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Ficção

Cartas de Robert Louis Stevenson a Henry James

Robert Louis Stevenson and Henry James

 

No final dos anos 1980, Cleber Teixeira me pediu a tradução de algumas cartas de Robert Louis Stevenson a Henry James. Aceitei a incumbência, e minhas tentativas de trazer para o português as frases de Stevenson foram múltiplas e trabalhosas. Mas ainda hoje agradeço a meu amigo a experiência, apesar de a Editora Noa Noa não as ter publicado.  Foi muito prazeroso acompanhar um lado do diálogo entre dois grandes escritores da língua inglesa. Robert Louis Stevenson (1850-1894), o escocês que escreveu, entre outras obras famosas, The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde e Treasure Island.  Henry James (1840-1914), o americano naturalizado britânico apenas no final de sua vida, que deixou narrativas como The Turn of the Screw, The Portrait of a Lady, Roderick Hudson.

Stevenson tinha problemas de saúdetornou-se tuberculoso em adulto – e vivia procurando lugares que se mostrassem mais propícios às suas condições físicas. Esse estilo nômade casava perfeitamente com seu espírito aventureiro, e foi na ilha Samoa dos Mares do Sul que passou os derradeiros anos de sua vida. Como curiosidade, ali recebeu a alcunha de Tusitala, que significa “escritor de histórias”.

As cartas procedem de vários lugares e épocas. Uma descreve a viagem num navio que levou a família Stevenson aos Estados Unidos em 1887 (a mulher de Stevenson, Fanny Osbourne, era americana, conterrânea de Henry James), outra é escrita na região das montanhas Adirondack no leste norte-americano. Há uma carta proveniente da Europa, mais precisamente de Bournemouth na Inglaterra, e muitas vindas das ilhas dos Mares do Sul. Os temas vão desde descrições vívidas das situações experimentadas a considerações sobre a arte da escrita. O que me fascinou sobremaneira foram as frases de Stevenson, o modo direto, irônico e atrevido com que traça suas pinceladas. Apresento aqui as cartas traduzidas, esperando que a tradução tenha conseguido captar minimamente a magia do estilo do escocês.

 

Henry James and Robert L Stevenson

 

PARA HENRY JAMES

(SKERYVORE, BOURNEMOUTH, fevereiro de 1887.)

MEU CARO JAMES, – Minha saúde me pregou uma peça outra vez, da forma mais absurda, e a criatura que ora se dirige a você não passa de um bouilli [carne cozida] magro e pálido, tirado da panela de febre, com o diabo a fazer das suas em todos os cantos de sua jurisdição. Suponho (a julgar pela sua carta) que não preciso lhe mandar estas folhas, que surgiram de repente durante meu colapso. Estou começando três volumes: um de contos (*1), o segundo de ensaios (*2) e outro de – hum – poesia (*3). É uma ordem excelente, não acha? Depois disso terei gavetas vazias. O novo trabalho permanece parado; estava me dando bem com Jenkin, quando esta maldita doença me desmontou, fazendo-me voltar ao comércio de coleta de imundícies, próprio das reedições. Vou reeditar Virg. Puer como o Vol. I de Essays, e o novo vol. como o Vol. II do mesmo; mas para serem vendidos separadamente. Tudo não passa de uns resmungos secos; entretanto, sinto-me totalmente incapaz – “Sou para a ação totalmente incapaz Seja por atos, seja por palavras”. Meu pai se encontra num estado inconstante; muitos sofrimentos rondam a casa de Stevenson; minha mãe está disparando a esta hora para o norte, a fim de tratar de um assunto de caráter claramente desagradável; meu pai (sob a tutela de minha mulher) segue amanhã para Salisbury; eu fico aqui na minha cama assobiando; em nenhuma parte do céu se vislumbra algo encorajador, a não ser as visitas que o bom Colvin me faz no hotel. Esta triste visão da vida fica ainda mais escurecida pelo fato de minha cabeça doer, o que sempre considero uma liberdade da parte das autoridades constituídas. Esta é também a minha primeira carta desde minha recuperação. Deus dê velocidade à sua pena elogiosa!

Minha mulher se associa a todas as mensagens afetivas. – Seu,

R.L.S.

