Como diz Machado de Assis:

“… e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e o Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.”

Isto é, os brasileiros podemos nos fantasiar de dançarinos de tarantela, messalinas, super-heróis, arlequins e pierrôs que a brasilidade íntima acabará se revelando entre os panos e véus.

Já se passou mais de século desde a publicação do ensaio machadiano, e muitas obras de nossa literatura percorreram o caminho da busca de nossa brasilidade intrínseca, inclusive a própria obra de Machado de Assis. Duas realizações sobressaem nessa procura, dois grandes escritores que se debruçaram sobre o sertão brasileiro, Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa.

“Os Sertões” relata a luta que se desenrolou em Canudos, região norte da Bahia, no final do século XIX, entre as forças governamentais e os rebeldes aglomerados em torno de Antonio Conselheiro.  O livro se divide em três partes: a terra, o homem e a luta. Na primeira, Euclides da Cunha está longe de criar apenas a cor local com a descrição da catinga nordestina. A sua apresentação geográfica é dramática, a natureza revelando o embate das grandes forças em ação na região. Ao falar do homem na segunda parte, Euclides recorre às teorias correntes no seu tempo para tentar caracterizar os seres humanos que habitam o nordeste brasileiro. Emula o cientista que se debruça sobre seu objeto de estudo com lupas especiais, sem se preocupar em verificar a precisão das lentes. E ao descrever a luta em Canudos na terceira parte, Euclides parte ao encontro de uma realidade que até então desconhecia. A tarefa que se propusera realizar era reportar o conflito que se desenrolava na região, mas o repórter se viu às voltas com a descrição de um país que era o seu, mas que lhe era estranho. Euclides da Cunha vinha tornar visível o hiato entre os brasileiros e eles próprios, focalizando a distância concreta entre o Brasil litorâneo e o Brasil dos sertões. Mais uma descoberta do Brasil, numa lista que não parece ter fim.

João Guimarães Rosa é outro desbravador da realidade brasileira. Em sua obra, vamos encontrar de novo as lacunas concretas de nossa cultura fragmentada, e a busca de conhecer um Brasil envolto num sertão que adquire contornos míticos. Ele vivencia esse confronto com o país desconhecido no âmbito da linguagem. No seu livro de estreia, Sagarana, ainda coloca entre aspas as expressões e frases idiomáticas com que entrava em contato na paisagem mineira. Mas nos livros seguintes, a linguagem já se metamorfoseia para tentar revelar a fusão de idiomas diversos, uma multiplicidade barroca abrindo-se em tudo quanto é direção. A leitura de João Guimarães Rosa proporciona encontros e desencontros brasileiros, estonteante a diversidade das veredas a serem trilhadas pelo grande sertão.

E que dizer do próprio Machado de Assis? Ele ajustou suas lentes sobre o ambiente urbano, seguindo uma linha já experimentada por Manuel Antônio de Almeida em seu Memórias de um Sargento de Milícias. E coerente com o que escreveu em seu ensaio de 1873, não se deteve no superficial, nem deixou que os clichês e a cor local embaçassem sua visão. Procurou transpor o hiato entre o brasileiro que vive uma realidade e o brasileiro que se vê vivendo essa realidade com toda a sutileza de sua ironia. Num de seus romances, Quincas Borba, caricaturou a Belle Époque no Rio de Janeiro, os brasileiros macaqueando os costumes, os trejeitos, o luxo, as modas de Paris. Mas esses quadros gerais são apenas contrapontos aos indivíduos que têm sua trajetória acidentada traçada em busca de algum ou nenhum sentido para suas vidas. De suas histórias relatadas com muita ironia é que tende a brotar o encontro com o brasileiro.

O interessante é observar a reação dos leitores aos romances de Machado de Assis. A maioria dos brasileiros trata Machado como se fosse bicho raro, alguma coisa que não conseguem compreender muito bem. Declaram que ele não falou dos brasileiros, mas escreveu histórias universais. Pasteurizam Machado de Assis e sentem-se aliviados por serem capazes de guardar o incômodo em gavetas emperradas. Os leitores ainda procuram nas letras a cor local, os aspectos exteriores mais fáceis de serem assimilados. Preferem ler Jorge Amado que criou vários romances redigidos, com todo o devido respeito, quase que para turistas. E mesmo a ironia de um Lima Barreto, a carnavalização de um Mario de Andrade parecem mais palatáveis por se manterem à tona sem se embrenharem nos caminhos iluminados pela luz oblíqua de Machado de Assis.

