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Matéria de Capa

BOB DYLAN – Mais Achados e Perdidos

Dylan & Kafka

The songs kind of write themselves and count on me to sing them.

Numa conversa registrada por um amigo jornalista, Dylan se referiu às suas canções de um modo que me lembrou um trecho do diário de Franz Kafka sobre a criação de sua escrita. Disse Dylan:

“The songs seem to know themselves and they know that I can sing them, vocally and rhythmically. They kind of write themselves and count on me to sing them.”

“As canções parecem conhecer a si mesmas e elas sabem que posso cantá-las, vocal e ritmicamente. Elas como que se escrevem e contam comigo para cantá-las.”

Em seu diário no ano de 1910, Kafka faz uma reflexão sobre o ato de escrever:

Mas todo dia uma linha ao menos deve ser apontada para mim, assim como apontamos o telescópio para os cometas. E se eu então aparecesse diante daquela frase, seduzido por aquela frase...”

Num pequeno texto que se encontra neste site da Íbis, Kafka e o malabarismo, comentei:

Kafka emprega uma imagem para o ato de escrever que espanta pela inversão inusitada da ação. Compara a criação de uma frase ao ato de apontar um telescópio para os cometas. Mas não é ele quem aponta para a frase-cometa, a linha é que vem a ser apontada na sua direção, ela é que poderá descobri-lo, a ele que ocupa o lugar do cometa. A frase vai revela-lo. É o reconhecimento de uma existência autônoma das frases.

Mais tarde consolidadas nas páginas ou nas canções, as frases surgem para despertar o escritor em Kafka e em Dylan.

 

 

 

 

Don’t follow leaders, watch the parkin’ meters

Então com vinte e poucos anos, Bob Dylan saiu de seu Estado natal, Minnesota, rumo a Nova York. Ali passou a integrar o grupo de vida boêmia de Greenwich Village, cantando e tocando violão e harmônica nos cafés e bares do bairro. Já vinha com uma grande bagagem musical de seu convívio e experiência com os ritmos e canções americanas, mas naqueles tempos efervescentes da sociedade americana começou a cantar sobretudo folk songs. O início de sua carreira de songwriter se deu dentro desse veio do folk. Compôs então muitas canções de protesto, contra a guerra e principalmente pelos direitos civis dos negros americanos. Seu envolvimento na luta pelos civil rights foi intenso, e compôs belas canções com esse propósito como The Lonesome Death of Hattie Carroll. E com Blowing in the Wind, Dylan dá partida a uma carreira de tirar o fôlego de qualquer um.

Em seu livro de memórias, Chronicles, lançado em 2004, Dylan fala dos primórdios de sua trajetória e rejeita categoricamente o rótulo de porta-voz de sua geração que lhe atribuem. Os anos 60 foram tumultuados em todo mundo – e The Times were a-changing nos Estados Unidos da América, onde Kennedy foi assassinado, Martin Luther King liderou a conquista dos civil rights mas acabou também assassinado, o movimento hippie balançou a sociedade americana com o Make Love Not War e o Drugs, Sex and Rock’n’roll, enquanto paradoxalmente o país perdia tantos jovens na guerra do Vietnã. Foram anos no mínimo nervosos, e Dylan foi arrebatado pelo turbilhão da época. Muita pretensão tentar descrever os passos de Dylan então, cabe apenas indicar algumas linhas do que aparentemente acontecia. Após o início festejado de sua carreira, Dylan deu uma guinada para o rock’n’roll, o que lhe custou muitas críticas e as vaias que choveram no Newport Folk Festival em 1965. Os anos 60 de Dylan foram uma sequência alucinada de concertos, tournées, rock e vaias, drogas, entrevistas turbulentas, participação na histórica marcha de Martin Luther King em Washgington 1963 e recusas a participar em eventos políticos, concerto no Olympia de Paris em 1966 com uma bandeira americana gigantesca como pano de fundo – houve vaias, mas talvez menos à Star-Splanged Banner em plena Guerra do Vietnã que às guitarras elétricas e ao rock’n’roll. Em meio a essas curvas frenéticas, de repente ele foi obrigado a frear. Em julho de 1966, sofreu um acidente de motocicleta que quase lhe custou a vida. Recolheu-se a um lugar protegido do grande público, e continuou a trilhar seu caminho com um pouco menos de velocidade.