(*1) The Merry Men
(*2) Memories and Portraits
(*3) Underwoods

Robert Louis Stevenson –
Photo by Sir Percy-Shelley

R.L.Stevenson

PARA HENRY JAMES

[NEWPORT, U.S.A., setembro de 1887.]

MEU CARO JAMES, – Aqui estamos em Newport na casa dos bons Fairchild: e um triste fardo colocamos sobre seus ombros. Estive de cama praticamente desde que cheguei. Peguei um resfriado em Banks, depois de ter passado os melhores dias imagináveis, e me divertido muito mais do que teria esperado, a bordo de nosso estranho zoológico flutuante: garanhões, macacos e parelhas constituíam nossa carga; e o imenso continente dessas incongruências balançava durante todo o tempo como um monte de feno; os garanhões ficavam hipnotizados com o movimento, olhando através das portinholas para nossa mesa de jantar, e piscavam quando a louça de barro se quebrava; os macaquinhos se fitavam nas jaulas, e eram jogados ao mar como pequenos bebês azulados; o macaco grande, Jacko, andava por todo o navio e descansava de boa vontade nos meus braços, para a ruína das minhas roupas; o homem dos garanhões fez uma cabana com lona preta e sentou-se ali dentro aos pés de uma divindade de cor ocre avermelhada, como uma figura numa caixa de chocolates; e os outros passageiros, quando não estavam enjoados, ficavam olhando e riam. Tome todo este quadro e faça-o rolar até o sino produzir sons inesperados e os móveis se soltarem no nosso camarote, e você terá a viagem de Ludgate Hill. Chegou ao porto de Nova York sem cerveja branca, cerveja preta, água de soda, curaçau, carne fresca, nem mesmo água fresca; entretanto, sobrevivemos, e o navio nos deixou saudade.

Minha mulher está bastante abatida, e não estou em grande forma.

A América é, como observei, um lugar onde se come bem, e um excelente lugar para se encontrar pessoas bondosas; mas, Deus, que tolice é a popularidade! Invejo a calma obscuridade de Skerryvore. Se fosse paga na mesma moeda, esta Mediocridade, e ficasse com vergonha de si mesma. – Muito sinceramente seu

R.L.S.

Henry James

 

PARA HENRY JAMES

(SARANAC LAKE, outubro de 1887)

Não sei o dia, mas o mês é o melancólico outubro na floresta assombrada de Weir.

MEU CARO HENRY JAMES, – Esta é para dizer: primeiro, a viagem foi um imenso sucesso. (Exceto minha mulher) todos a aproveitamos integralmente: dezesseis dias no mar com uma carga de feno, parelhas, garanhões e macacos, num navio sem estilo a bordo, cheio de marinheiros com quem conversar e os infinitos prazeres do mar – o romantismo do mar, a diversão do jantar apressado e da louça esmigalhada, o prazer – um prazer infinito – do balanço das ondas; bem, acabou-se.

Segundo, minha estada em Newport e Nova York foi excelente, um tanto agitada; estive bastante com os Fairchild, St. Gaudens o escultor, Gilder do Century e gostei imensamente de todos – apenas vi o caro Alexander (*1) – encontrei-me muitas vezes com meu velho e admirável amigo Will Low, que gostaria que você conhecesse e apreciasse – St. Gaudens fez um medalhão meu, e por fim escapei para

Terceiro, Saranac Lake, onde estamos agora, vila da qual pretendemos gostar e onde temos a intenção de passar o inverno. Nossa casa – enfaticamente “dos Baker” – fica sobre uma colina e tem como vista uma corrente de  água que faz uma curva no vale – abençoada seja a visão de  água corrente! -, também deixando ver algumas colinas e uns prosaicos telhados pagãos da própria Saranac; o lago não é visível, nem lamento tal circunstância; gosto da  água ( água fresca, quero dizer) correndo rapidamente entre as pedras ou então liberalmente dignificada com uísque. No momento em que escrevo, o sol (que há muito tempo tem sido um estranho) brilha no meu ombro; no quarto ao lado, a campainha da máquina de escrever de Lloyd cria uma musica agradável, enquanto ele tamborilando copia (numa velocidade que espanta este romancista experiente) os primeiros capítulos de uma novela humorística (*2); de ainda mais distante – as paredes da casa dos Baker não são antigas, nem maciças – me chegam aos ouvidos rumores de Valentine ao redor do fogão; de minha mãe e Fanny nada escuto, pela boa razão de que partiram animadas, uma para Niágara, a outra para Indianópolis. As pessoas reclamam que nunca dou notícias nas minhas cartas. Acabei com essa repreensão.

