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Ficção

Conto Antigo

 

Esta história foi escrita para os queridos João e Pedro, filhos da Juliana e do Lucas

 

Em tempos de antigamente vivia um rei muito poderoso, senhor de imenso império, rico e justo, amado por todos os seus súditos. Era casado com uma rainha muito bela e sábia que lhe deu três filhos homens. Um dia, porém, para desgosto profundo do rei, a rainha morreu despedindo-se com um sorriso. O reino cobriu-se de preto por meses, mas ainda quando as cores voltaram a brilhar nas vestimentas e na natureza, os olhos do rei não afastavam o véu de tristeza, e a coroa lhe pesava incômoda na cabeça. Com amargura ele olhava para a terra dos jardins de seu palácio, desejando estar com a companheira de tantos anos.

Sua tristeza resvalava para os ombros dos súditos, por isso ele reuniu os filhos e lhes disse:

–  Meus filhos, a saudade que sinto de sua mãe vai se tornando insuportável, e percebo como a minha melancolia faz mal ao reino. Por isso, quero que vocês partam, cada um para um lado, e procurem um remédio para a minha dor. Se conseguirem que a coroa não me pese tanto sobre a fronte, terei novo ânimo para cuidar da vida de meus súditos.

Os três filhos escutaram as palavras do pai, e no dia seguinte partiram obedientes em busca de nova alegria para o reino.

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O mais velho, cioso de seus direitos e deveres, partiu antes dos irmãos rumo ao Norte. Levava prudentemente agasalhos e suprimentos que a viagem se afigurava longa e trabalhosa. E não se enganou. Durante várias primaveras, outonos e longos invernos, ele labutou de sol a sol arando a terra, semeando, plantando, colhendo os frutos, acertando as contas dos livros, sempre cuidando para que a justiça nunca se afastasse de suas decisões. Tão perfeito foi seu trabalho que não tardou a acumular muitas riquezas, que ele guardava com esmero esperando o retorno ao reino.

E o seu dia de triunfo finalmente chegou. Foi com pompa, fausto, música e fanfarras, que ele cruzou os portões do palácio, aclamado por todos os súditos do pai e pelos seus companheiros, pois corria pelo mundo inteiro sua fama de bondade, justiça e diligência. Com prazer estendeu diante do pai todas as tapeçarias, joias, marchetarias de fino lavor, vestimentas feitas com tecidos finos, baixelas cobertas de iguarias, instrumentos musicais raros tocados por músicos exímios, bibliotecas minuciosamente catalogadas e consultadas, engenhocas futuristas que, garantiam os inventores, facilitariam a lida diária. As riquezas transbordavam do palácio invadindo as ruas e travessas do reino. O rei não conseguia dissimular o orgulho que sentia do filho, a todos falava da diligência e correção com que seu primogênito tinha criado tanta riqueza e fartura.

Mas se o seu rosto exibia um já sorriso triste, lá no fundo do coração continuava a pingar a nota dura, e era com certo desânimo que ele considerava as jarras de ouro e os mantos de brocado, imaginando ver impossíveis rasgões nos tecidos ou desgastes nas baixelas. A música lhe soava às vezes monótona, enfastiado afastava as frutas na salva de prata, e não podia deixar de reconhecer que a coroa ainda lhe pesava incômoda. Por mais que tentasse dissimular sua tristeza, ao olhar reto do filho não passava despercebido que ele falhara na sua missão.

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O segundo filho partiu impetuosamente para o Sul, carregando consigo sua ânsia de movimento e ação. Doía-lhe ver o pai mergulhado em desânimo, desejava restituir-lhe a energia e o vigor da juventude. Foi sem hesitação que subiu a bordo da nau capitânia e conferenciou com seus auxiliares sobre a melhor rota a seguir, a bússola orientando os dedos sobre o mapa, a mão impaciente afastando-se de cada porto, sempre o horizonte mais à frente. E foi com denodo que enfrentou os mares revoltos, o navio às vezes adernando quase a ponto de afundar, para divisar com deslumbramento a linha da terra aparecer lentamente entre o mar serenado brilhante de sol. Visitou ilhas, escalando escarpas íngremes que se precipitavam no mar escuro, ancorou a nau em angras iluminadas, a tripulação saindo em expedição pela foz do rio, que ali desaguava, à procura de frutos e peixes de água doce. Muitas vezes as ilhas pareciam estender-se horizonte afora, e ele penetrava na terra, apreciando suas possibilidades, admirando suas belezas e esquivando-se dos perigos. Assim abriu caminhos em continentes desconhecidos e inabitados, negociando, nos mercados concorridos em que o navio às vezes aportava, os frutos colhidos nas incursões arriscadas, e muitas escaramuças teve de enfrentar com mercadores nem sempre escorreitos.

