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Entrevista

Whei Oh Lin

 

No mundo cada vez mais globalizado, o Ocidente e o Oriente estreitam seus laços de amizade e seu apreço pelo planeta em que convivem. Mas ninguém deve se iludir, a maneira de pensar e sentir é muito diferente nos dois hemisférios do mundo. Faz-se mister, portanto, um aproximar-se respeitoso que permita a compreensão mútua. Nesse sentido, é importante conhecer indivíduos dispostos a partilhar a cultura de seu país de origem.

 

Taipei – parte antiga

Cidade antiga do Taipei:

台  北﹐  大  稻  城

tái běi        dà  dào chéng

 

Whei Oh Lin nasceu e viveu seus anos de formação em Taiwan. Só veio a conhecer a China continental nos anos 1980, depois da abertura econômica empreendida por Deng Xiaoping e Zhou Enlai. Com uma inteligência privilegiada, ela sobressaiu em seus estudos e obteve o título de PhD (Doctor of Philosophy) em química na Universidade de Massachusetts nos Estados Unidos. Do país americano veio para o Brasil a convite do governo brasileiro com a missão de trabalhar no IME – Instituto Militar de Engenharia. Aqui exerceu seu ofício por muitos anos, contente por realizar as pesquisas práticas de que o Brasil tanto necessita. Hoje aposentada, trabalha como consultora e coordenadora em curso de extensão na PUC do Rio, e também encontra tempo para dar aulas de língua e cultura chinesa, promovendo o encontro entre Brasil e China.

Seus alunos aproveitam sua boa vontade em partilhar seu conhecimento da China, apreciando a poesia dos ideogramas e admirando a sutileza do modo de pensar oriental. E a professora Lin não é apenas capaz de um humor aguçado, imprime também um impulso criativo em tudo o que realiza. Há alguns anos vem se aprimorando na arte do mosaico e do patchwork. Conhecer a professora Lin é encontrar um portal de onde se pode pressentir a riqueza da vida no Oriente.

A entrevista abaixo busca descortinar um pouco desse conhecimento que ela tem a nos oferecer.

yinyang

Poderia se apresentar e contar como veio morar no Brasil?

Meu nome é Whei Oh Lin. Em chinês, é Lín fēi é (林非娥). Lín é o sobrenome, fēi é é o meu nome. Lín significa floresta, assim minha casa, meus antepassados, meu avô, todo mundo antes de mim devia morar na floresta. Quem trabalha no campo tem sobrenome Tián, porque campo de  produção agrícola em chinês é tián (田). Quanto a Fēi é, Fēi significa não ou muito, e é significa moça bonita. Então como é que é? Eu sou moça bonita que não é bonita? Essa é uma outra história. Os chineses têm o costume de colocar no nome o que desejam. O meu pai é filho único na família, e eu sou a primeira neta, a filha mais velha do meu pai. A família queria muito um filho homem, porque, mantendo o sobrenome, o filho homem contribui para a continuidade das gerações. Quando nasce uma menina, a família cria essa filha para outro, porque ela vai casar. Na China, pelo menos antigamente, a mulher se torna membro da família do marido e se desliga da própria família de origem. Raramente visita a casa paterna, talvez uma vez por ano. Depois da modernização, se ela mora na cidade, vai fazer visitas mais frequentes, mas não muito porque a sogra reclama. Assim a minha família estava esperando um filho, e apareceu uma menina. Por isso, meu avô paterno diz que a família tem agora uma moça bonita, mas não é o que todos desejam. A interpretação do meu nome pode ser moça muito bonita ou não é uma mulher. É um modo de invocar um menino que ainda vai nascer. Expressam no nome o desejo de que não aconteça uma menina de novo. Por essa razão, eu carrego esse nome há mais de setenta anos. Quando me formei no segundo grau, o meu professor me deu um poema.

fēi  cháng  zhī  cái  xué,        é   huáng  zhī  zhòng  shu,

非      常     之   才    學 ,      娥     皇      之      眾       屬

fēi   é   tóng   xué   shu  shì.

非   娥     同     學      屬      是 .

Uma inteligência sem igual, uma beleza entre as mulheres, é a nossa aluna fēi é.  Eu, na verdade, tenho uma família muito boa, todo mundo me ama. Nunca me desconsideraram por eu ser mulher, mas eu gostei desse poema do meu professor do segundo grau.

yinyang

Bem, então nasci, uma filha, e minha mãe ficou preocupada, porque na China uma nora tem de dar filho homem. Por isso, quando eu ainda não tinha um mês de vida, minha mãe pegou a data e a hora de meu nascimento, e foi falar com um vidente para saber o que eu ia ser, se ia viver dependente deles ou sei lá o quê. O vidente falou – esta menina é muito inteligente, graças a Deus, e ela vai ser militar. Minha mãe teve que rir, porque em Taiwan, pelo menos naquela época, se você não tinha outra saída, ia ser militar. Militar não precisa trabalhar, apenas presta serviço e tem comida/vida fácil. Minha mãe ri e diz: “Meu marido é médico, uma das melhores profissões e a mais respeitada em Taiwan hoje em dia (final da década de 1940). Você está errado.” Resultado: depois de quase trinta anos, eu chego ao Brasil. Onde é que vou trabalhar? No Ministério do Exército. Eu não me tornei militar, mas trabalhei com militar. Esse vidente realmente previu. Eu não tinha nem um mês de vida, e ele já sabia que vou ser doutora, que vou estudar muito, vou ser professora, mas vou ser militar. Minha mãe ficou preocupada, e meu pai decidiu me dar a melhor educação para que eu não me tornasse militar. Ninguém, nem mesmo eu, imaginava que eu viria para o Brasil e me tornaria semimilitar.