Mas agora, Quarto, vi o artigo (*3); talvez seja por parcialidade natural, mas acho que é o melhor que você já  escreveu. Oh – lembro-me do Gautier, que foi um desempenho excelente; e do Balzac, que era bom; e do Daudet, com o qual lambi os beiços; mas o do R.L.S. é melhor ainda. Tão cheio de humor e atinge minhas pequenas fraquezas com um toque muito elegante (e amistoso); Alan é motivo para muitas palavras felizes, e a briga é generosamente elogiada. Li o artigo duas vezes, embora tenha ficado comigo apenas algumas horas; e Low, que o conseguiu para mim no Century, ficou acordado até tarde para terminá-lo antes de o devolver; meu senhor, estamos todos maravilhados. Cheguei ao fim da folha, e nada, nem amizade, nem mesmo gratidão pelo artigo, vai me induzir  a começar uma segunda folha; portanto, por aqui, com as lembranças mais cordiais e os votos mais calorosos, continuo o seu, afetuosamente,

R.L.S.

(*1) – J. W. Alexander, um artista americano que tinha visitado Stevenson em Bournemouth e desenhado seu retrato.

(*2) – Lloyd Osbourne, enteado de Stevenson, datilograva o primeiro rascunho de The Wrong Box, originalmente chamado The Finsbury Tontine ou A Game of Bluff.

(*3) – Ensaio de Henry James sobre R. L. Stevenson, publicado primeiro em Century Magazine e depois em Partial Portraits.

 

 

PARA HENRY JAMES

SARANAC LAKE (Inverno de 1887-8)

MEU CARO HENRY JAMES, – Talvez lhe dê prazer saber de que forma a nossa família passou algumas horas. No silêncio da neve, a lâmpada da tarde iluminava um grupo ansioso ao redor da lareira: minha mãe lendo; Fanny, Lloyd e eu, ouvintes atentos. A obra era realmente uma das melhores que já ouvi; seu autor deve ser elogiado e homenageado; e qual, em sua opinião, seria o seu nome? Você já o leu? E (estou determinado a chegar ao fim da página antes de abrir o jogo, nem que tenha de lutar com esta linha durante todo o verão; se você não tiver que virar a folha, logo acabará o suspense, pois o olhar abrangente é rápido para descobrir nomes próprios; e sem suspense há pouco prazer neste mundo, no meu entender, pelo menos) – em suma, o nome da obra é Roderick Hudson, com sua licença. Meu caro James, é muito viva, correta e também muito nobre. Hudson, a Sra. Hudson, Rowland – Oh, todos de primeira classe: Rowland, um camarada excelente; Hudson, tão bom quanto lhe é possível ser (você conheceu Hudson? Suspeito que sim); a Sra. H., uma mãe de índole verdadeiramente maternal, algo raro de se conseguir em ficção.

Estamos todos em boa forma e muito animados; mas esta não é uma carta minha para você, é de um leitor de R.H. para o autor dessa obra, e nada diz, nada tem a dizer, a não ser obrigado.

Vamos reler Casamassima como um complemento apropriado. Meu senhor, acho que esses dois livros são os melhores que escreveu, e não me importo com o que os outros pensem. Na próxima vez em que Roderick for impresso, posso lhe pedir que revise as páginas dos últimos capítulos e elimine “imenso” e “extraordinário”? Você simplesmente os deixou cair ali como deixa cair o seu lenço; só o que tem a fazer é juntá-los e colocá-los no bolso, para que sua sala – mas o que digo? – sua catedral! – fique varrida e enfeitada – Sou, meu caro senhor, seu leitor maravilhado,

