The Never Ending Tour
A partir de 1988, Bob Dylan realizou uma série de concertos nos EUA e pelo mundo afora a que deu o nome de The Never Ending Tour. As poucas notas que serão apresentadas aqui perseguem um eco desse título ambicioso. Diante do universo de Dylan, serão ínfimas e sem fim. Sempre aumentadas, corrigidas e alteradas. Um texto precário com emendas e erratas a cada minuto. Pela mais severa necessidade, afinal “o sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão”.
Emily Dickinson I am nobody
Bob Dylan I Contain Multitudes
O entomólogo prende a borboleta com um alfinete cuidadoso, feliz por ver aumentar sua bela coleção de insetos. A vida se furta a seus olhos, mas ele se contenta com a variedade das formas e cores que um dia marcaram presença na natureza. Cravar um momento em seu álbum ou recolher num herbário as flores secas de outra estação é um trabalho insano que tenta dar nome ao que já deixou de ser.
Emily Dickinson organizou um herbário com seu conhecimento e amor da natureza, e com igual capricho guardou seus poemas em folhas dobradas e presas por fitas. Ler a sua obra é uma aventura escorregadia, porque quando pensamos ter um vislumbre da poeta americana do século XIX, ela já escapuliu e parece estar rindo de nossa pretensão.
Bob Dylan neste século XXI – he not busy being born is busy dying. Mas ele também escapole se qualquer desavisado tenta lhe pespegar um alfinete com alguma etiqueta. Em nossos tempos tecnológicos, ele precisa ser quase um acrobata para eludir as massas que desejam prendê-lo em escaninhos numerados.
Não sei se é a multiplicidade de suas facetas, se é da natureza de sua arte esconder-se sob vários disfarces, mas o certo é que nem Emily Dickinson nem Bob Dylan se deixam capturar. Nem um nem outro estão espetados por alfinetes num mural de nossos tempos. Fazem pensar na seguinte frase de Dostoiévski:
aaaaaaaaa“Ter decifrado uma pessoa por inteiro não me parece ser a maior felicidade. Maior ainda é a felicidade de sempre descobrir naqueles que amamos novas profundezas, que nos revelam cada vez mais a impenetrabilidade de sua natureza rica em profundezas eternas.”
Vale lembrar um poema da própria Emily Dickinson:
I’m nobody! Who are you?
Are you nobody too?
Then there’s a pair of us – don’t tell!
They’d banish us, you know.
How dreary to be somebody!
How public like a frog
To tell your name the livelong day
To an admiring bog!
Não sou ninguém. E você?
Ninguém também?
Então somos dois – não espalhe!
Eles nos baniriam, você sabe.
Que tédio é ser alguém!
Tão público como um sapo
A dizer o nome o dia inteiro
A um reverente charco!
E vale se reportar ao caleidoscópio de Dylan, a miríade de facetas em movimento e constante fuga.
I am on the dark side of the road
O categórico “Je ne m’occupe plus de cela” de Rimbaud propagou ecos sobre o século XX e início do século XXI. Uma negativa, em meio à sociedade massificada, da voz peculiar dos poetas. Relegada aos subterrâneos, é voz que tende ao silêncio.
Houve época em que soou afinada com as cordas da lira e do alaúde. Mais tarde, por um longo período, privilegiou a música silenciosa da escrita, guardando uma distância erudita dos versos das canções populares, sem deixar de reconhecer aqui e ali um parentesco com a emoção apoiada na melodia musical. Hoje, em estádios imensos onde impera a massa, esta voz sobretudo individual parece definitivamente condenada ao exílio, tendo de inventar outros caminhos para soar.
Como tantos outros, Dylan atrai multidões aos seus concertos, várias de suas canções tornaram-se até hinos de sua geração. Mas ele se recusa o encanto fácil de escutar a massa repetir o que foi em primeiro lugar sua voz. No palco apresenta suas canções certamente, mas ou lhes altera o andamento, ou o ritmo, ou até mesmo a melodia, tornando-as por vezes quase irreconhecíveis. Como se dissesse, se você quer me escutar, tem de ser pelo avesso.