A caricatura da Belle Époque no Rio de Janeiro traçada por Machado de Assis talvez nos conduza a uma possível compreensão dessa incapacidade de os brasileiros saberem de si mesmos, de irem além dos aspectos exteriores. Com as honrosas e múltiplas exceções – por exemplo, o estudo de Gilberto Freyre em Casa Grande Senzala – os brasileiros tendemos a ver o Brasil com lentes estrangeiras adquiridas em Paris, nos Estados Unidos, na Europa, nos grandes centros culturais do Ocidente. Essa visão de fora trai a realidade, e por isso recuamos assustados quando um Euclides da Cunha ou um João Guimarães Rosa nos mostra um país desconhecido. Ou quando um Machado de Assis nos convida a acompanhá-lo numa busca de nós mesmos.

A verdade muito amarga é que o alerta do artigo machadiano sobre Instinto de Nacionalidade não perdeu sua validade. Neste século XXI, os brasileiros ainda não sabemos de onde viemos, quem somos, para onde vamos. Ele avisou que nossa independência “não se fará num dia” – ainda tarda o cumprimento de nosso destino.

 

Rosaura Eichenberg

12.02.2018 – Um Recado de Machado de Assis

 

Examinando um texto crítico de Machado de Assis, “Instinto de Nacionalidade”, escrito em 1873, encontrei um recado aos jovens escritores daqueles tempos que cai como uma luva em nossos dias. Diz ele:

“Outra coisa de que eu queria persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos escritos. Há um prurido de escrever muito e depressa, tira-se disso glória, e não posso negar que é caminho de aplausos. Há intenção de igualar as criações do espírito com as da matéria, como se elas não fossem nesse caso inconciliáveis. Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias, para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.

Atualmente, quando as obras de arte parecem feitas de afogadilho, sem haver maturação na sua produção e recepção, vale escutar o conselho de Machado de Assis. Muitos escritos e imagens entram no turbilhão da web, conquistam fama efêmera, e logo são descartados. Por falta de maior reflexão sobre o tema, não afirmo que seu defeito principal seja essa precipitação, mas o fato de os produtos artísticos serem descartáveis é certamente sinal de que  há algo de podre no reino da Dinamarca. E acho que Machado de Assis acertou em cheio ao apontar o equívoco de querer igualar as criações do espírito com as da matéria. Fruto desse erro de monta, a arte acaba no mesmo grande lixo de matéria consumida. A sociedade moderna, globalizada e massificada, incute um novo modo de lidar com o tempo, e há que reconhecer as características e os muitos defeitos intrínsecos dessa mudança. Repito Machado de Assis, que os clássicos têm muito a nos dizer:

“Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias, para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.”

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Rosaura Eichenberg

04.12.2017 – Gonçalo Mendes Ramires

 

Casa da Torre da Lagariça (Ilustre Casa de Ramires)

Das minhas leituras dos romances de Eça de Queirós, sempre guardei a impressão de um magnífico panorama da vida humana com todas as suas idiossincrasias. A riqueza dos detalhes das variadas figuras que perambulam pelas páginas do escritor português é de uma excelência ímpar. E também sempre me surpreendeu que os protagonistas se mostrem ralos, sem que seus dramas pessoais adquiram realmente vida. Os personagens principais dos romances de Eça de Queirós esmaecem na memória do leitor em contraste com um ou outro detalhe vívido de figuras secundárias.

A leitura de A Ilustre Casa de Ramires me reservou uma surpresa. O fidalgo da Torre, último representante da Casa de Ramires, não é dessas figuras que deixam poucas marcas no leitor. Gonçalo Mendes Ramires adquire contornos palpáveis no romance.

A narrativa é construída em dois planos – a história dos ancestrais guerreiros dos Ramires apresentada em tons um tanto debochados, e as desventuras do último representante da casa ilustre que empreende a redação da história de sua família.