Em praia escondida pela vegetação e pela falésia, encontrou um grupo de pescadores falando língua esquisita, e foi só com grande trabalho que decifrou seus gestos e divisou mais além o enorme pássaro capaz de carregar um homem ao alto do monte e das nuvens. Era o que os pescadores pareciam estar dizendo, as mãos para o alto, os dedos apontando o sol.

Ele se deixou guiar para perto do pássaro, a curiosidade acelerada especulando até onde conseguiria chegar. O pássaro o fitou com olhos interessados, impossível imaginar o que se esconderia em sua cabeça. Procurando apoio nos que se aglomeravam ao seu redor, ele não estremeceu quando o ataram ao corpo da ave, nem quando as duas asas se estenderam imensas com suas penas brilhantes de prata. A decolagem foi sem solavancos, sequer abalada pela última virada de cabeça do pássaro que parecia querer saber que carga estava levando aos ares.

Passaram ventando pelo topo da falésia, nem deu para ver a vegetação rasteira se inclinar com o golpe desferido no ar. E depois vieram as nuvens, uma após outra, montes, rajadas e rabiscos se alternando ao longo do voo ora gelado, ora ameno, ora turbulento em meio a tempestades e raios. A terra lá embaixo ia perdendo seu relevo, e o pássaro continuava a subir veloz rumo ao alto do céu. Passaram das nuvens, o ar se fazendo mais frio, a luz cada vez mais tênue, uma escuridão envolvendo os olhos, e de repente surgiu a surpresa de uma lua, já de brilho acentuado.

E mais se distanciaram rodopiando em torno de estrelas ora azuis, ora brancas, ora vermelhas. O pássaro deslizava à vontade na imensidão que não parecia ter fim, como se tivesse uma bússola a lhe ditar o caminho naquele mar de ondas invisíveis. Haveria um ponto de retorno, um aterrissar naquele planalto vermelho que assomava agora à sua frente? Ou continuariam mergulhando no que não tinha nome nem direção?

Seria mesmo o corpo do pássaro que ele sentia contra o seu? Não era mais escorregadia a pele que seu braço roçava? Estranhou também o tamanho das asas agora diminutas, e que dizer deste esguicho que parecia irromper à frente, na cabeça daquele animal que o transportava? Sentiu a onda inundar seu entorno e sem opor resistência acompanhou o mergulho cada vez mais fundo, o azul das águas sempre escurecendo o breu entre as estrelas.

O espírito inquieto do príncipe não lhe dava trégua. E já se embrenhava na caverna que se abria a seus pés tropeçando em estalagmites de pérola e desviando a cabeça para não bater nas estalactites igualmente alvas. Alguma coisa o empurrava cada vez mais fundo entre os peixes que brincavam ao redor, alguns bem ameaçadores. Mas os perigos não intimidavam o príncipe, que só queria saber de inventar novos caminhos pelo universo.

E foi com entusiasmo e energia que buscou o pai para acompanhá-lo na descoberta de veredas até então nem sequer sonhadas em terras desconhecidas, em grutas rasgadas no solo e no mar, em espaço cercado por estrelas e planetas. Com a coroa se desequilibrando sobre a cabeça, lá foi o rei atrás de seu segundo filho, confiante nas maravilhas que ele pretendia lhe mostrar. Até fez amizade com o pássaro que lhes deu carona para as estrelas, e não hesitou em percorrer o fundo do mar pouco iluminado. Mas nem o momento mágico de a linha de terra aparecer como que por acaso no horizonte do mar infinito foi capaz de endireitar a coroa na cabeça do rei, e o filho abraçou o velho pai comovido com a ciência de que falhara na sua missão.

