Foi apenas nos anos 1980 que as obras de Franz Kafka receberam boas traduções no Brasil. Antes o português de seus livros levantava muitas barreiras a cada página e desencorajava o leitor mais destemido. Por isso, quando tomei conhecimento de várias obras de Kafka nos anos 1970, li os textos em sua versão inglesa. Mas o impacto que essa leitura me causou não foi pequeno, e logo me vi diante de um dilema. A leitura em inglês não me satisfazia, queria ler os textos do tcheco na minha língua materna ou então, se isso fosse impossível, na língua em que ele escreveu. Tenho ascendência alemã – meu bisavô era alemão – mas não aprendi a língua em casa, apesar de meus pais e meus avós falarem alemão entre si. Muito provavelmente porque a minha infância se passou depois da segunda grande guerra. Na adolescência, fiz algumas tentativas de aprender o idioma, mas as dificuldades sempre superaram o meu empenho bastante fraco. No início dos anos 1980, porém, esse empenho recebeu o empuxo de meu desejo de chegar mais perto do que dizia Franz Kafka em seus livros. E esse empuxo foi suficiente para me guiar pelo labirinto de declinações e verbos no final das frases, um longo percurso que durou uma dúzia de anos. O meu conhecimento da língua alemã ainda deixa muito a desejar, mas consigo ler textos em alemão, e com isso pude me aproximar de Franz Kafka.
O que me impressionou em Kafka foi sobretudo a força concentrada em cada uma de suas frases, as palavras rolando pesadas, funcionando como ímãs. Para falar a verdade, nunca tinha lido ninguém que conseguisse escrever assim. Na prosa de ficção, sempre encontrei o talento dos escritores armando as páginas iniciais para criar o clima da narrativa e envolver o leitor no que aconteceria. Mesmo nas narrativas modernas, que em geral colocam o leitor de imediato no centro da ação, esse trabalho preliminar se faz mister. Kafka é capaz de criar esse clima em uma única página, em um único parágrafo, até em uma única frase ou palavra. Ao ler seu diário, em que muitas vezes esboça fragmentos de narrativa, isso se torna particularmente claro. Não há palavras leves, todas pesam como chumbo. Seu poder de escrita ainda se tornou mais misterioso para mim, quando pude constatar que a linguagem utilizada é simples, sem floreios, sem inovações. Como li em vários estudos sobre Kafka, sua linguagem é quase burocrática. Como compreender sua capacidade de incorporar tamanha força?
No início do diário de Kafka, correspondente ao ano de 1910, encontrei uma reflexão sobre o ato de escrever que se mostra rica em caminhos de interpretação.
Página do diário – 1910
Finalmente, depois de cinco meses da minha vida em que não consegui escrever nada que me satisfizesse, e pelos quais nenhum poder vai me compensar, embora todos tivessem a obrigação de fazê-lo, ocorre-me falar de novo a mim mesmo. A isso sempre respondi, quando realmente me perguntava, que havia ainda algo a irromper de mim, deste monte de palha que sou há cinco meses e que parece destinado a pegar fogo no verão e ser consumido mais depressa que um piscar de olhos dos espectadores. Se isso ao menos acontecesse comigo! E dezenas de vezes deveria acontecer, pois nem sequer me arrependo do tempo infeliz. Minha situação não é infelicidade, tampouco é felicidade, não é indiferença, nem fraqueza, nem cansaço, nem outro interesse, o que é então? Que eu não saiba o que é, depende talvez da minha incapacidade de escrever. E essa acredito compreender, sem conhecer sua razão. Todas as coisas, isto é, todas as que me acontecem, não me ocorrem a partir da raiz, mas só a partir de algum ponto ali pelo meio. Que alguém tente segurá-las, que alguém tente pegar uma gramínea e agarrar-se firme a uma folha de grama, quando ela só começa a crescer pelo meio do talo. Isso conseguem talvez alguns, como, por exemplo, os malabaristas japoneses, que sobem numa escada de mão que não está assentada sobre a terra, mas sobre as solas levantadas de outro malabarista meio deitado no chão, e que não está encostada contra a parede, mas elevando-se tão somente no ar. Eu não consigo fazer essa proeza, independentemente de aquelas solas não estarem à disposição de minha escada. Claro que isso não é tudo, e não é uma pergunta dessas que me leva a falar. Mas todo dia uma linha ao menos deve ser apontada para mim, assim como apontamos o telescópio para os cometas. E se eu então aparecesse diante daquela frase, seduzido por aquela frase, assim como, por exemplo, aconteceu no último Natal, quando fui tão longe que mal conseguia me controlar, e quando na realidade eu parecia estar no último degrau da minha escada, a qual, entretanto, se mantinha tranquila sobre o chão e contra uma parede. Mas que chão, e que parede! Ainda assim aquela escada não caía, de tanto que meus pés a pressionavam sobre o chão, de tanto que meus pés a levantavam contra a parede. (Tradução minha.)