Mapa Taiwan

Nasci e vivi em Taiwan até os 21 anos, até terminar os estudos universitários. Quando nasci, meu pai trabalhava como médico – era o final da Segunda Guerra Mundial, quando os japoneses se renderam.

Foi então que Chiang Kai-shek fugiu dos comunistas da China continental e chegou a Taiwan. A primeira coisa que ele fez em Taiwan – isso é cruel e real – foi perseguir todos os intelectuais. Quem era intelectual naquela época em Taiwan? As pessoas que conseguiam convencer o povo, aqueles que o povo escutava. Eram os professores, do primeiro e segundo grau e da universidade, e também os médicos, porque sem médico ninguém vive. O Kuomintang – o grupo de Chiang Kai-shek – perseguia e matava todos esses intelectuais, porque assim o povo de Taiwan se tornaria um grupo de pessoas sem líderes. Meu pai era médico – por sorte, por ser filho único, ele não foi pego e não morreu. Foi pura sorte. 

Quando comecei a estudar, descobri que meu pai não sabia falar mandarim. Ele falava apenas japonês e a língua local de Taiwan, o taiwanês. Antes da chegada de Chiang Kai-shek, Taiwan esteve sob domínio japonês por 50 anos. A colonização japonesa foi muito violenta, os superiores falavam somente japonês. Quem frequentava uma boa escola tinha de se alfabetizar apenas em japonês. Meu pai nunca teve a oportunidade de aprender o mandarim. Ele sabia falar o dialeto local, o taiwanês e as línguas formosanas. Claro que depois da modernização, ele melhorou. Na época, a maioria dos taiwaneses não falava mandarim.

yinyang

Eu tive uma infância muito boa. Sendo a primeira criança de uma nova geração, meu avô e minha avó, os pais de meu pai, me adoravam. Ainda lembro que todo dia de manhã cedo meu avô me levava para a estação de trem – perto da minha casa havia uma via férrea, o trem passava por ali. Oh, todo dia eu via esse trem, uma locomotiva tão grande. E quando cresci, ainda me lembro, ele me comprou uma bicicleta pequeninha, assim eu podia ir com ele de manhã cedo observar com toda a “garra e espírito” o espetáculo do trem.

Meu nome foi Lín fēi é – uma moça bonita, com sobrenome Lin, mas não era o que a família desejava. Dois anos mais tarde, minha mãe teve outra criança, um menino. Esse foi a festa da família. Além de satisfazer o desejo familiar, meu irmão foi a confirmação do status da minha mãe na família. Se não tivesse o filho homem, acho que ela iria sofrer muito, porque na China, muitas vezes, quando a mulher não consegue ter um filho homem, o marido pode ter uma segunda, terceira, até quarta mulher. Na época de meu pai, seria normal. Hoje em dia não é mais assim, mas antigamente era normal. Então minha mãe teve meu irmão, e os privilégios foram muitos por causa desse segundo filho. Minha mãe tinha onze irmãos, e ela era a mais velha de todos. E nós temos 44 primos, filhos desses onze irmãos de minha mãe. Os chineses eram prolíficos.

yinyang

Cresci em Taiwan, uma vida normal. Fiz o primeiro e o segundo grau, depois entrei na universidade. Nada de especial. Como pertencia a uma família de médico, eu tinha um certo prestígio. Na China, quando você é filho de médico, as pessoas tratam você um pouco melhor, até os professores. Quando chegou a época do vestibular, como eu era muito boa aluna, todo mundo dizia, ah, você tem de fazer medicina. Eu podia perfeitamente entrar no curso de medicina, mas eu não queria fazer medicina, porque vi meu pai a vida inteira, ah meu Deus do céu, 24 horas a fio atendendo pacientes. Tudo sempre entupido de gente esperando pelo médico, depois à noite ele tinha de sair para a emergência. Antigamente o sistema não era tão bom quanto agora. Em termos econômicos, a família de médico tem uma boa vida, mas quem aproveita as vantagens são a esposa e os filhos, não o próprio médico. Então falei para minha mãe, olha, acho que não quero ser médica. Eu quero trabalhar como assalariada – quero trabalhar e ter dinheiro entrando, quero receber bem. Na época, receber bem tinha que ser em dinheiro. Assim eu fiz um vestibular bem difícil, tirei o primeiro lugar. Entrei na faculdade – engenharia química em vez de medicina. Estudei engenharia química durante 5 anos em Taiwan.

yinyang

Nessa época em Taiwan, não havia liberdade de expressão, nem livre divulgação de notícias. Tudo por causa do Kuomintang, partido liderado por Chiang Kai-shek, que tinha por hábito perseguir e eliminar as pessoas, especialmente os intelectuais. Depois das 10 horas da noite tudo era controlado, a polícia especial barrava as pessoas, nem rádio do exterior podíamos escutar. Por isso formou-se em Taiwan uma onda, todo mundo querendo se formar na universidade, porque fazer um curso avançado no exterior era uma forma legal e fácil de sair do país.