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O terceiro filho, o caçula, não partiu com menos empenho e vontade de ajudar o pai que tanto amava. Claro que levou junto seu companheiro inseparável, o cachorrinho vira-lata que se chamava Ami. Tinha resolvido lhe dar um nome francês, porque ele era da mais fina aristocracia vira-lata, com ancestrais que remontavam à Bastilha. Sem um plano determinado na cabeça, o príncipe se deixou guiar pela beleza do dia e pelo vento acariciante, tomando por acaso o rumo da região um tanto hostil do reino que seu pai sempre lhe dissera para evitar.

 

Ao cruzar uma ponte sobre um rio de mil correntezas, ele se deparou de repente com uma figura aterrorizante que entrava na ponte pela outra ponta. O gigante avultava brandindo um enorme pedaço de pau e soltando grunhidos roucos. O príncipe viu tudo escuro à sua frente, a sombra do gigante já o cobrindo por inteiro, e o corpo sem pensar começou a recuar em disparada buscando a margem que abandonara há pouco. Mas Ami não gostou dos modos do gigante, pôs-se a latir feito um condenado e, para desespero do príncipe, resolveu avançar. Quando viu aquela montanha de carne tentar acertar uma paulada no pequeno Ami, que só escapulia e mais latia, o príncipe perdeu a noção do que estava fazendo, nem soube explicar mais tarde como é que a rasteira desequilibrou o gigante que despencou e foi carregado pela correnteza, enquanto ele e Ami caíam sobre as pedras da ribanceira. As pedras eram pontudas, e ele se machucou muito, ainda bem que Ami parecia ter escapado ileso, podendo ajudá-lo a se arrastar até a terra seca.

O príncipe pediu a Ami que avisasse seu pai, porque não estava podendo caminhar, a perna doendo que nem sei.  O cachorrinho não perdeu tempo, e logo os valetes do reino e o próprio rei chegavam esbaforidos para levar o pobre príncipe numa maca e pensar seu ferimento. O rei estava muito preocupado, reclamava que o filho não tinha prestado atenção no caminho e lamentava o machucado na perna. A coroa lhe pesava na cabeça, ele a endireitava, mas o príncipe sentia os olhos se encherem de água por ter acrescentado mais peso à coroa do pai. Ami lambia a mão do príncipe tentando consolá-lo, com o focinho acarinhava a cabeça do amigo, como a querer diminuir sua dor.

Os irmãos vieram confortar o ferido, procurando desfazer sua sensação de culpa por ter inviabilizado a missão já no primeiro dia. O segundo filho resolveu contar o que lhe acontecera numa de suas excursões, para mostrar ao irmão que esses contratempos faziam parte da lida de todos. Ancorado perto de uma ilha perigosa, disse ele, parte da tripulação tinha assumido sua identidade pirata até então camuflada, e os marinheiros leais se viram presos na armadilha do bando a bordo da nau. Passado o desconcerto de todos diante da surpresa ingrata, a reação veio com força e foram muitas as escaramuças em todos os cantos do tombadilho. E não faltavam detalhes do pirata que tentou se esquivar ao ataque subindo atabalhoadamente mastro acima. Mais tarde o grande estrondo com que tombara na água, despencando lá de cima com o golpe sorrateiro que lhe foi aplicado pelo que também galgava o mastro no seu encalço. O príncipe registrava o relato do irmão com esmero, caprichando na tinta dourada com que traçava as palavras. O rei endireitava a coroa, distraído com a aventura do seu segundo filho, e não deixou de elogiar o desenho das letras que o caçula ia rabiscando com o pincel.  São letras escocesas, explicou o filho.