ROBERT LOUIS STEVENSON

P.S. – Talvez seja uma pontada de franqueza sem motivo, talvez eu espere com isso valorizar Roderick, talvez seja uma explosão do diabólico, mas tenho de confessar que não suporto Portrait of a Lady. Li todo o livro, chorei inclusive; mas não tolero o fato de você o ter escrito; e peço-lhe que não escreva mais nenhum desse tipo. Infra, meu senhor; não está à sua altura. Nada posso fazer – talvez seja a sua obra preferida, mas, a meu ver, o livro não está à altura de sua escrita, nem de minha leitura. No começo, pensei que Roderick fosse ser outra obra desse gênero; e não posso descrever o meu prazer, ao vê-lo adquirir carne e osso, e olhar para mim com uma fisionomia comovida e humana, cujos traços vão ficar gravados em minha memória até o último de meus dias.

R.L.S.

Minha mulher implora o seu perdão, acredito que pelo seu silêncio.

 

PARA HENRY JAMES

(SARANAC LAKE, março de 1888)

MEU CARO E ENCANTADOR JAMES, – Para citar o início de sua carta à minha mulher, acho que ninguém escreve carta mais elegante, e tenho certeza de que nem mais bondosa, a não ser que seja Colvin, e nele o tom lembra mais o de um pai severo. Fiquei aborrecido com o que me contou sobre meu reverenciado Meredith; gostaria de poder ir vê-lo; dadas as presentes condições, vou tentar escrever. Li com indescritível prazer o seu Emerson. Começo a aguardar ansiosamente o dia em que esses seus retratos serão coligidos: me inclua. Mas Emerson é um vôo mais alto. Você já tem um Turgueniev? Contou-me muitas coisas interessantes a seu respeito, e tenho a impressão de vê-las escritas, formando um esboço gracioso e bildend (instrutivo). Meu romance é uma tragédia; quatro das seis ou sete partes estão escritas e já foram para Burlingame. Cinco partes constituem boa tragédia humana; as duas últimas, lamento dizer, não são delineadas tão corretamente; quase hesito em escrevê-las; muito pitorescas, mas fantásticas; desonram, talvez degradem, o início. Gostaria de saber o que fazer; entretanto, foi assim que a história me veio à mente. Criei a situação; uma velha predileção minha: o irmão mais velho parte em 45 [rebelião jacobita de 1745], o mais moço fica em casa; o menor, é claro, recebe o título e a propriedade, casando-se com a noiva destinada ao mais velho – um casamento de conveniência, mas ele (o mais moço) sempre a amara, enquanto ela tinha amado o irmão mais velho. Dá para visualizar a situação? Foi então que o diabo e Saranac me sugeriram este dénouement [desenlace], juntei as pontas em alguns dias de constante pensamento febril e comecei a escrever. Agora – me pergunto se não fui longe demais com o fantástico. O irmão mais velho é um ÍNCUBO: supostamente morto em Culloden, ele reaparece e extorque dinheiro da família; ao fim desse episódio, vai morar com os familiares, situação da qual flui a tragédia real, o duelo noturno dos irmãos (que acontece de modo muito natural e, na verdade, inevitavelmente) e a segunda pretensa morte do mais velho. Marido e mulher então realmente se reconciliam, e aí surge o diabo. Pois a terceira pretensa morte e o modo da terceira reaparição é extravagante; extravagante, meu senhor. É até muito extravagante, receio que desonre a matéria honesta do romance até esse ponto; mas, por outro lado, altamente pictórico, culminando com a morte do irmão mais velho pelas mãos do mais moço, num assassinato executado inteiramente a sangue-frio, o qual desejo (e pretendo) que o leitor aprove. Veja como é ousado o meu plano. Na verdade, há apenas seis personagens, e um desses é episódico, mas o romance abarca dezoito anos e será, imagino, a mais longa de minhas obras – Seu como sempre,

R.L.S.

Li Raleigh de Gosse. Primeira classe. – Seu como sempre,

R.L.S.