The answer, my friend, is blowing in the wind….
Quem escuta Dylan aprende aos poucos a garimpar minério. E passa a conviver com versos soltos, desgarrados, que sem mais nem menos aparecem entre os afazeres dos dias e das noites. Um convívio fragmentado, estranho, apontando mistérios. O que ele elabora com zelo é uma tecelagem do vento – suas canções urdem palavras, emoções, enigmas preparando à maneira de Penélope uma tapeçaria que se desfaz e refaz a cada sopro. Weaving the wind with his magic blowing.
May you stay forever young
Belíssima a canção Forever Young do álbum Planet Waves gravado com The Band em novembro de 1973 e lançado em janeiro de 1974. Juventude é o que Dylan deseja aos filhos, a todos nós, a si mesmo – como sempre, sua canção se abre em múltiplas direções.
Em dezembro de 1963, Dylan recebeu o Prêmio Tom Paine concedido pelo Comitê de Emergência pelas Liberdades Civis em Nova York. No discurso que proferiu na ocasião, em meio ao turbilhão de tragédias, conflitos e reações da época, Dylan fez questão de frisar a importância de ser jovem e disse: “It’s took me a long time to get young and now I consider myself young. And I am proud of it. I am proud that I am young”. [“Levei muito tempo para me tornar jovem e agora me considero jovem. E tenho orgulho disso. Tenho orgulho de ser jovem.”}
Incluída no álbum Another Side of Bob Dylan de 1964, a canção My Back Pages traz o seguinte refrão: “Oh but I was so much older then, I am younger that that now”. É alguém considerando o passado, não para lamentar a juventude perdida, mas para celebrar a juventude que adquiriu a duras penas. Na mente de Dylan, o tempo se inverte – one does not grow old – ao contrário – one grows young. Aliás, é o que também pensava Emily Dickinson:
aaa“We turn not older with the years, but newer every day.”
Na canção Forever Young, um verso sobressai pela sintonia entre o sentido e o som/ritmo das palavras:
aaa“May you have a strong foundation when the winds of changing shift”
Uma “fundação forte” – o som se faz lento e sólido – que saiba resistir às reviravoltas dos “ventos da mudança” – ao ritmo frenético do tempo. Talvez – e estamos na esfera das especulações – o forever young se realize menos no rodar incessante dos minutos e séculos, e mais no lento desabrochar de um núcleo sólido adaptando-se ao que há de irrequieto no fluir do tempo.
Afinal, nas suas palavras:
“I want now to see and know for myself”
Um desejo que leva necessariamente a um caminho acidentado, dado o caráter ínfimo, precário e imenso do ‘myself’.
Não é à toa que se forma em nossa visão a imagem de uns ombros nervosos em início de movimento, o corpo seguindo o vento a descoberto, braços e pernas já na corrida, mas nos olhos um segundo de calmaria, um repuxo de eternidade.
Take what you have gathered from coincidence
A voz de Dylan é um pouco anasalada e sua dicção é única, isto é, não é fácil compreender o que canta, porque as palavras soam estranhas, principalmente para quem não fala inglês como língua materna. Em tempos remotos, eu escutava com frequência uma de suas canções de amor chamada “It’s All Over Now, Baby Blue”. Uma canção muito bela sobre um amor que se desfaz. No meio dos versos pungentes mesmo quando irônicos, eu escutava o amante dizer, entre palavras duras sobre ter de ir embora e tomar outro caminho:
“Take what you have gathered from cau-in-so-dance”
Era exatamente assim que as palavras soavam nos meus ouvidos, e eu não conseguia compreender que dança era essa. Eram tempos sem os recursos da internet, e eu não tinha agilidade suficiente para saber onde esclarecer minha dúvida. Experimentei os nomes de várias danças que conhecia, e o termo mais próximo que encontrei foi calipso, mas sabia que não era isso porque não conseguia escutar nenhum “L” na voz de Dylan. Só bem mais tarde encontrei por acaso a letra da canção e li o seguinte verso:
“Take what you have gathered from coincidence”
E não pude deixar de sorrir. Tem razão, Mr. Dylan. A coincidência é uma dança.