Taiwan era antes uma ilha de pescadores e camponeses que  produziam arroz e verduras. Mas após a chegada dos invasores, tudo mudou porque os recém-chegados, os fugitivos da China continental, dominaram a região pela força das armas.  Os invasores precisavam alimentar não sei quantos mil soldados, por isso confiscavam tudo o que podiam. Nessa época. todos os privilégios pertenciam às pessoas que fugiram da China continental – os guó mín dang (國民黨).

Taiwan é uma ilha que fica no sudeste da China, e os chineses do sul da China são considerados diferentes. Isso porque os do sul não sofrem tanto, têm fartura de recursos à mão, principalmente no que diz respeito aos alimentos. Pelo poder das armas e agressão desumana, Chiang Kai-shek impõe em Taiwan a noção de que as pessoas que vieram junto com ele são superiores a nós. Não são superiores coisa nenhuma. Ele acha que os taiwaneses são burros – procura enganar o povo simples e inocente de Taiwan. Impõe um regime de força, uma ditadura, tudo controlado. 

Por exemplo, um belo dia, um de meus colegas desapareceu. Foi preso por suspeitarem que fosse espião comunista. Tudo porque o amigo de um de seus tios visitou a família e tirou uma foto com todos os presentes. E só por causa da suspeita que pairava sobre esse amigo do tio, todo mundo na foto foi preso. O meu colega sumiu por 25 anos, depois tornou a surgir e ficamos sabendo que passou esses anos na cadeia de presos políticos. Numa ilha ao sul de Taiwan. Nem é preciso ter grades ou cela trancada nesse presídio, porque ninguém pode fugir, a ilha é cercada de tubarões por todos os lados. Esse meu colega, que já morreu, nunca contou nada. Todo mundo queria saber o que tinha acontecido, mas ele não falou, foi muito bem alertado. Foi só antes de morrer que ele contou para a filha como foi dura a vida naqueles 25 anos.

Taipei – parte moderna

Assim eu estudei engenharia química em Taiwan. Minha mãe não gostou, mas meu pai foi diplomático, ele me disse: faz o que bem entender. Foram cinco anos, passaram rápido.

Naquela época, em Taiwan, todos os universitários precisavam fazer treinamento militar. Toda semana tínhamos duas ou quatro horas desses exercícios. E depois passávamos dez dias, um, dois ou três meses num campo realmente militar para receber treinamento básico. Esse treinamento em Taiwan chamava-se jūn xùn. Incluía machado, todos os exercícios, inclusive tiro ao alvo. Eu nunca tinha posto a mão numa arma, foi engraçado. É preciso dizer que eu tive um instrutor muito bom. Ele explicava, tem que ser assim, assim e assim. Eu seguia as instruções e sempre ganhava nota 10 no treinamento de tiro ao alvo. Tenho um pouquinho de engenharia no sangue, assim eu sabia que, na hora de apontar para alguma coisa, você tem um ponto partindo da arma, aí você liga esse ponto a outro ponto, depois ainda a outro ponto… Por isso eu sempre ganhava nota 10. Resultado: fui participar de um campeonato de tiro ao alvo e ganhei o primeiro lugar. Imagina, uma menina de óculos ganhar o campeonato!

Assim que me formei, eu disse para mim mesma: ah, aqui neste Taiwan é que não vou ficar. Depois das dez horas da noite, você nem podia sair na rua, o regime era fechado, sem liberdades. A onda na época era conseguir sair de Taiwan, acho que mais de 50% de meus colegas foram para o exterior. Logo depois do término de meu curso superior, trabalhei como professora do segundo grau numa faculdade de Taipei. Aí faço o exame Toefl, faço tudo o que é preciso, encaminho minha inscrição numa universidade americana. Em um ano consegui uma bolsa de estudos nos Estados Unidos. E então, tchau!

yinyang

Foi em 1969. Saí de Taiwan, a primeira vez que andei de avião. Foi a primeira vez de muita coisa. Fui para os Estados Unidos, foi o começo da aventura da minha vida. Estudei durante cinco anos nos Estados Unidos. Eu gostei muito dos Estados Unidos. É um lugar para jovens. O país tem tudo, pelo menos para os estudos químicos, tudo o que você pode imaginar. Tudo o que você quer fazer, eles têm condições de oferecer. Isso não vi em nenhum lugar do mundo. Bem mais tarde descobri a Alemanha, tão boa quanto. Talvez até melhor, porque a Alemanha apoia os intelectuais de maneira prática. O apoio dos americanos é a abundância de recursos. Os alemães, se querem uma coisa, pensam duas vezes e só então adquirem e oferecem os recursos. Não cometem erros crassos.

