Há escritores que são realmente tragados pela própria obra. Às vezes fico pensando que vai chegar o dia em que os espanhóis não saberão quem foi Miguel de Cervantes, mas todos reconhecerão Dom Quixote. Shakespeare é um desses escritores – sua obra é um verdadeiro oceano, quase impossível imaginar que tenha saído de letras desenhadas por uma pena. Na Enciclopédia Britânica, encontra-se uma descrição surpreendente de Ricardo III da Inglaterra, o personagem central do drama histórico The Life and Death of King Richard III, que versa sobre a tirania. A figura histórica não corresponde ao monstro genialmente criado por Shakespeare – enredado, sem dúvida, nos conflitos e costumes um tanto bárbaros da época, o rei parece ter sido um bom administrador e respeitado pelos seus súditos. Além disso, não há retratos, nem relatos da época que confirmem o fato de que era corcunda. Em fevereiro de 2013, arqueólogos descobriram em Leicester o esqueleto de Ricardo III, e revelou-se que ele sofria de uma escoliose bem acentuada, mas não era corcunda. Um século separa as vidas de Ricardo III e Shakespeare, e, ao escrever o drama, esse último teria se baseado em lendas criadas por motivos políticos e muito do agrado da dinastia Tudor. Além do mais, o interesse maior de Shakespeare era escrever sobre a tirania. Mas isso nos leva a pensar sobre a força da ficção, ou melhor, de certas obras de ficção. Poucos se darão ao trabalho de procurar conhecer o Ricardo III histórico, mas quem não guardará na memória o monstro corcunda, capaz de maldades e mais maldades, a correr pelo campo de batalha gritando ‘Meu reino por um cavalo!’?