Stephen Greenblatt escreveu uma bela biografia de William Shakespeare, Will in the World, na qual reconstitui com muito talento a época em que a maior obra da literatura inglesa foi escrita. Seu estudo é fundamentado em documentos e registros históricos do período, bem como em evidências encontradas nas próprias tragédias, comédias e dramas históricos shakespearianos.
Desde o século XVIII existe entre os estudiosos que se debruçam sobre a vida e obra de Shakespeare uma polêmica a respeito da autoria das peças. Ninguém põe em dúvida a existência do homem Shakespeare – nascido em Stratford-upon-Avon, filho de um luveiro e negociante de gado clandestino, casado com uma mulher oito anos mais velha quando ele tinha dezoito anos, pai de três filhos, radicado mais tarde em Londres, onde atuou em companhias teatrais famosas como Lord Chamberlain’s Men, que depois se torna The King’s Men, enriquecido a ponto de comprar muitas propriedades e imóveis, todos na região de Stratford-upon-Avon. O que se questiona é se esse homem seria realmente o autor da obra, se não haveria por trás de seu nome outro dramaturgo de posição social elevada e instrução refinada que, segundo alguns, estivesse mais à altura das peças. E, ao longo dos séculos, estudiosos da literatura têm apresentado possíveis candidatos ao posto de maior escritor da literatura inglesa e da literatura ocidental.
Ao tomar conhecimento dessa polêmica, não lhe dei atenção achando que se tratasse de mais uma loucura dos ingleses (nem sei bem como se formou essa imagem na minha cabeça, mas os ingleses me parecem um povo, no mínimo, excêntrico). Stephen Greenblatt escreve seu livro sem nem sequer mencionar a questão da autoria. Dá por estabelecido que as peças foram escritas pelo homem Shakespeare, e ponto final. O estranho é que a leitura da biografia escrita por Greenblatt me fez compreender pela primeira vez a existência dessa discussão, porque é espantosa a falta de documentação sobre Shakespeare – o dramaturgo e homem de teatro. Inexistência dos manuscritos das peças, ausência de cartas por ventura escritas por ele, pouca ou nenhuma menção ao teatro ou a livros em seu testamento. Esse ultimo documento tem como tema principal as várias propriedades que comprou em Stratford-upon-Avon, e deixa margem a dúvidas quanto à atividade do homem que ali dispõe de seus bens. Difícil imaginar que se tratasse de um homem de teatro, e mais, de um dramaturgo famoso e celebrado na época.
Ao longo da narrativa, dois momentos parecem realmente obscuros na vida de Shakespeare. Ao primeiro, os eruditos ingleses deram até o nome de “os anos perdidos” – é quando Shakespeare, instalado na casa do pai com a mulher e os três filhos, aparentemente bem estabelecido em Stratford-upon-Avon, abandona a cidade e a família, e toma o rumo de Londres. As perguntas sobre esse episódio de sua vida são legião. Por que decidiu ir para Londres? Por que não levou a família? Por que jamais mandou buscar a mulher e os filhos para lhe fazer companhia em Londres? Como foi o início de sua atividade teatral na cidade? Começou fazendo de tudo no teatro, um verdadeiro factótum que dizem ter desempenhado até a função de cuidar dos cavalos dos nobres (um flanelinha daqueles tempos), ou já despontou como dramaturgo respeitado? As perguntas são ruidosas e as respostas, surdas.
O segundo momento que me parece obscuro (e, nesse caso, a impressão talvez seja apenas minha) é sua decisão de abandonar o teatro no auge de sua carreira e retornar a Stratford-upon-Avon para viver com a mulher na mais bela casa da cidade, que comprara anos antes para ser a residência da esposa e das filhas (o filho, Hamnet, que com Judith formava o casal de gêmeos, morrera com 11 anos). Greenblatt estima que a volta a Stratford-upon-Avon ocorreu uns seis anos antes da morte de Shakespeare, por isso esse final de carreira não pode ter sido causado por alguma doença (imagino que as doenças não tinham vida longa naqueles tempos de poucos recursos médicos).
Enfim, lê-se o livro de Stephen Greenblatt como se fosse uma história de detetive, e a imaginação corre solta nos vários e possíveis desdobramentos da ação. Afinal a narrativa é construída por meio de suposições: Shakespeare teria frequentado tal escola, teria feito uma viagem para o norte, teria a proteção de alguém com posição mais elevada (isto e, um nobre), e por aí vai. E depois do livro de Greenblatt, uma rápida procura de dados também me deixou espantada, porque a lista de pessoas célebres que duvidaram da autoria de Shakespeare é desconcertante: Sigmund Freud, Orson Welles, Charles Chaplin, John Gielgud, Mark Twain e muitos outros.
Em sua autobiografia, Charles Chaplin escreve: “Não consigo de modo algum associar o Bardo com [a casa humilde em Stratford-upon-Avon]; parece incrível que uma tal inteligência tenha morado ou começado seu desenvolvimento ali. É fácil imaginar o filho de um fazendeiro emigrando para Londres e tornando-se um ator de sucesso e o dono de um teatro; mas que tenha se tornado o grande poeta e dramaturgo, e que tenha adquirido um tão amplo conhecimento de cortes estrangeiras, cardeais e reis, é inconcebível para mim. Não me interessa saber quem escreveu as obras de Shakespeare, se foi Bacon, Southampton ou Richmond, mas não consigo pensar que tenha sido o menino de Stratford. Quem quer que as tenha escrito possuía uma atitude aristocrática. Sua total desconsideração pela gramática só poderia ser a atitude de uma inteligência principesca e talentosa. E depois de visitar a casa humilde e escutar as escassas informações locais sobre a infância desconexa, o histórico escolar sem interesse, as caçadas em terras alheias e os pontos de vista tacanhos, não consigo acreditar que o jovem de Stratford tenha passado por uma tão extraordinária metamorfose mental a ponto de tornar-se o maior de todos os poetas.”
Confesso que o argumento linguístico – sua total desconsideração pela gramática como manifestação de uma inteligência nobre – calou fundo em mim. Mas se a leitura do livro de Greenblatt me deixou perplexa diante da questão da autoria das obras shakespearianas, além de curiosa e interessada em saber mais sobre Shakespeare, sua época e suas obras, continuo sem vontade de examinar os vários candidatos apresentados até agora por aqueles que duvidam da autoria das peças. Para falar a verdade, ainda fico com o enigma mais antigo – como foi possível que uma obra de tal alcance e envergadura tenha sido escrita pelo engenho humano?