Levei dois anos para fazer o mestrado e mais dois anos e meio para terminar meu doutorado na Universidade de Massachusetts em Amherst. Esses cinco anos foram um dos melhores períodos da minha vida. Acho que tenho muita bênção de Deus, tudo o que vivencio é sempre o melhor período da minha vida. Olha só, eu tinha uma bolsa de estudos, um pai que podia me sustentar, mas saí de casa aos vinte anos e não usava nem um tostão dele. Nos Estados Unidos, depois de um ano, eu comprei um Fusca. Na época, um Fusca novo custava US$ 1.999,99. Mas era só o carro, você tinha de comprar pneus e tudo o mais. Um espetáculo… Com esse Fusca, eu vou para o Canadá, para qualquer lugar do mundo, eu rodei os Estados Unidos inteiro de Fusca…

Um Fusca dos anos 60

Começou então minha boa vida. Sem pai e mãe por perto, eu só estudava. Depois pegava meu Fusca e, com um bando de colegas, colocava o pé na estrada… Na época, eu ganhava por mês US$ 240,00, sessenta dólares por semana. Foi economizando esse dinheiro que eu comprei um carro, o Fusca! Foi muito bom, uma vida boa. Eu trabalhava no laboratório talvez umas dezesseis horas por dia. O lugar onde eu estava é uma cidade universitária. A universidade é muito bonita. O prédio da química tem 16 andares, só química, em cada andar salas e laboratórios de química. Lugar bonito, no campo. O meu laboratório ficava no 16o andar – para qualquer direção que nos virássemos, a paisagem era só campo. E a vida era boa, porque simples. Lá você não precisava, como em Taiwan, estar sempre bem vestida. Dava para vestir qualquer coisa e sair na rua.

Universidade de Massachusetts, Amherst, Massachusetts, EUA

Eu trabalhava e passeava muito. Em Massachusetts, tínhamos primavera, verão, outono e inverno, todas as estações bem definidas. O inverno é bem frio, o gelo permanece no chão por três meses. Eu tenho sorte, porque nos Estados Unidos nem todo lugar é bonito como em New England. New England significa a região dos estados de Connecticut, Vermont, Massachusetts, Rhode Island e New York. Ao norte está o Canadá, com cidades lindas como Montreal e Ottawa. Eu adoro Montreal, muito francesa, metade da população fala francês. Quando precisava, eu saía de carro. Um galão de gasolina custava 7 centavos de dólar, qualquer pessoa pagava. Eu ganhava então 60 dólares por semana, assim pude comprar um carrinho.

Amherst

Muito bom, porque gosto de viajar, gosto da natureza, gosto de parar o carro e ficar sentada um bom tempo contemplando a paisagem. Eu costumava ir para Vermont, New Hampshire, por causa das montanhas. Depois subia para o Canadá. O Canadá é bonito, mas já é mais frio. Eu não gosto muito do frio, porque na América do Norte faz um frio desgraçado. No inverno, você abre a porta, põe o pé para fora, e metade desse pé já congelou na hora. Frio demais não é para mim, por isso só viajava para o norte no verão. No verão de Montreal, a temperatura à noite chega a quase zero grau. Eu gosto de ambientes espaçosos. Visitei Niagara Falls, muito bonita, mas Foz do Iguaçu é ainda mais bela, ali você pode passear de barco quase por baixo das cataratas. Eu gosto desse tipo de aventura, por isso minha vida de aluna foi muito boa.

 

Cidade de Amherst

 

Bem, quando o doutorado terminou, ah meu Deus do céu… a moleza também acabou. Eu tinha duas opções – voltar para Taiwan ou ficar nos Estados Unidos. Só que eu não gostava dessa última opção, porque é muito bom estudar, adquirir conhecimentos nos Estados Unidos, mas trabalhar e viver na sociedade americana por longo tempo nunca foi minha intenção. Eu tinha o PhD, e a remuneração de quem fez doutorado é por projeto, e não por hora. Trabalhando por hora, você ganha uma quantia por 8 horas e recebe outro tanto por horas extras. Num projeto, isso não existe, você recebe uma quantia fixa. Num emprego acadêmico, você não ganha muito dinheiro, mas tem mais liberdade. Havia ainda outro dado importante: os Estados Unidos é um país entupido de profissionais competentes. Eu sei qual é a minha posição – eu conheço bem química, razoavelmente bem. Mas também quero curtir a vida, não quero levar tudo tão a sério, ainda que eu seja muito séria em comparação com tantos outros químicos por aí. Por isso eu tinha solicitado voltar para Taiwan, e minha universidade me aceitou. Eu ia para lá, mas por acaso, enquanto estava preparando esse retorno, acabei casando. Naquela época, 1972 até 1976, o governo brasileiro foi aos Estados Unidos em busca de doutores PhD. Eu me tornei um deles, fui contratada. Assim, acabei chegando ao Brasil. Na época, o salário era muito bom. Vieram junto comigo oito doutores PhD – fomos nós que construímos a pós-graduação no IME. Na verdade, a pós-graduação em química do IME foi um dos cursos pioneiros no Brasil.

Quando morava em Taiwan, você chegou a visitar a China continental?

Naquela época, a China era fechada, os chineses ficaram isolados do resto do mundo por 40 anos. Sem contato com ninguém. Ninguém podia entrar, nem sair. Meu avô, o pai da minha mãe, ainda tinha muitos parentes lá, mas não podia se comunicar. Era preciso estabelecer contato via Hong Kong – se você tinha conhecidos em Hong Kong, eles enviavam as cartas e os pacotes para você. Não podia mandar dinheiro, nada. Uma carta levava às vezes meses, até mesmo anos, para chegar ao destinatário. A China era totalmente isolada. 

