Estudar literatura é ter a oportunidade de ler as obras do passado e do presente, isto é, aproximar-se desse rico acervo do pensamento humano. Ensinar literatura é incentivar e orientar a leitura dos textos, para que ela se realize em amplitude e profundidade. Ao estudar letras na universidade, com foco em português e inglês, tive uma experiência que só pude avaliar com justeza décadas mais tarde. Naquela época, anos 60, era praxe que as aulas de literatura estrangeira fossem ministradas por professores visitantes provenientes do país da língua estudada. No último ano do curso, o professor de literatura inglesa chamava-se Mr. Man, um homem relativamente jovem, culto e profundo conhecedor da literatura de seu país. No início do ano, ele anunciou para nossa turma de formandos – o programa para este ano será Macbeth. Ele tinha vários discos com a peça toda gravada, por isso as aulas passaram a ter sempre o mesmo esquema: escutar alguns trechos, analisá-los, comentá-los. Só nas 10 linhas da abertura magistral da peça com as três bruxas em cena, foram bem mais de cinco aulas. Vários colegas ensaiaram uma reclamação, que as aulas estavam sendo repetitivas, mas Shakespeare é Shakespeare, e o interesse de todos só fez aumentar com o passar do tempo. Pode até ser que Mr. Man tenha nos oferecido essa leitura de Macbeth para facilitar seu trabalho de preparar e ministrar as aulas, mas o estudo de Macbeth durante um ano inteiro terminou com a sensação, de minha parte ao menos, de que tínhamos feito um bom curso de literatura inglesa. Só bem mais tarde, porém, ao recordar e avaliar meus estudos universitários, é que me dei conta da extraordinária riqueza da experiência que nos foi oferecida. Uma coisa é ler Macbeth, estudar parte da literatura secundária existente sobre a tragédia (digo parte, por ela ser imensa), assistir a conferências ou aulas brilhantes de uma ou duas horas proferidas por estudiosos da obra de Shakespeare – tudo isso vale a pena e contribui certamente para o entendimento da obra. Mas outra coisa é estudar a peça durante um ano inteiro, conviver de certo modo com as palavras de Shakespeare por um longo período. A compreensão assim propiciada vai fundo, penetra até na medula dos ossos. Uma senhora americana culta e entusiasta da obra de Shakespeare, com quem falei a respeito desse meu estudo na universidade, apenas comentou que o professor teria escolhido uma tragédia demasiado macabra. Sem dúvida, Shakespeare encenou o inferno em Macbeth, mas isso não lhe tira o mérito de ser uma das grandes tragédias. Segundo Mr. Man, é a tragédia shakespeariana formalmente mais bem realizada. Curioso é que nunca tive a oportunidade de ver Macbeth no palco ou na tela. Em 1973, na única vez que estive em Londres, fiquei entusiasmada ao ler no jornal que a tragédia estava sendo apresentada na cidade. Custei a descobrir como chegar ao teatro, mas posso dizer que corri para comprar um ingresso e assistir à peça que me tomara um ano inteiro de estudos. A moça da bilheteria me olhou espantada quando lhe disse a que vinha: “Está tudo esgotado desde antes do início da temporada.” Pelo visto, o inferno é muito popular entre os ingleses. Porém, mesmo sem ter visto a tragédia, sem tê-la conhecido na forma para a qual foi escrita, isto é, para o palco, Macbeth participa das cenas de minha memória. Não só ficou gravado o diálogo das bruxas no início da peça ou o célebre monólogo de Macbeth ao saber da morte de Lady Macbeth. Muitas vezes também aflora, no meio do cotidiano, o alerta ou o pedido: “Remember the porter”.