Ao falar da escrita de que espera ser capaz, ele usa uma forma impessoal para dizer que algo ainda poderia irromper de si. O verbo que emprega ‘herausschlagen’ é muito usado em outros contextos com a palavra ‘Flammen’, para descrever as labaredas de um incêndio saindo pelas aberturas e espalhando-se no ar. Suas dúvidas a respeito desse potencial chegam a prever um fogo que consumiria por inteiro o monte de palha de que se considera feito. Pouco adiante emprega uma imagem para o ato de escrever que espanta pela inversão inusitada da ação. Compara a criação de uma frase ao ato de apontar um telescópio para os cometas. Mas não é ele quem aponta para a frase-cometa, a linha é que vem a ser apontada na sua direção, ela é que poderá descobri-lo, a ele que ocupa o lugar do cometa. A frase vai revelá-lo. É o reconhecimento de uma existência autônoma das frases, portadoras talvez da força concentrada que tanto me impressionou.
Brandir ou manejar essas frases que vêm ao seu encontro não é tarefa trivial. A dificuldade advém de não se conhecer a situação por inteiro. Diz ele que tudo o que lhe acontece não ocorre a partir da raiz, mas surge de algum lugar pelo meio. É preciso agarrar-se a uma folha de grama que cresce pelo meio do talo, e assim surge a imagem dos malabaristas japoneses que sobem uma escada que não está assentada no chão, nem escorada contra a parede. As frases a serem escritas irrompem de seu interior, vêm procurá-lo como a um cometa, e por ele desconhecer onde estão arraigadas, é preciso realizar o malabarismo de elevá-las no ar sem qualquer apoio. Não é surpreendente que o ato de escrever seja compreendido desse modo por Franz Kafka, quando as frases de seus livros nos causam tanto espanto pela força que revelam. A linguagem pode ser normal, quase burocrática, mas a maneira como é empregada desafia os limites da mente humana.
Essa imagem dos malabaristas me levou a pensar na leitura de uma das obras-primas de Kafka, A Metamorfose. A narrativa é uma proeza de malabarismo. Ele descreve uma situação que alguém poderia supor fantástica. Gregor Samsa acorda certa manhã para se descobrir metamorfoseado num enorme inseto. Mas a narrativa não tomba no fantástico, não abandona a realidade de Gregor Samsa. Tampouco tomba num realismo que explica o fantástico como sonho, fantasia, metáfora empregada para revelar o significado do que é real. A narrativa avança no fio da navalha conduzindo o leitor a um outro mundo, real e fantástico ao mesmo tempo, a um mundo que não comporta explicação. E o malabarista não faz nenhum movimento em falso, mantém até o fim seu estranho equilíbrio. Por isso minha reação aos livros de Kafka, nunca tinha lido ninguém que conseguisse escrever assim.