De 1967 a 1978 ocorreu na China continental uma revolução cultural. Naqueles tempos, a China estava totalmente isolada do mundo, censurava todas as informações, ninguém sabia o que estava acontecendo. A situação era miserável, muita gente morreu de fome mesmo, foi cruel. Mao Zedong criticava o sistema antigo, dizia que não sabiam aproveitar os recursos. Eles procuraram mudar o cultivo das plantações no campo, porque diziam querer aumentar a produção.

A revolução cultural rechaçou uma grande parte da cultura chinesa. Destruíram muitas coisas, tais como antiguidades, o bom sistema social da sociedade chinesa – anos depois houve devolução de parte do que foi confiscado, mas o que foi destruído, não tinham como devolver. Eles achavam que o pensamento antigo não estava atualizado, era nocivo, etc. Assim pegavam os velhos, que têm grande sabedoria e influência na sociedade, e diziam que eles não eram práticos. E depois pegavam jovens, sem nada na cabeça, para punir ou maltratar esses intelectuais. Ainda hoje você vê na internet essa revolução cultural, soldados vermelhos jovens criticando os intelectuais, uma situação muito cruel.

A revolução cultural é falar mal de tudo. Eu conheci um soldado vermelho nos EUA, porque uma amiga minha se casou com um deles. Ele criticava tudo, e depois dizia ‘você tem que me dar dinheiro’, um apoio para a grande China. Uma boca grande, dizia que o mundo estava lhe devendo, mas ele próprio era incapaz de fazer qualquer coisa. Único ponto claro naquela ocasião era o esforço dele para sair da China e permanecer nos EUA. Pelo bem da China, ele precisava morar nos EUA. Essa minha amiga perdeu a cabeça ao se envolver com esse soldado vermelho, um verdadeiro vagabundo. Ele acabou conseguindo o documento de residência permanente nos EUA por meio da minha amiga, e imediatamente depois eles se divorciaram. A minha amiga enlouqueceu de vez.

Na realidade, a revolução cultural destrói todos os laços de sangue, as relações de família, a boa tradição cultural chinesa. Esse foi um dos grandes males da revolução cultural. 

Uma das mudanças culturais consistiu em simplificar a língua chinesa – a única mudança que foi um pouquinho mais positiva, simplificar as palavras chinesas. Os ideogramas chineses são muito complicados para escrever, essa é uma das razões para o número tão alto de analfabetos na China. Mas essa mudança, a meu ver, não justifica todos os erros da revolução cultural. O governo chinês está preocupado – daqui a 50 anos toda a cultura chinesa vai desaparecer, porque tudo está em chinês tradicional que poucos agora aprendem.

Em 1974, Henry Kissinger visitou a China dando início ao abrangente intercâmbio “Ping Pong” entre os Estados Unidos da América e a República Popular da China. A partir de 1977 e 1978, os chineses, sempre tão sofridos, começaram a descobrir o capitalismo, o aspecto doce do capitalismo, isto é, que você pode ter o que deseja. No sentido material, pelo menos. 

O meu primeiro contato com a China continental foi em 1980. Foi por meio de um convite, porque eu era uma professora universitária que trabalhava no Brasil, uma chinesa de origem taiwanesa. Isso era uma raridade na época. Naqueles tempos, eram poucas as chinesas no mundo com PhD. Nos Estados Unidos havia bem mais, mas eu era do Brasil. Fui convidada para um trabalho de cooperação científica e levei minha filha pequenininha comigo. Lá eu até contratei uma professora para lhe ensinar chinês. Foi muito bom esse tempo na China, porque naquela época começava a abertura do país, e era possível ver a boa vontade do povo procurando o melhor para sua vida futura. Todos queriam saber do exterior, todos queriam colaborar. Fiquei umas três ou quatro semanas. Depois disso, visitei vários institutos de pesquisa. Nesse aspecto, os chineses são muito atenciosos, eles querem aprender com você. Eles querem agradar, por isso procuram saber tudo sobre sua família, seu pai, sua mãe, tudo. Assim visitei a ala de química da Chinese Academy of  Sciences. Ali encontrei uma colega da turma da minha irmã – ela se formou em Taiwan e tem PhD da Universidade de Nova York, Estados Unidos. Mais tarde largou tudo e foi para a China, porque ela e o marido estavam envolvidos em política, e o governo taiwanês suspendeu o passaporte deles. Sem passaporte, não podiam ficar nos Estados Unidos, não tinham outra saída, e a China continental lhes ofereceu um passaporte e uma posição na Academia Sinica de Beijing. Hoje em dia ela é uma grande figura da área de química na China. Esse foi o início de minha colaboração com eles. Por meio da cooperação científica Brasil-China, com o apoio do CNPQ e da Chinese Academy of Sciences, o intercâmbio entre as instituições brasileira e chinesa funcionou durante quase oito anos (1988-1995). Foi um trabalho muito proveitoso em todos os aspectos.

Quais foram suas primeiras impressões da China continental?