Esquerda: Dylan em Newport 1965 com uma guitarra elétrica. – Direita: Dylan em Paris 1966 com a bandeira dos Estados Unidos.

As manifestações políticas na sociedade americana dos anos 60, focadas principalmente no movimento dos direitos civis para os negros americanos, ganharam força mais tarde com os protestos contra a Guerra do Vietnã. No filme No Direction Home de Martin Scorcese, que retrata esses anos da trajetória de Dylan, Joan Baez relata que Dylan se recusava a participar de concertos com propósitos políticos. No filme, o próprio Dylan explica sua atitude dizendo: “This did not relate to me”. Um hiato entre o artista e a política. Desconfio de que isso é uma constante nos artistas. Apesar de fazer parte da contracultura daqueles conturbados anos, Dylan não só rejeita ser o porta-voz da sua geração, como tampouco apareceu no grande festival de Woodstock. Não sei por que não cantou em Woodstock, mesmo morando à época na região, mas me parece um sinal de sua opção pelo acidentado caminho individual.

Esquerda: MLK na Marcha para Washington 1963. Dylan estava lá – Direita: jovem em Woodstock 1969. Dylan não apareceu.

Em 1964, então com 23 anos, Dylan escreve My Back Pages que será gravada no álbum Another Side of Bob Dylan. É no belo refrão desta canção que ele saúda o crescimento que lhe permitiu tornar-se mais jovem, por abandonar certezas talvez envelhecidas e abrir janelas menos emperradas.

“Equality”, I spoke the word
As if a wedding vow
Ah, but I was so much older then,
I’m younger than that now.

“Igualdade”, pronunciei a palavra
Como se fosse um voto de núpcias
Ah, mas eu era tão mais velho então,
Sou bem mais jovem agora.

O caminho será mais perigoso porque incerto, mas urge evitar armadilhas

Fearing not that I’d become my enemy
In the instant that I preach
……………………….

Ah, but I was so much older then,
I’m younger than that now.

Sem temer que eu me tornaria meu inimigo
No momento em que pregasse
……………………………
Ah, mas eu era tão mais velho então,
Sou bem mais jovem agora.

Ciência reafirmada em dois outros versos na canção Wedding Song (1974):

It’s never been my duty to remake the world at large
Nor is it my intention to sound a battle charge

Nunca foi meu dever refazer o mundo inteiro
Nem tenho a intenção de soar a carga na batalha 

Show de aniversário My Back Pages: George Harrison, Roger McGuinn, Eric Clapton, Bob Dylan, Tom Petty e Neil Young

Consta que na vida agitada de seus primeiros anos em Nova York, Dylan passava bastante tempo na New York Public Library lendo sobre a Guerra Civil americana. Os temas sociais afloram nas canções, mais de uma vez ele torna a cantar contra injustiças, mas sem a camisa de força de um militante de causas políticas. Afinal de contas, seu destino não está sendo traçado para cantar e escrever canções?  

 

 

 

 

Beauty

Três afirmativas sobre a beleza que nos fazem pensar.
A primeira é de uma canção de Dylan publicada em 1971, Tomorrow is a Long Time.
A segunda é de outra de suas canções, Not Dark Yet, lançada em 1997.
A terceira é o verso que abre o poema Endymion de John Keats.

As três são beleza em si.