PARA HENRY JAMES

HONOLULU (março de 1889)

MEU CARO JAMES – Sim – confesso – sou infiel para com a amizade e (o que é de menor monta, mas ainda assim de considerável importância) para com a civilização. Não vou voltar para casa este ano. Eis a verdade nua e crua, e agora você não vai querer acreditar em mim, e bem feito para você (é o que me diz) e que o diabo o carregue. Mas veja bem, e me julgue compassivamente. Minha vida nestes últimos meses tem sido mais divertida e cheia de prazer do que nunca, e tive mais saúde do que em qualquer período dos últimos dez longos anos. Mesmo aqui em Honolulu, definhei com o frio; este mar precioso está repleto de ilhas que talvez ainda visitemos; embora o mar seja um lugar mortal, gosto de ali estar, gosto de borrascas (quando terminam); e nem sei dizer o quanto gosto de me aproximar de uma nova ilha. Em suma, vou levar por mais um ano esse tipo de vida; tentarei chegar até as flechas envenenadas e pretendo (se possível) retornar ao fim da aventura, para conversar com Henry James como antes; enquanto isso dou instruções a H.J. no sentido de que me escreva mais uma vez. Que ele mande a carta para Honolulu, pois meus planos são vagos; se a carta for enviada a esse endereço, ela terá como me seguir e encontrar, se eu puder ser encontrado; se isso não for possível, o homem James terá cumprido seu dever, e estaremos no fundo do mar, onde não se pode esperar que algum funcionário do correio nos descubra, ou languescendo numa ilha de coral, escravos filosóficos de algum potentado bárbaro; quem sabe, de um missionário americano. Minha mulher acabou de enviar à Sra. Sitwell uma tradução (tant bien que mal) [assim, assim] de uma carta que recebi de meu principal amigo nesta parte do mundo: vá procurá-la e escutar o que diz; fará bem a você; é um método de correspondência até melhor que o de Henry James (1). Estou brincando, mas agora, falando a sério, é estranho, para um escriba rude, doente e de meia-idade como R.L.S., receber uma carta formulada dessa maneira por um homem de cinquenta anos, líder político, orador de primeira  água e a pessoa mais espirituosa de sua vila: digamos audaciosamente, “o muito popular M. P. de Tautira”. Meu século XIX irrompe aqui e se deixa estar ao lado de alguma coisa bela e antiga. Acho que receber uma carta dessas poderia tornar alguém mais humilde, devo dizer até – ? Quanto a mim, teria preferido recebê-la a ter escrito Redgauntlet ou Sixth AEneid. Em suma, se meus livros me habilitaram ou me ajudaram a fazer esta viagem, a conhecer Rui e a receber uma carta desse tipo, (segundo a velha expressão dos prefácios) não foram escritos em vão. Por essas palavras, daria para pensar que a carta me tornou menos humilde do que envaidecido; mas, asseguro-lhe, sofri na verdade os dois efeitos. Um pouco do que essa carta diz é algo que consegui com meu esforço; não tudo, mas um pouco; e esse pouco me deixa orgulhoso; todo o resto, envergonhado; em contrapartida, como é certamente mais belo o homem antigo que o de nossos dias!

Bem, bem, Henry James é bastante razoável, embora seja do século XIX, sem dúvida alguma. Para procurar agradá-lo, gostaria de poder ser mais explícito; mas o fato é que, por necessidade, tenho de ser extremamente vago; ainda por algum tempo, não posso lhe dizer o que vou fazer, nem aonde devo ir. Assim que tiver certeza, você ficará sabendo. Todos estão razoavelmente bem – a mulher, sua conterrânea, menos que os demais; a falta de problemas não é absoluta, mas em geral prosperamos, e somos todos afetuosamente seus,

ROBERT LOUIS STEVENSON

(1) O seguinte é a carta em questão:

Comunico a você meu grande afeto. Na hora em que você nos deixou, fiquei cheio de lágrimas, o mesmo acontecendo à minha mulher, Rui Telime, e a toda a minha família. Quando você embarcou, senti uma grande tristeza. Foi por isso que subi pela estrada; você olhava daquele navio, e eu olhava para você a bordo do navio com grande dor, enquanto vocês não levantavam a âncora e içavam as velas. Quando o navio partiu, corri ao longo da praia para vê-lo ainda uma vez; e quando você já estava em mar aberto, gritei-lhe “Adeus, Louis”; e ao voltar para casa, tive a impressão de escutar a sua voz gritando “Rui, adeus”. Mais tarde, fiquei observando o navio, enquanto me foi possível, até a noite cair; quando escureceu, disse para mim mesmo: “Se tivesse asas, voaria até o navio para ir ao encontro de meu amigo e dormir no meio de sua gente, a fim de poder voltar à praia e dizer a Rui Telime: ‘Dormi no navio de Teriitera'”. Depois disso, passamos a noite em meio à impaciência da dor. Pelas oito horas, tive a impressão de escutar sua voz: “Teriitera – Rui – está na hora de putter e tiro (queijo e melaço)”. Não dormi nesta noite, pensando continuamente em você, meu amigo muito querido, até de manhã; estando ainda acordado a essa hora, fui ver Tapina Tutu em sua cama, mas, ai de mim, ela ali não estava. Depois olhei nos seus quartos; não me agradaram como antes . Não escutei a sua voz a me dizer: “Salve, Rui”; pensei então que você tinha partido e me abandonara. Levantando-me, fui à praia para ver o navio, mas não consegui avistá-lo. Chorei então até de noite, dizendo incessantemente para mim mesmo: “Teriitera retorna ao seu país e deixa o seu querido Rui desolado, de modo que sofro e choro por ele”. Não o esquecerei na minha memória. Eis o pensamento: desejo encontrar você de novo, é o meu querido Teriitera que cria a única riqueza que desejo neste mundo. São os seus olhos que desejo ver mais uma vez. O seu corpo e o meu corpo devem se alimentar juntos a uma única mesa: aí está o que me alegraria o coração. Mas agora estamos separados. Que Deus esteja com todos vocês. Que a Sua palavra e a Sua graça sigam com vocês, para que possam viver em paz e nós também, segundo as palavras de Paul.

“ORI a ORI, isto é, RUI”.

 

PARA HENRY JAMES

VALIMIA, APIA, SAMOA, 29 de dezembro de 1890.

MEU CARO JAMES, – É terrível como todo mundo escreve pouco e como grande parte desse pouco some na imensa goela do correio. Muitas cartas, tanto enviadas por mim quanto a mim endereçadas, sei agora que se perderam em trânsito: minha suspeita recai sobre o Correio de Sydney, uma grande construção deselegante com uma torre, pois acho que não se encontra a cento e cinqüenta quilômetros do local do sumiço; porém, não tenho provas. Quanto à Tragic Muse que você me anunciou estar para sair; já a tinha encomendado de um livreiro em Sydney: há uns dois meses, ele me avisou que o exemplar estava no correio; e ainda continuo tragicamente sem musa.

Notícias, notícias, notícias. O que temos de notícias suas? Qual o seu interesse pelas nossas? Estamos no meio da estação das chuvas e vivemos, entre alarmes de furacões, numa pequena e insegura caixa de madeira de dois andares, duzentos metros acima do nível do mar e a uns cinco quilômetros da praia. Às nossas costas, até o outro declive da ilha, floresta erma, picos e torrentes ruidosas; à nossa frente, declives verdes que vão dar no mar, uns oito quilômetros incluídos na vista que desfrutamos. Vemos os navios saírem e entrarem em direção à perigosa enseada da Apia; e se permanecem ao largo, até podemos ver os seus mastaréus, enquanto se acham ancorados. Dos sons humanos, além daqueles de nossos próprios empregados, chegam até nós, em intervalos muito longos, salvas dos navios de guerra no porto, o sino da catedral e o mugido do búzio chamando os meninos que trabalham nas plantações germânicas. Ontem, um domingo – o quantième [o dia do mês] está  provavelmente errado; agora você pode corrigi-lo – tivemos uma visita – Baker de Tonga. Já ouviu falar dele? É um grande homem por aqui: acusado de roubo, estupro, assassinato por ter pronunciado sentença injusta, envenenamento, aborto, apropriação indébita de dinheiro público – bastante estranhamente, não é acusado de falsificação, nem de incêndio premeditado; você se divertiria se soubesse como as acusações voam abundantes neste mundo dos Mares do Sul. Não tenho dúvida de que meu próprio caráter já se tornou algo ilustre; ou, se ainda não o for, logo chegará a sua hora.