Em 1981, quando visitei a China pela primeira vez, senti que os chineses eram muito sofridos. Quando os pais mandam os filhos para a universidade ou quando um jovem consegue ingressar numa faculdade ou universidade, sempre pensamos que tudo é pago pelo governo. Não é verdade. Se você tem dois filhos, eles vão para a faculdade. O ensino na faculdade é público (de graça), mas os pais têm de pagar moradia e alimentação. Um trabalhador recebia então por volta de 100 yuan por mês. Quanto vai gastar com os filhos? Não precisa também comer, beber, sustentar o dia a dia da família? Os recursos eram escassos, foi o que acabei descobrindo.  Um belo dia, num seminário, descobri um rapaz que…Bum!…caiu da cadeira. Desmaiou de fome. Fiquei muito curiosa e fui procurar saber o que havia. A universidade tinha um refeitório para visitantes e outro para o resto do pessoal. Como é que os alunos comiam? Pegavam um prato grande, compravam 5 centavos de arroz, um tiquinho de nada, mais uma verdura, um pouquinho de salgado, e pronto. Essa era a refeição. A carne, tinham que procurar no prato. Aí entendi, eles comiam mal. Naquela época, início dos anos 80, a quantidade de ovos que podia ser adquirida por uma pessoa era controlada / racionada. Para comprar ovos, eles tinham que ter um papel, um tíquete. Acho que para uma família – marido, mulher e dois filhos –  podiam comprar uma dúzia de ovos por mês. Um belo dia, eu estava numa rua da China, e de repente vi uma fila grande na frente de uma casa que vendia carne. Na época, havia muitas filas por toda parte, hoje em dia já é outro papo. Eu fiquei curiosa, por que uma fila tão grande e tão cedo? Todo mundo com um papel para comprar carne. Uma mulher estava comprando um quilo de carne. O vendedor pegou o dinheiro, depois quis entregar um pedaço de carne – só que era carne branca, aí a mulher reclamou. Ela gritava, o vendedor gritava, e sabe ao lado de quem estava todo mundo na fila? Não estavam do lado da mulher, mas apoiavam o servidor. Sabe a razão? Todos tinham medo de também ganhar carne branca, quando chegasse a vez deles. Por isso tinham que ficar do lado do servidor, para depois conseguir o melhor. Essa foi a primeira vez que senti o sistema do comunismo. Senti que os chineses, ao menos os comunistas, detinham um poder que chegava a esse ponto. Se continuasse assim, todo mundo ia morrer. Por isso, houve a abertura econômica no país.

O regime comunista fechado era, portanto, opressor. O povo chinês ainda sofre sob os comunistas?

Outro exemplo. Naquela época, faltava tudo no mercado. Os estrangeiros compravam na loja de “friendship” (友谊商店  yŏu yì shāng diàn – Loja da Amizade). Ali havia mercadorias melhores, mas os fregueses principais eram estrangeiros. Você entra na loja e quer ver alguma coisa. Nenhum funcionário por perto vem atender de livre e espontânea vontade. Após diversas chamadas finalmente surge alguém de cara feia, a freguesa parece ter interrompido seu descanso ou sossego. Você diz o que deseja, e ele leva você para ver o produto na vitrine. Mesmo se por sorte ele chegar a mostrar o produto em questão na sua mão, você pode não gostar e devolver a mercadoria. Aí pode ter certeza que ele vai revirar os olhos ou dizer ‘Ah, não gostou?’ Um tom de comentário agressivo, significando se não quer comprar, pra que olhar? Ai meu Deus do céu! Ele começa a demonstrar uma atitude obviamente desagradável, porque você o obrigou a se levantar para um atendimento sem resultado. Quando você pede outra coisa, ele diz, você quer comprar ou não? Você responde, ainda não vi nada, como é que vou saber se quero comprar? A compra se torna uma verdadeira batalha. Compreendi que esse atendimento acontece por causa do sistema comunista. O atendente é funcionário da loja – se ele se levanta para mostrar a mercadoria (isso o cansa) ou fica sentado sem fazer nada e apenas bate papo, é a mesma coisa, no final do mês ele ganha seu salário do mesmo jeito. Não existe promoção, não existe ganho maior se o funcionário vende mais, etc.  Esse é o mal do comunismo. Mais tarde fui à Europa Oriental, e lá encontrei a mesma filosofia.

Acho que a abertura econômica de Deng Xiaoping foi de certa maneira muito boa. Cometeu muitos erros, mas ao menos teve a coragem de criar uma alternativa para o povo chinês. Como foi que ele incentivou a economia? Por exemplo, visitei uma fábrica de produtos de seda. Eles criam o bicho da seda que produz o fio da seda. Vamos supor que nos últimos anos a fábrica rendeu US$ 6.000,00 por mês. Então o governo propõe o seguinte: a partir deste ano, se você render US$ 6.200,00 por mês, o governo fica com US$ 6.000,00 (porque a fábrica é do governo) e você fica com US$ 200,00. Com esses US$ 200,00, você pode ampliar seu serviço, distribuir o ganho. Essa é a abertura dos chineses. Eu tenho muita pena dos chineses, um povo sofrido, uma raça trabalhadora. Os chineses conheceram desde sempre o sistema do imperialismo, isto é, o país inteiro servindo a uma só pessoa. O poder era concentrador. Na China, todos admitem que não se discute com o povo, deve-se determinar o que é certo e comunicar as decisões ao povo: assim é que vai ser, vai ser feito assim, assim, assim. Até hoje é ditadura. Hoje estão incentivando a economia, está melhorando, estão querendo combinar capitalismo e comunismo.

