Num seminário de literatura sobre a obra de Machado de Assis, realizado há mais de três décadas, tive uma experiência surrealista. Quase sem querer, eu me referi a Machado de Assis como escritor brasileiro, o que desencadeou uma saraivada de golpes desferidos por meus colegas. Como eu poderia dizer asneira tamanha? Só quem não era capaz de leitura crítica podia falar tal coisa. Sem conseguir acreditar no que escutava, fiquei sabendo que Machado de Assis foi um escritor universal, que de brasileiro não tinha nada. Confesso que não consegui acompanhar a discussão cerrada que se seguiu por causa de minha total perplexidade, mas ainda me lembro de um argumento – Machado de Assis não era brasileiro porque escrevia bem, brasileiro era Jorge Amado que escrevia mal. Sempre que penso nesse acontecimento do passado, lembro que Machado de Assis escreveu um texto fundamental a respeito da, vamos dizer, brasilidade. “Instinto de Nacionalidade” é um ensaio sobre a literatura brasileira, principalmente a realizada pelos românticos, em que ele propõe que os escritores abandonem o fascínio pelos aspectos exteriores de nossa paisagem, flora e fauna, inclusive a humana, e procurem cuidar do sentimento interior que caracteriza os brasileiros. Resumindo de modo grosseiro, ninguém precisa se fantasiar para ser brasileiro. E lembro também que Machado não só formulou o enigma brasileiro de maneira brilhante – seu ensaio ainda continua sem resposta depois de tantos anos – como também realizou o que propunha na sua obra. Pois não criou por acaso uma das mais impressionantes personagens femininas da literatura ocidental, que não pode ser senão brasileira?