Mas a perna continuava a doer muito. Ami não desgrudava do companheiro, fazia cabriolas ao redor, empurrava a perna com o focinho. A dor só aumentava, mas o príncipe não afastava Ami, antes tentava abraçar o cachorrinho para tranquilizá-lo, dizer que estava tudo bem. O irmão mais velho estava preocupado com a ferida na perna do príncipe e tratou de consultar os sábios que conheciam as práticas de cura do corpo. Eles vieram examinar o príncipe e receitaram um feixe das ervas que o primogênito do reino tinha encontrado em florestas virgens e aprendera a cultivar respeitando sua condição silvestre. O irmão mais velho selecionou as ervas que entrariam no feixe, auxiliado por Ami que pulava alegre ao redor, não se sabia se por estar ajudando na cura do amigo, ou se por adorar embrenhar-se nos arbustos e vegetação rasteira. O príncipe mascou algumas das ervas, ingeriu outras numa infusão de água quente, reclamou de muitas por causa do gosto picante e ardido, mas seguiu as ordens do irmão e de Ami que quase lhe enfiava as ervas boca adentro na ânsia de querer ver o príncipe curado. O rei sentia a coroa enviesada na cabeça, mas não perdia nenhum dos gestos do primogênito que agora levantava e dobrava a perna machucada do irmão. A preocupação do rei amainou, e sua cabeça até se ajustou melhor à coroa, quando viu seu caçula outra vez de pé medindo os passos atrás de um Ami que abanava freneticamente o rabo. Nos dias seguintes o príncipe nem sabia como agradecer ao irmão mais velho, e não se cansava de acompanhar o trabalho incessante da sua equipe, tentando ajudar como podia no cultivo da terra e nas várias manufaturas que prosperavam por todo o reino. É claro que Ami também queria ajudar, embora muitas vezes atrapalhasse as tarefas que estavam sendo realizadas, mas ninguém reclamava, pois todos gostavam muito do cachorrinho.

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Os dias traziam cada vez mais firmeza à perna do príncipe, e vendo a coroa pesar sobre a fronte do pai, ele sentiu que já estava na hora de retomar a missão interrompida logo no início. Foi com bastante alegria que pôs o pé de novo na estrada, com Ami ao seu lado cuidando para que não lhe acontecesse outra desventura. A estrada desembocava numa grande floresta, e o príncipe e Ami enveredaram por uma trilha que lhes pareceu agradável, mais livre de cipós e galhos com espinhos. Não demorou muito para que chegassem a uma espécie de clareira, e foi com firmeza e sem fazer barulho que o príncipe prendeu Ami nos braços, porque tinha divisado na elevação do terreno à sua frente uma figura perigosa de brilho nos olhos. Um gato bem grande ali se movia em silêncio como fazem todos os gatos, muito à vontade entre as árvores, os arbustos e a vegetação. Ami já percebera a presença do lince, e tentava se soltar das mãos do príncipe e começar a latir, mas logo sentiu o focinho também preso pelo amigo, e nenhum som quebrou o silêncio harmonioso da brisa entre as folhas. O lince continuava sua incursão pela clareira, mas de repente eriçou o pelo sem atinar no que fazer com a mancha escura que se deslocava em meio às plantas. O porco-espinho avançava sem medo, alheio ao que encontraria mais acima, mas, ao sussurro de gravetos levemente esmigalhados. ele se deteve e começou a se enrolar numa bola felpuda, ainda que as felpas não parecessem muito flexíveis. O príncipe quase não respirava á espera do que iria acontecer, e foi num relance que viu o lince avançar, o porco-espinho se encrespar mais e mais, o lince soltar um guincho de dor, pular para trás com espinhos por todo o corpo, e… ai, ai, ai, Ami desprender-se de seus braços a latir como um louco. Latidos que logo se transformaram em ganidos, o príncipe mal tendo tempo de agarrar Ami e sair correndo para bem longe de linces, porcos-espinhos, pulos estarrecidos, bolas de espinho rolantes, dores de ferroadas.

O príncipe foi procurar o pai em busca de auxílio, pois estava muito assustado com todas aqueles espinhos no focinho de Ami. O cachorrinho só sabia ganir, e a coroa do rei caiu ainda mais para o lado diante de sofrimento tão agudo. Mais uma vez foram convocados os sábios que trabalhavam com o primogênito, e foi ele mesmo que com muito cuidado extraiu um a um os espinhos que enfeitavam o focinho de Ami como um bigode indesejado. Não foi fácil retirar cada espinho porque tinham muitas farpas, e também porque Ami se contorcia de dor e dificultava a operação. Mas com a ajuda de algumas ervas poderosas, Ami se viu afinal livre daquelas fincadas lancinantes, e novas ervas contribuíram para a cicatrização das feridas nos dias seguintes.