Suas visitas à China se tornaram frequentes?

De 1980 em diante, fui várias vezes para a China. Sempre fui muito bem tratada, não posso reclamar. Em 1990, fui convidada para uma visita ao interior da China, Lanzhou, onde existe um centro de petróleo e gás. Havia muitos japoneses e russos no encontro. Os russos entusiasmados diziam: a China é uma maravilha! Para mim, a China ainda era muito atrasada, fiquei imaginando como não seria a Rússia! De Lanzhou fomos para o Caminho da Seda – e tivemos que ir de ônibus, porque houve um problema de lugares no avião, nossas passagens foram para outro grupo, a região era uma verdadeira “terra sem lei” naquela época. Na viagem de ônibus, tudo deserto e árido, a terra ressecada. Eu rezava o tempo todo, meu Deus do céu, se este ônibus pifar, eu vou acabar ressecada como a terra, um fiapo seco. Não acredito que a região esteja melhor hoje em dia.

De 1991 a 2009 fui várias vezes à China em viagem particular ou colaboração científica. O intercambio via colaboração cientifica apoiado pelo CNPq-CAS tem trazido resultados frutíferos para os dois países.

Como foi seu trabalho aqui no Brasil?

Então vou falar um pouquinho do IME. Eu cheguei ao Brasil por meio de um contrato com o Instituto Militar de Engenharia – IME, supostamente a melhor escola de engenharia da América do Sul. Eu trabalhei ali de 1976 até 2009. 33 anos. Quando vim para o Brasil, era para ficar 2 anos. Resultado: fiquei 33 anos. Eu sempre falo que tenho muita sorte. Primeiro, cheguei ao Brasil e fiquei no Rio de Janeiro. Tinha 4 empregos e escolhi trabalhar na Praia Vermelha. Quando abria a porta do meu laboratório, eu via o Pão de Açúcar. Quando viajo para o exterior e realizo seminários, mostro sempre: este é o meu laboratório, esta é a vista do meu laboratório. Aqui posso não fazer pesquisa de primeiro mundo, porque o Brasil precisa é de pesquisa prática, mas posso falar que meu laboratório tem a melhor vista do mundo. É o que sempre digo, e todo mundo fica boquiaberto!

No IME, conheci o exército brasileiro, que é muito funcional. Tudo correu bem, e no início de 2000 comecei a trabalhar com tratamento de água na Amazônia. Esse projeto era do Ministério de Ciência e Tecnologia, “Água potável para a Amazônia”. Os primeiros resultados já foram bons, e o exército gostou porque ele tem pelotões na Amazônia. O projeto passou a fornecer boa qualidade de água potável para  os soldados que servem na fronteira ou nas tropas em campanha, uma das prioridades do exército brasileiro. Nossa pesquisa foi prática, conseguimos transformar todos os tipos de água amazônica em água potável. Eu tive a sorte de trabalhar com o exército, porque ele me dá apoio para o trabalho de campo, com helicóptero e tudo. Estive com todos os pelotões na Amazônia inteira. Pelo interior, em lugares aonde ninguém vai. Por causa do projeto, conheço vários lugares remotos da Amazônia. Esse trabalho foi muito gratificante, foi realmente uma bênção de Deus.

 

Projeto água potável na Amazônia

 

Você realmente gosta do Brasil?

Eu adoro o Brasil. Vim para ficar 2 anos, mas já completei 40 anos no início deste ano (2016). Eu sempre acho que tenho Brasil no meu sangue. Agora passei mais tempo no Brasil que em qualquer outro lugar do mundo. Vivi 21 anos em Taiwan, e agora mais do que 40 anos no Brasil. Eu gosto do povo brasileiro, apesar de muitas vezes causar dor de cabeça, porque no mundo nada pode ser perfeito.

Quero ter condições de trabalhar e curtir a vida, assim como o Brasil oferece. E também porque vejo o Brasil como uma terra de grande potencial. Aqui você tem muito que fazer, não precisa realizar a última linha de pesquisa, mas tem a oportunidade de fazer a pesquisa prática de que o país precisa. Como, por exemplo, o tratamento da água na Amazônia.. Pouca gente sabe tratar a água  na Amazônia, porque a água preta é típica da região, só o Brasil tem esse tipo de água. Por isso, o IME me ofereceu um bom lugar para trabalhar. Os alunos são bons, tenho o apoio do instituto – para mim está ótimo. E no que trabalho, concorrendo com outros cientistas, estou entre os bons. 

 

Aula na chuva

 

Você dá aulas de química e de língua chinesa?

