O primeiro romance de Carson McCullers, O Coração é um Caçador Solitário, foi publicado em 1940, quando a autora americana tinha 23 anos. A história se desenrola numa pequena cidade do Estado de Georgia, numa época em que o Sul dos Estados Unidos sangrava com seus conflitos raciais e sociais.
O foco do romance recai sobre a solidão humana, e não é por acaso que o personagem central do romance seja um surdo-mudo. Uma cena do romance muito me impressionou. Passa-se numa esquina da cidadezinha, numa noite de muita chuva, entre dois personagens do romance. Um deles é o surdo-mudo, que catalisa as idas e vindas da trama, e o outro é um médico negro que trabalha duro para atender a clientela dos bairros negros. O médico é um homem instruído, em constante conflito com os filhos adultos e a família da mulher já falecida por não concordar com a passividade dos negros diante da insolência da raça branca.
“Havia sido numa noite escura e chuvosa, várias semanas antes. Ele tinha acabado de atender uma paciente grávida e estava de pé parado na chuva, na esquina de uma rua. Tentava acender um cigarro e, um a um, os fósforos em sua caixa negavam fogo. Ele estava ali de pé com o cigarro não aceso na boca, quando o homem branco se aproximou e segurou para ele um fósforo aceso. No escuro, com a chama entre eles, os dois podiam ver o rosto um do outro. O homem branco sorriu e lhe acendeu o cigarro. Ele não sabia o que dizer, porque nada assim jamais lhe acontecera antes.
Ficaram parados juntos por alguns minutos na esquina da rua, e depois o homem branco lhe entregou seu cartão. Ele queria falar com o homem branco e fazer-lhe algumas perguntas, mas não sabia ao certo se ele conseguiria responder. Dada a insolência de toda a raça branca, ele tinha medo de perder sua dignidade sendo afável.”
Este olhar trocado entre o homem branco e o homem negro debaixo de chuva, à luz da chama de um fósforo no escuro da noite, me fez pensar em Martin Luther King. Até fiquei imaginando a cena pintada por um daqueles cineastas americanos que sabiam fazer filmes como ninguém.
Carson McCullers. O coração é um caçador solitário. São Paulo, Carambaia, 2022.