The times they’re a-changing
look out! there wont be songs like these anymore. factually there aren’t any now.
No álbum lançado em 1993, World Gone Wrong, Dylan escreve notas no encarte sobre cada uma das canções apresentadas. A canção título é de autoria de The Mississipi Sheiks, um grupo musical dos anos 30 que tocava principalmente country blues. Um dos versos da canção diz:
“strange things are happening like never before”.
E mais adiante o refrão martela o aviso:
“I can’t be good no more, once like I did before.
I can’t be good, baby,
Honey, because the world’s gone wrong.”
Em 1964, Dylan lançou The Times They’re A-Changing, em que cantava as mudanças que se faziam presentes naqueles tempos. Neste álbum de 1993, as mudanças se tornaram nubladas, até sombrias.
Durante o romantismo, atribuiu-se aos poetas o dom de iluminar o caminho. Com antenas mais sensíveis, captavam o que estava acontecendo ou por acontecer.
Não há dúvida de que Bob Dylan é alguém com antenas que captam sinais de longe. Mas neste álbum de 1993, ele surpreendeu.
Na nota que escreve sobre Lone Pilgrim, de Doc Watson, depois de citar ‘my soul flew to mansions high’ numa reflexão sobre realidade e verdade, ele diz:
‘technology to wipe out truth is now available. not everybody can afford it but it’s available. when the cost comes down look out! there wont be songs like these anymore. factually there aren’t any now.’
‘tecnologia para aniquilar a verdade já existe. nem todos têm recursos para usá-la mas ela já existe. quando o custo baixar cuidado! não vai haver mais canções como estas. na realidade elas já não existem mais.’
Hoje, após quase três décadas, sentimos o que Dylan já previa então. As novas tecnologias de comunicação aceleraram e embaralharam o potencial de contato com a realidade e com as outras pessoas. Paradoxalmente, elas tornaram a comunicação mais esgarçada, e a mente humana confusa diante do contato menor com a realidade. Como não podia deixar de ser, o que mais sofreu com essas mudanças foi a linguagem humana, o sentido das palavras, as frases verbais ou musicais. É perceptível um encolhimento nos livros que estão sendo escritos, nos filmes que estão sendo lançados, nas artes em geral. Igualmente manifesto nas canções. Uma mudança que nos trouxe a modernidade, a que os homens, as mulheres, as crianças, os artistas terão de dar uma resposta. O que impressiona é Dylan ter alertado – look out! – tão cedo. Antenas muito sensíveis.
E como Robinson Crusoé recolhe os destroços que lhe chegam na ilha – conforme reflexão de G. K. Chesterton sobre o destino humano – cabe ir reunindo e colando nas canções os fragmentos da realidade ainda mais estilhaçada pelos tempos modernos.
Modernidade que Dylan chega a denominar ‘A Nova Idade das Trevas’ na nota sobre outra das canções do álbum, Blood in my eyes, de The Mississipi Sheiks.
‘rebellion against routine seems to be their strong theme. all their songs are raw to the bone & are faultlessly made for these modern times (the New Dark Ages) nothing effete about the Mississippi Sheiks’.
‘rebeldia contra a rotina parece ser seu tema forte. todas as suas canções vão até a medula dos ossos & são impecavelmente feitas para estes tempos modernos (a Nova Idade das Trevas) nada de afetado sobre os Mississipi Sheiks.’
‘look out! there wont be songs like these anymore. factually there aren’t any now’