Com a abertura da China, criou-se no mundo uma grande moda a respeito dos chineses. Roupas da China, língua da China, cultura da China. No Brasil, essa moda também pegou. Muitos querem agora aprender a língua chinesa. Como trabalho na PUC desde a década de 2000, o Departamento de Letras me procurou para saber se eu não montaria um curso de língua e cultura chinesa. O curso funcionou uns cinco anos. Depois a PUC fez um convênio com uma universidade da China, e eu encerrei minha carreira como professora de língua chinesa na PUC. Não foi problema para mim, porque o curso era uma atividade extracurricular. Eu sou uma pessoa de sorte, e sempre fiz muitas amizades – nos Estados Unidos, no exército brasileiro, na PUC. Nesse curso de língua, encontrei muitas pessoas interessantes como, por exemplo, Betse de Paula, Ana Caillaux e Diana Salzman. Essas três foram minhas alunas na PUC. Quando acabou o curso, elas me escreveram uma carta em chinês. Imagina, estudaram um pouco comigo, e já escreveram uma carta em chinês. Eu fiquei muito comovida, ainda esperei umas duas ou três semanas, mas um belo dia fui ao Jardim Botânico, porque elas praticam taiji no jardim. Por causa delas, por apreciá-las, comecei a dar uma aulinha de chinês no Jardim Botânico.

 

Aula de mandarim no Jardim Botânico

 

Como é o ensino da língua chinesa?

O chinês não é uma língua fácil porque possui tons diferentes. Tudo depende do dialeto da China. Por exemplo, uma palavra – ma – tem sete tons na língua taiwanesa; no mandarim tem cinco tons. Estou falando em diferentes dialetos, diferentes pronúncias, diferentes entonações. Quantos dialetos tem o chinês? Há 56 etnias na China. Imagina quantas línguas e dialetos locais – deve haver mais de duzentos. Quando você fala dialeto na China, nem sempre será compreendido. Se alguém me fala em cantonês, entendo de 1 a 5 por cento. Se uso a língua de Formosa para falar com os da raça miao, eles não entendem nada do que estou dizendo. A China tem 56 etnias, 56 povos, 56 culturas diferentes. Isso a torna muito atraente, especialmente para quem, como eu, gosta de folclore, Em qualquer lugar da China, você vai encontrar muita gente. A China tem 1,4 bilhão de pessoas. Dentre as 56 etnias, mais de 90 por cento são da raça Han. Eu sou dessa raça. Os Han vivem ao longo da linha da costa. No sul da China, ao norte do Camboja, Tailândia, Vietnã, estão os da raça miao. Essa raça possui poucos integrantes, às vezes apenas 50.000 pessoas ou, quando muito, meio milhão, uma minoria na China com seu 1,4 bilhão de habitantes. A cultura desse povo do sul da China é muito alegre. Suas canções são alegres, as roupas coloridas, as mulheres e os homens dançam. Eu nunca imaginava ver mulheres e homens dançando, porque na cultura em que meu pai e minha mãe me criaram, o homem não toca a mulher com a mão em público. Pelo menos, na geração deles. Mas o povo do sul da China é diferente, eles são muito alegres.

Mais uma aula no Jardim Botânico

Minha aula no Jardim Botânico versa sobre língua e cultura chinesa. A turma é composta de pessoas já maduras, com mais apreciação e experiência de vida. Vão a fundo no que aprendem, e por isso exigem muito de mim. Essas exigências me custam bastante na hora de preparar as aulas. Além disso, sou uma pessoa que não gosta de monotonia, gosto de algo criativo. Então, conforme dança a música, procuro fazer o que pedem. Querem aprender caligrafia, então ensino caligrafia. A caligrafia é uma arte que está desaparecendo na China. Na minha época, eu tinha que escrever todos os dias três folhas, treinando com pincel – isso se estendeu até o primeiro ano da faculdade. Hoje em dia as pessoas nem sabem segurar o pincel. Na China atual, há um tipo de educação em que você não precisa escrever os ideogramas, basta reconhecê-los. Nesse aspecto, acho que meus alunos do Jardim Botânico estão mais adiantados, porque eles reconhecem e escrevem bem as palavras. Eles mantêm meu espírito de pesquisa. Pesquiso como fazer arte chinesa, como fazer caligrafia, como fazer nó chinês, como fazer essa flor e outras coisas mais. Na China, eu teria alguém para me ensinar, aqui tenho de pesquisar para saber como vou ensinar. Mas sou aposentada, então para mim é o maior prazer. Esse grupo é especial para mim. Imagina, um grupo de seis ou sete pessoas –  de quatro anos para cá ninguém falta, ninguém sai, todos muito interessados desde o início até o final da aula. No geral, acho que cuido bem de todos os meus alunos. Gosto dessa relação com as pessoas. 

Todo sábado faço qigong no Jardim Botânico, tomo um café, converso com as pessoas. Porque carinho neste mundo é sempre bom. Àquelas pessoas com quem a gente não se dá, tchau! Às outras com quem a gente se dá, é importante demonstrar carinho. Assim é a vida. Porque, em geral, a vida é, na verdade, muito só. Acho que é muito sozinha. Se você tem sorte e vive com um parceiro bom, ótimo. Mas um dia o parceiro vai embora, aí você fica só. Ou então é você que vai embora mais cedo. Então veja aqui, eu sou aposentada, curto minha filha, curto meus alunos, brigo com todo mundo, brigo com meus alunos, mas todo mundo se dá em paz.

Um recado de Whei Oh Lin:

 

日  日  是   好  日﹐ 事   事  在  人   為
rì    rì  shì  hao  rì     shì  shì  zài  rén  wéi

Todos os dias são bons dias
Todas as coisas dependem de você.

*retirado de um calendário de ensino da vida da família

Calendário de ensino da família

 

 

 


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