Mas, ultimamente, nem todos os nossos recursos têm sido do Pacífico. Tivemos companhia culta: La Farge, o pintor (*1), e seu amigo Henry Adams (*2). Um grande privilégio – oxalá pudesse durar. Eu gostaria de ir visitá-los com mais frequência, mas o lugar é de difícil acesso a cavalo. Tive de fazer meu cavalo nadar na última vez em que fui jantar com eles; e como ainda não devolvi as roupas que tive de tomar emprestadas, não ouso voltar no mesmo apuro: parece inevitável – assim que surgem as ondas, logo me enfio na camisa ou na calça do cônsul americano! Acredito que eles viriam me ver mais assiduamente, se não fosse a dúvida desagradável que oprime nosso departamento de provisões; muitas vezes não temos quase nada para comer (*3); um convidado simplesmente quebraria o banco; minha mulher e eu comemos um abacate no almoço; não foram poucas as vezes em que almocei pão duro com cebolas. O que fazer com um convidado nestes tempos de penúria? – Comê-lo? Ou servir um fricassê de menino empregado?

Trabalho? O trabalho está por ora parado, mas acho que escrevi uns trinta capítulos do livro sobre os Mares do Sul; receio que todos vão precisar de remanejamento. Meu Deus, que esforço violento é um livro longo! Foi excessivo o tempo que levei para planejar este volume, antes que pudesse sonhar em colocar as palavras no papel; e depois, imagine escrever um livro de viagem no próprio local, onde estou constantemente ampliando minhas informações, revisando minhas opiniões e vendo as partes mais bem acabadas de minha obra se desfazerem em pedaços. Em breve não me sobrará  mais opinião alguma. E sem opinião, como unir artisticamente enormes montes de fatos? Darwin disse que ninguém podia observar sem teoria; acho que tinha razão; é um belo ponto de metafísica; mas juro que ninguém pode escrever sem teoria – pelo menos, do modo como desejaria escrever -, porém minhas teorias se dissolvem, se dissolvem, se dissolvem, e, enquanto se derretem, as águas descongeladas apagam minha escrita, deixando cursos pouco ideais – devastações em vez de fazendas cultivadas.

Kipling‚ de longe o jovem mais promissor que surgiu desde que – hã! – eu apareci. Ele me surpreende pela sua precocidade e dotes variados. Mas ele me alarma com sua prolixidade e sua pressa. Deveria proteger seu fogo com ambas as mãos “e concentrar toda a sua força e doçura numa esfera” (“Concentrar toda a sua força e toda a sua doçura numa esfera”? Não consigo me lembrar das palavras de Marvell.) É o que os críticos me têm dito, mas nunca fui capaz – e certamente nunca fui culpado – de uma tal orgia de produção. Neste andar, suas obras logo cobrirão o mundo habitável; e não há  dúvida de que foi equipado para melhores conflitos do que esses esboços sucintos e essas páginas fugidias de poesia. Eu observo, admiro, alegro-me pessoalmente; mas, na ambição que todos temos para com a nossa língua e literatura, sinto-me ferido. Se eu tivesse a fertilidade e a coragem desse homem, acho que poderia erguer uma pirâmide.

Bem, começamos a ser os velhos agora, e já era tempo de que algo aparecesse para tomar os nossos lugares. Kipling tem o dom; as fadas madrinhas estavam todas embriagadas no seu batizado: o que ele fará com o seu dom?

Até logo, meu caro James; encontre uma hora para nos escrever e postar a sua carta. – Seu afetuosamente,

R.L.S.

(*1) – La Farge, pintor e decorador de vitrais. Desenhos seus, feitos em Samoa, foram expostos em Paris em 1895.

(*2) – Henry Adams, historiador.

(*3) – A falta de comestíveis durou pouco tempo, pois a Sra. Stevenson logo conseguiu se orientar e fazer suas compras no mercado.

 

PARA HENRY JAMES

 

(VALIMIA, outubro de 1891.)