Impossível deixar de rir, mesmo que à socapa, do grande antepassado que se chama Tructesindo. Não sei se esse nome é histórico ou inventado por Eça de Queirós, mas provoca o espírito de troça no leitor. Essa narrativa de grandes feitos heroicos descortina quadros épicos que Eça de Queirós pinta com maestria, sem deixar de sublinhá-los com a ironia que lhe é peculiar. No auge da peleja, chega a insinuar uma observação prosaica de que toda a fúria guerreira talvez não tenha razão de ser.

As desventuras do último dos Ramires traçam os contornos de um personagem com graves defeitos de caráter e um quê de covardia. Eça de Queirós delineia muito bem os desvãos da personalidade do fidalgo – o modo como ludibria sua consciência para fechar um negócio mais lucrativo apesar de ter empenhado sua palavra com outro parceiro, a manobra de restabelecer uma amizade do passado para conseguir apoio político, mesmo que isso possa ter consequências funestas para a situação moral de sua irmã, sua disposição a considerar o casamento com uma mulher que não lhe agrada só por ela ter fortuna. Uma personalidade que flerta com a canalhice e que, ainda por cima, se acovarda diante de quem o intimida.

O romance segue os desacertos do fidalgo e acaba delineando uma mudança no personagem. Num rompante inesperado, ele enfrenta o valentão que se comprazia em intimidá-lo, um sujeito de barba ruiva igual à do inimigo de seus antepassados. Com essa façanha, ele como que retoma seu lugar na Torre dos Ramires, e adquire uma estatura de verdadeiro fidalgo. Eça de Queirós chega a esboçar uma reflexão do personagem sobre a fragilidade e a falta de sentido da vida.

A transformação, entretanto, se mostra tão rala quanto as aventuras ao longo do romance. De acordo com outro personagem, Antônio Vilalobos, vulgo Titó, um homenzarrão desajeitado feito de material moral mais sólido, Gonçalo Mendes Ramires é leviano, mas seu amigo.

Tudo levaria a crer que mais uma vez o protagonista de um romance de Eça de Queirós prima por ser bastante superficial e irrelevante. Seu caráter é muito bem analisado pelo autor, mas seu destino parece tão sem graça quanto o de seus antepassados de nomes risíveis. Entretanto, não é o que acontece.

Gonçalo Ramires por Tomaz de Melo (Tom)

Gonçalo Mendes Ramires cativa o leitor. Ele é dado a ações ínfimas, coisas mínimas, sem importância, como o autor não cansa de repetir. Quando um escritor insiste em frisar que algo é coisa muito pequena, sem relevância, o leitor tem mais é que desconfiar. Pode muito bem ser que se trate do que há de mais precioso no livro.

O fato é que o fidalgo costuma ajudar as outras pessoas. Um trabalhador está com o pé ferido, o fidalgo lhe empresta a montaria e segue a pé ao seu lado. A espontaneidade da sua ação é real, mas ainda é possível escutar vozes céticas que questionem seu altruísmo. Essas vozes se calam, porém, numa outra cena comovente. O fidalgo é ameaçado por um lavrador que se ressentia de o fidalgo ter rompido o negócio apalavrado com ele. Como de costume, o fidalgo se acovarda e foge, mas não deixa de pedir a prisão do agressor no dia seguinte. Numa noite de chuva torrencial, a mulher do lavrador procura o fidalgo junto com os filhos pequenos para pedir que o marido seja libertado. O fidalgo lhe assegura que o homem estará livre no dia seguinte, e diz que ela deve voltar para casa.  Mas então percebe que o menino que a acompanha está doente com febre, e por isso não deixa que ela o leve de volta embaixo da chuva forte. Agasalha o menino, coloca-o na cama, acarinha a criança e, mais de uma vez durante a noite, vem ver como está o doente, se a febre amainou. É uma cena ínfima, coisa sem importância, mas que o leitor grava na memória. Muito mais impressionante que todas as façanhas do Tructesindo.

Gonçalo Mendes Ramires fascina por se revelar partícipe do destino do comum dos mortais. Como acontece na vida, há algo insondável na sua natureza que o torna vivo. Muitas vezes é o inferno interior que atrai os escritores que buscam conhecer o ser humano. O protagonista Gonçalo Mendes Ramires aponta que o céu interior também não deixa de ser insondável.

 

Rosaura Eichenberg

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