 

There’s beauty in the silver, singin’ river
There’s beauty in the sunrise in the sky
But none of these and nothing else can touch the beauty
That I remember in my true love’s eyes

Tomorrow is a Long Time

 

Behind every beautiful thing, there’s been some kind of pain

Not Dark Yet

 

A thing of beauty is a joy forever

Endymion John Keats

 

 

 

 

Esquerda: João Gilberto – Direita: Bob Dylan

an people perhaps like a soft Brazilian singer… I have given up at making any attempt at perfection

Em 1985, Dylan lançou o álbum Bringing It All Back Home. No encarte, escreveu um longo texto no qual uma frase em particular atraiu minha atenção desde sempre, por fazer referência ao Brasil.  

e as pessoas talvez apreciem um cantor brasileiro suave… desisti de fazer qualquer tentativa para chegar à perfeição

À época, a bossa nova era popular nos Estados Unidos, e o cantor João Gilberto fazia sucesso por lá. Em 1963, eu me encontrava em Washington D. C., e um grande amigo americano apaixonado por jazz estava entusiasmado com João Gilberto. Lembro que me disse certa vez: “He is the best”.

Assim é que sempre pensei em João Gilberto ao ler a frase de Dylan. Ainda mais porque logo em seguida ele fala de uma perfeição que considera impossível, e sempre me pareceu que a arte de João Gilberto buscava perfeição. Claro que tudo isso não passa de especulações minhas, pois Dylan podia estar se referindo a outros artistas brasileiros.

Em todo caso, isso me faz pensar numa crítica que sempre escutei a respeito de Dylan. Reclamam da sua voz, que acham desagradável, e muitos se atrevem a dizer que ele não sabe cantar. De minha parte, sempre preferi escutar as canções de Dylan cantadas por ele. O elo peculiar que ele constrói entre as frases verbais e as frases musicais de suas canções é uma das características da sua arte que me fascina. E me parece que é ele quem sabe explorar essa riqueza ao cantá-las.

Em 2015, Dylan lança o álbum Shadows in the Night, em 2016 Fallen Angels e em 2017 Triplicate, em que interpreta clássicos do cancioneiro americano como “The Night We Called It A Day”, “Full Moon and Empty Arms”, “I Am A Fool To Want You”,  “All the Way”, “Sentimental Journey” entre muitos outros. Uma tentativa de reviver canções meio encobertas pela poeira do tempo. Assim é que agora os críticos vão talvez pensar duas vezes antes de denegrir o cantar de Bob Dylan.

 

 

 

 

 

Dignity never been photographed

Não, Bob Dylan não se fez porta-voz de sua geração, nem militou por um mundo melhor (o que quase sempre acaba num pior). Mas nem por isso temas polêmicos dos nossos tempos deixaram de figurar em suas canções. E continuou a advogar contra injustiças como, por exemplo, na canção Hurricane de 1976.

Nessas incursões sobre o que os tempos nos levam a pensar, sobressaem duas características nas canções de Dylan. Muitas vezes aspectos disparatados da realidade recebem comentários argutos e de fina ironia. Outras vezes o que impressiona é a ciência do que está acontecendo e até do que vai acontecer, sinal de uma capacidade extraordinária de ler as linhas entre a realidade.

No álbum Infidels lançado em 1983, muitas canções aludem a polêmicas da época como a globalização incipiente (Union Sundown). Numa delas, intitulada Neighborhood Bully, Dylan canta a luta e as agruras do Estado de Israel, a que dá a alcunha de o valentão da zona. O gume de suas frases, ao pintar os pacifistas que querem eliminar o brigão que tantos problemas causa, é afiado.

Well, he’s surrounded by pacifists who all want peace
They pray it nightly that the bloodshed must cease
Now they wouldn’t hurt a fly. To hurt one they would weep
They lay and they wait for this bully to fall asleep
He’s the neighborhood bully

Bem, ele está rodeado de pacifistas que querem todos a paz
Rezam à noite para que cesse o sangue sendo derramado
Não fariam mal a uma mosca. Ferir uma os levaria às lágrimas
Eles tomam posição e esperam que este valentão caia no sono
Ele é o valentão da zona 

No mesmo álbum, ele tem uma canção chamada Man of Peace, em que repisa o antigo dito “a estrada para o inferno é pavimentada com boas intenções”. Mas sua desconfiança dos filantropos soa como um alerta aos tempos futuros. Às vezes a intuição dos artistas quase os transmuta em profetas.