O príncipe e o rei respiravam mais calmos vendo Ami já restabelecido, e o segundo irmão fez questão de contar certa noite, ao lado da fogueira no campo, que tinha presenciado luta parecida em floresta distante.  O embate entre o lince e o porco-espinho tinha sido semelhante, mas o lobo que astutamente observava a cena permanecera bem longe aguardando o desfecho da briga, e ao ver o lince se afastar aos saltos, não perdera tempo e atacara o porco-espinho antes que ele se enrolasse de novo numa bola espinhenta. Assim, para um certo desgosto de Ami, o segundo irmão declarou que com paciência e esperteza o lobo ganhara a parada sem nenhum espinho no focinho. O rei endireitava a coroa na cabeça prestando atenção ao filho, e gostou de ver a história registrada pelo caçula a desenhar as letras douradas que corriam pela paisagem iluminando o acampamento. As letras mais arrojadas agradaram ao rei, a quem o caçula explicou que elas eram traçadas com rajadas de pincel por serem obra do lobo do mar.

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Mais uma vez o príncipe esperou que as dores de feridas amainassem, outra vez aguardou que ele e Ami pudessem correr e pular pelos campos sem tropeços. O rei cuidava de ambos, acarinhando Ami que sempre que podia se aninhava no seu colo. Mas o príncipe via que a coroa do rei ainda lhe pesava na cabeça, pois tombava desajeitada para um lado. E ele sabia que tinha uma missão a cumprir. Foi mirando-se no exemplo dos irmãos que engoliu em seco e partiu novamente à procura de uma coroa mais leve para o rei, Ami a saracotear de um lado para o outro ao seu lado, os dois confiantes no sucesso, apesar do fracasso das primeiras tentativas.

Muito andaram pelos campos, e não foram poucas as florestas que desbravaram sem temer novos encontros perigosos. Ami saltava de alegria, curioso explorava cada raiz, cada plantinha, cada desvão do terreno. O príncipe também caminhava satisfeito, sentindo no rosto o vento ora forte, ora mera brisa, a chuva de vez em quando, o sol forte e as sombras bem-vindas. Os dois estavam se divertindo muito como sempre. De repente chegaram a um vale que fez os dois pararem de admiração. Nunca tinham visto nada tão bonito. As montanhas eram altas em todos os lados, mas as encostas de declive suave eram cobertas de um capim tão parelho que até parecia grama de jardim cultivado. Ao fundo do vale havia um bosque bastante espraiado, e suas árvores e arbustos exibiam várias nuances de verde e outras cores. Perto brilhava um córrego, e sua música era doce misturada ao pipilar dos passarinhos. O príncipe e Ami começaram a descer a encosta deslumbrados com a beleza de tudo para onde quer que olhassem. Já dentro do bosque perceberam muitos grupos de pessoas conversando, tocando instrumentos musicais, dançando, passeando de braços dados, fazendo algazarra. Eram todos muito belos, elegantes, refinados, afáveis, acenavam amistosamente para o príncipe e acarinhavam Ami que estava adorando correr atrás dos esquilos e dos coelhos. Deviam ser súditos de outro reino, pois suas vestimentas eram mais diáfanas que as usadas nas terras do príncipe e do rei seu pai. Ao centro de uma clareira no bosque apareceu então uma dama alta, esguia, os cabelos trançados embaixo de uma guirlanda de flores multicoloridas. Todos a tratavam com reverência, e ela sabia sorrir e distribuir gestos afetuosos para cada um. Até para o príncipe enviou um beijo com um gesto de mão delicado a partir da ponta dos lábios. E não é preciso dizer que Ami a encantou imensamente, nem se importava que o cachorrinho puxasse por vezes os folhos de seu longo vestido em tons pastéis.

