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04.03.2014 – George Eliot

O século XIX foi uma era de apogeu para o romance inglês. Basta lembrar os nomes de Charles Dickens, Jane Austen, Emily Brontë, Oscar Wilde, William M. Thackeray, Robert Louis Stevenson, Walter Scott, Charlotte Brontë entre tantos outros, além de Thomas Hardy e Joseph Conrad  na virada do século. Interessante observar o grande número de escritoras nessa época, e por isso parece até enigmático que uma grande romancista do período, Mary Ann Evans, tenha preferido assinar seus livros com um pseudônimo masculino, George Eliot. Devido aos acasos da vida, somente agora vim a tomar contato com essa autora por meio da leitura de um de seus livros, Middlemarch. Há muito tempo não lia um romance com tanto prazer. Não só os personagens são muito bem delineados, como apresentam um rica vida interior, algo até inesperado num romance voltado para os costumes de um centro provinciano imaginário. A poeta americana Emily Dickinson deu a descrição mais precisa desse romance, ao enviá-lo para a esposa do crítico Thomas W. Higginson: “Trago-lhe um pequeno livro de granito em que se apoiar.” A escrita de George Eliot é densa, a leitura de apenas algumas páginas nos leva a meditar sobre vários temas ao mesmo tempo. Não chega a ser um romance que inclua ensaios em sua estrutura, como acontece em Robert Musil, mas as reflexões que suscita extrapolam o olhar arguto sobre o destino dos personagens. No capítulo 29, por exemplo, a autora abandona sua posição velada por trás de uma das personagens principais, Dorothea Brooke, e procura examinar como o marido dessa jovem compreende a situação por eles vivida. Esse sujeito, o Sr. Casaubon, é acima de tudo um chato. Bem mais velho que a esposa, dedicou sua vida a estudar textos clássicos e adquirir uma erudição que se recusa a florescer numa obra que tenha algum sopro de vida. O máximo que consegue fazer é escrever notas, a que dá o nome de Parerga, preparativos para seu futuro grande livro, A Chave para todas as Mitologias. Incapaz de escrever seu livro, incapaz de se apaixonar até pela jovem esposa, incapaz de viver. E como se vê no trecho abaixo (a tradução é minha), a própria autora deixa de se esconder atrás dos personagens e declara sem rodeios: “De minha parte, sinto muita pena dele.”

georgeeliot“Ele não antegozara grande felicidade na sua vida anterior. Para que alguém sem constituição física forte conheça uma alegria intensa, é preciso que tenha uma alma entusiástica. O Sr. Casaubon nunca tivera uma constituição física robusta, e sua alma era sensível sem ser entusiástica; era lânguida demais para que a emoção a fizesse esquecer seus melindres e entregar-se a um deleite apaixonado; continuava a adejar no terreno pantanoso em que fora incubada, pensando em suas asas sem jamais voar. A experiência do Sr. Casaubon era daquele tipo lamentável que se encolhe diante da piedade alheia e teme acima de tudo que isso transpareça: era essa sensibilidade orgulhosa e estreita que não tem substância sobrando para transformar-se em simpatia, e estremece como um fio de linha nas pequenas correntes da autopreocupação ou, quando muito, de uma escrupulosidade egoísta. E o Sr. Casaubon tinha muitos escrúpulos: era capaz de um severo autocontrole; estava determinado a ser um homem honrado de acordo com as normas; seria irrepreensível segundo qualquer opinião reconhecida. Na conduta, esses objetivos tinham sido alcançados; mas a dificuldade de tornar a sua Chave para todas as Mitologias irrepreensível pesava como chumbo sobre sua mente; e os panfletos – ou “Parerga” como ele os chamava – com os quais testava o seu público e depositava pequenos registros monumentais de sua marcha, estavam longe de serem compreendidos em toda a sua importância. ….. De minha parte, sinto muita pena dele. É uma sina, quando muito, desconfortável ser o que chamamos de altamente erudito e, ainda assim, não desfrutar de seus conhecimentos: estar presente a este grande espetáculo da vida e jamais livrar-se de um pequeno eu trêmulo e faminto – jamais ser plenamente possuído pela glória que contemplamos, jamais deixar nossa consciência ser arrebatadoramente transformada na intensidade de um pensamento, no ardor de uma paixão, na energia de uma ação, mas ser sempre erudito e pouco inspirado, ambicioso e tímido, escrupuloso e míope…..”

Middlemarch (capítulo 29)

Não se lê uma passagem dessas sem pensar no estrago que “um pequeno eu trêmulo e faminto” pode fazer na vida de todos nós.

 

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