He’s a great humanitarian, he’s a great philanthropist
He knows just where to touch you, honey, and how you like to be kissed
He’ll put both his arms around you
You can feel the tender touch of the beast
You know that sometimes Satan comes as a man of peace

Ele é um grande humanitário, um grande filantropo
Sabe onde tocar você, querida, e como você gosta de ser beijada
Vai colocar os dois braços ao seu redor 
Você poderá sentir o terno roçar da besta
Sabe, ás vezes Satã vem como um homem de paz

Assim também em Slow Train Coming de 1979, a canção fala do que acontecerá com o aproximar-se do Slow Train, e parece estar se referindo ao que acontece agora quarenta anos mais tarde.
 

There’s a slow, slow train comin’ up around the bend

Um lento, lento trem vem chegando ao redor da curva

In the home of the brave
Jefferson turnin’ over in his grave
Fools glorifying themselves, trying to manipulate Satan

No lar dos bravos
Jefferson virando em seu túmulo
Tolos se glorificando, tentando manipular Satã

They talk about a life of brotherly love, show me someone who knows how to live it

Eles falam de uma vida de amor fraternal, me mostre alguém que saiba como vivê-la

But it sure do bother me to see my loved ones turning into puppets

Mas certamente me incomoda ver meus queridos se tornando fantoches 

Em When You Gonna Wake Up? do mesmo álbum, a degradação social é descrita sem rodeios e, apesar de não ser agradável, não há como não a reconhecer em nossos dias.

Adulterers in churches and pornography in the schools
You got gangsters in power and lawbreakers making rules

Adúlteros nas igrejas e pornografia nas escolas
Gangsters no poder e violadores da lei ditando regras 

Dois versos deixam bem claro a camisa de força que enfiaram na mente humana.

Counterfeit philosophies have polluted all of your thoughts
Karl Marx has got ya by the throat, Henry Kissinger’s got you tied up in knots  

Filosofias falsificadas poluíram todos os seus pensamentos
Karl Marx pegou você pela garganta, Henry Kissinger o mantém todo amarrado com nós  

Slow Train Coming foi o álbum que abriu novo caminho na trajetória de Dylan. Ele se converteu ao cristianismo e realizou três álbuns nessa vertente: Slow Train Coming (1979), Saved (1980) e Shot of Love (1981). A crítica e grande parte de seus fãs torceram o nariz, não lhe perdoaram a escolha da nova trilha. Como os sabichões em geral gostam de andar na moda, isto é, com venda nos olhos, cabe voltar a escutar e apreciar a trilogia cristã de Dylan. Pois ele é constante na sua busca, e seus insights tendem a nos iluminar como, por exemplo, o que diz ao procurar a dignidade humana.

Someone showed me a picture and I just laughed
aaaaaDignity never been photographed
aaaaI went into the red, went into the black
aaaaaaInto the valley of dry bone dreams

aaaaSo many roads, so much at stake
So many dead ends, I’m at the edge of the lake
aaaaSometimes I wonder what it’s gonna take
aaaaaaaaaaT To find dignity

 

Alguém me mostrou uma foto e eu apenas rii
aaaaaA dignidade nunca foi fotografada
aaaaaaEntrei no vermelho, entrei no preto
aaaaaaaaaDentro do vale dos sonhos secos.

aaaaaTantas estradas, tanta coisa em jogo
Tantos becos sem saída, estou na margem do lago
aaaaaaÀs vezes me pergunto o que vai custar
aaaaaaaaaaPara encontrar dignidade.

A canção Dignity é de 1994.

 

      Any day now I shall be released 


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