O príncipe estava apaixonado pela dama, pelo bosque, pela música, pela beleza. Os olhos muito abertos não queriam perder nenhum detalhe do espetáculo. Assim é que sua atenção concentrada começou a perceber uma estranheza que surgia de vez em quando, depois sumia, para aparecer de novo. Seriam as sombras da montanha próxima? Não saberia dizer, mas de repente a luz abandonava o bosque, as formas se dissipavam no escuro, como se uma folha de papel colorida mostrasse de repente seu verso em preto e branco. Mas logo batia o vento e as cores voltavam com mais força, e com mais ritmo e harmonia esvoaçavam as pessoas ao redor. Apesar de intrigado, o príncipe logo esquecia as sombras invasivas e tornava a participar encantado da cena luminosa. Ami não parecia se perturbar com luzes e sombras, apenas corria e pulava pelo bosque de ponta a ponta. A dama o chamava, e pegava o cachorrinho para dançarem juntos. O príncipe sorria, mas sentiu uma ponta de temor quando as sombras voltaram a envolver a paisagem, e a dama se dissipou com Ami no colo dentro da escuridão. O príncipe sacudiu a cabeça, piscou os olhos e esperou o retorno das cores e luzes, mas isso não aconteceu. Ele esperou mais um pouco, andou para frente e para trás, abriu os braços, olhou para os lados, para cima, para baixo. E nada. As cores não voltavam, nem as pessoas tão alegres, nem as danças e a música, nem as árvores e o córrego, nem a dama de cabelo trançado e… ai, ai, ai…. nem Ami.

 

Meio tonto o príncipe procurou seu caminho, mas descobriu-se em terrenos desconhecidos. Não conseguia mais vislumbrar as montanhas de encostas verdes, nem o vale com seus córregos.  Andou aflito em todas as direções, cruzou florestas densas, escalou morros, atravessou rios, subiu em árvores, sempre a chamar Ami, sempre esperando escutar resposta do cachorrinho e vê-lo aparecer correndo e pulando. Mas a caminhada do príncipe já se estendia por longo tempo, e nada de Ami. Com o coração pesado, ele resolveu por fim retornar ao reino e pedir ajuda ao pai. O rei sentiu a cabeça pender sob o peso da coroa, pois não sabia o que fazer para minorar a angústia do filho. Ordenou que todos os homens da sua guarda pessoal partissem em todas as direções e esquadrinhassem todos os lugares, o cachorrinho tinha de ser encontrado. Os dois irmãos mais velhos traziam no rosto marcas de aflição, queriam cuidar do caçula, e ambos partiram pelos campos e pelos mares recorrendo a todos os seus conhecimentos na busca do companheiro do irmão. Os dias se acotovelavam, o reino inteiro vivia a procurar Ami, mas Ami não dava o ar de sua graça.

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Em certo momento, era já tarde e a noite começava a descer, o príncipe olhou para o pai com desespero nos olhos, tomou a mão do rei, sentou-se ao seu lado no banco do jardim do castelo, baixou a cabeça e começou a chorar. O choro veio aos pouquinhos, as lágrimas pingando desencontradas, mas depois foi engrossando, engrossando, e o príncipe tremia todo dominado pela dor da sua perda. O rei o abraçava, tentava conter os soluços trêmulos e o choro desatado do filho, mas em vão. O príncipe chorava, chorava e chorava. Não havia o que o fizesse parar, nem mesmo o cansaço natural. Aos seus pés começou a se formar um fio d´água diminuto, que com o tempo se tornou um córrego, um riacho, um ribeirão, um regato… Não, não dava mais para esconder a realidade com as palavras, era um verdadeiro rio que agora corria caudaloso pelo reino. Todos passaram a conviver com a novidade, os passarinhos, os peixes, as plantas nas margens, os súditos do reino que construíam pontes em certos locais e que deram ao rio o nome de lágrimas, rio lágrimas.

Aconteceu então – ninguém sabe precisar o momento exato, se ao amanhecer, ao entardecer ou na hora do sol a pino – que o príncipe parou de chorar. O rei, os irmãos, todo mundo ficou atônito, sem saber explicar o milagre, e todos ainda se perguntando se o choro não recomeçaria. O príncipe esboçou gestos muito lentos, e por fim se levantou. De pé, sem se mover, virava a cabeça para um lado e para o outro, como se tentando rever o mundo e escutar seus ruídos. Todos se entreolharam, esperando o que iria acontecer O segundo irmão adotou a mesma posição do príncipe e olhou para o horizonte com a segurança que sempre sentia ao ver a faixa de terra aparecer entre as ondas e escutar o grito de seus marinheiros, Terra à vista. O mais velho também se colocou atrás do príncipe, curvado sobre a terra, atento para não perder a possível abertura da semente, o broto aparecendo no meio do chão, a haste já ganhando altura e força, as folhas rebentando na planta que nascia. O príncipe era concentração pura, e então começou a caminhar. Saiu para um lado, depois foi para o outro, como à procura de um sinal, atravessou o jardim, enveredou pelos campos cruzando o rio de suas próprias lágrimas, e de repente, ao que parece, escolheu uma direção e para lá seguiu com passos firmes. Todos perscrutavam o horizonte perseguido pelo príncipe, e não tardaram a divisar um possível ponto na distância. Um ponto em movimento, que aumentava aos poucos, bem veloz, sinal de que se aproximava. E foi então que o príncipe deu um grito e saiu correndo, e o reino inteiro ecoou o seu grito, porque já não havia dúvida… realmente… com certeza… sem erro…. verdadeiramente… à luz dos fatos… diante dos olhos de todos… sem possibilidade de desmentido… comprovadamente… irrefutavelmente… em verdade… era Ami que ressurgia a correr feito um louco com um frasco na boca, preso entre os dentes. O príncipe correu e correu, Ami correu e correu, e os dois se embolaram e rolaram no chão quando juntos, e de todo o reino subiu então ao céu a voz dos súditos que em uníssono entoavam o hino à alegria.

 

O rei resolveu dar uma grande festa para que todo o reino pudesse participar da felicidade do retorno de Ami, mais uma vez ao lado do príncipe em todos os momentos. Foram muitos os preparativos para o banquete no jardim do castelo, e o próprio príncipe fez o bolo para a festança. Ele sabia manejar os pincéis para registrar as histórias com a tinta dourada, e as colheres e panelas para inventar bolos e quitutes sofisticados. Ami corria feliz entre os convidados que chegavam, prestando atenção para não perder nenhuma das guloseimas que eram servidas. Sentado ao lado do rei no centro da festa, o príncipe se lembrou do frasco que Ami trouxera, entre os dentes, de sua excursão por terras e tempos ignotos. Foi buscar o frasco que guardara em seu quarto, matutando com seus botões de onde Ami o teria surripiado. Era um frasco refinado, em tom pastel, e ele e o rei descobriram que se tratava de um perfume. O rei abriu a tampa de leve, e imediatamente um perfume doce e inebriante deliciou todos os presentes à cena. O príncipe se sentia nas nuvens – névoas perfumadas, diga-se de passagem – mas ao se virar para o pai, viu que alguma coisa acontecera. Os olhos do rei estavam repletos de água, uma a uma as lágrimas tombavam pela sua face. O filho apertou a mão do pai, tentando compreender a razão de seu desamparo, mas não pôde deixar de perceber que a coroa não estava caída para o lado, antes perfeitamente ajustada à cabeça do rei. O pai sorriu para o filho, e no meio da onda de perfume antigo, beijou o caçula assim como o tinha beijado naquele dia remoto em que, recém-nascido, o menino repousava entre os braços da mãe. Não há perfume como o das mães, disse o rei. E mais uma vez sorriu entre as lágrimas. O príncipe permaneceu ao lado do pai até o fim da festa, muito intrigado com o equilíbrio da coroa que o rei agora portava com garbo. Imaginou que deveria haver um enigma sobre o peso da coroa, e novamente desconfiou das andanças de Ami. Muito provável que o cachorrinho soubesse desses mistérios, talvez tivesse a chave da balança que determinava o peso ideal da coroa. Perto de seus pés, Ami enroscava-se para dormir. Olhou candidamente para o príncipe, coçou a orelha com a pata, apoiou o focinho no chão e mergulhou no sono. Afinal a manhã não tardaria a chegar com o sol, e ele já estaria a postos para mais um passeio com o príncipe, intenso como sempre.

 

Rosaura Eichenberg

 


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