MEU CARO HENRY JAMES, – Deste ser humano perturbado e acossado, não espere mais que uma linha, e esta linha será um grito de alegria por Adela. Oh, ela é deliciosa, deliciosa; eu poderia viver e morrer com Adela – morrer, talvez a melhor das duas possibilidades; você nunca fez nada mais perfeito, nem o fará.

David Balfour, segunda parte de Kidnapped, finalmente se encontra no estaleiro; e acho que não está ruim. Quanto a The Wrecker, é uma máquina, sabe – não espere outra coisa – trata-se de uma máquina, e de uma máquina policial; mas acredito que o fim seja uma das mais genuínas matanças em literatura; e, modéstia à parte, sugerimos que a nossa máquina é a única máquina policial sem vilão. Nossos criminosos são um bando muito agradável e deixam o banco dos réus quase sem nenhuma mancha em seu caráter.

A que esferas diferentes do conhecimento pertencem a tentativa de delinear Adela e a de escrever os quatro últimos capítulos de The Wrecker! Céus, é como dois séculos; o nosso é uma história rude e transpontina [situada além da ponte, no caso a parte de Londres ao sul do Tâmisa. A palavra se refere a um tipo de melodrama outrora popular nesse ambiente londrino.], buscando apenas um certo fervor de convicção e um senso de energia e violência nos homens; o seu é arrumado e brilhante, com uma superfície muito requintada! Parece terrível enviar um tal livro a um tal autor, mas o seu nome está na lista. E modestamente pedimos que leia com atenção os capítulos sobre Norah Creina com o estudo do capitão Nares, e os quatro últimos acima mencionados com a sua brutalidade de conteúdo e a curiosa (e talvez errônea) manobra técnica de fazer a história convergir para um único ponto à medida que acompanhamos o seu curso, a narrativa tornando-se mais sucinta e os detalhes mais escassos a cada página. – Juras de amizade de

R.L.S.

Ninguém no presente suplantou Adela (*1): adoro Adela e seu Criador. Sic subscrib.

ROBERT LOUIS STEVENSON

 

Para acompanhar um Poema sublime.

Adela, Adela, Adela Chart,
What have you done to my elderly heart?
Of all the ladies of paper and ink
I count you the paragon, call you the pink.
The word of your brother depicts you in part:
“You raving maniac!” Adela Chart;
But in all the asylums that cumber the ground,
So delightful a maniac was ne’er found.

I pore on you, dote on you, clasp you to the heart,
I laud, love, and laugh at you, Adela Chart,
And thank my dear maker the while I admire
That I can be neither your husband nor sire.
Your husband’s, your sire’s were a difficult part;
You’re a byway to suicide, Adela Chart;
But to read of, depicted by exquisite James,
O, sure you’re the flower and quintessence of dames.

R.L.S.
aaaa
Adela, Adela, Adela Chart,
O que fizeste com meu velho coração?
De todas as damas de papel e tinta
Te considero o modelo, te chamo perfeição.
A palavra de teu irmão te retrata em parte:
“Sua louca delirante!” Adela Chart;
Mas nos hospícios que tolhem a terra
Nunca se viu louca mais etérea.

Sou louco por ti, no coração te guardo,
Te louvo, amo, rio de ti, Adela Chart,
E agradeço a meu caro criador
Não poder ser teu marido, nem senhor.
Ser teu marido, teu senhor, seria um desastre,
És um atalho para o suicídio, Adela Chart;
Mas ler-te, desenhada pelo requintado James,
Oh, és a flor e a quintessência das damas.

R.L.S.

Eructavit cor meum. [Meu coração exultou.]
Meu coração redigia uma bela página sobre Adela Chart.

Though oft I’ve been touched by the volatile dart,
To none have I grovelled but Adela Chart.
There are passable ladies, no question in art –
But where is the marrow of Adela Chart?
I dreamed that to Tyburn I passed in the cart –
I dreamed I was married to Adela Chart:
From the first I awoke with a palpable start,
The second dumbfoundered me, Adela Chart!

Embora muitas vezes tenha me atingido o dardo,
Por ninguém rastejei senão por Adela Chart.
Há damas passáveis, sem dúvida, na arte –
Mas onde está a essência de Adela Chart?
Sonhei que na carreta seguia para Tyburn –
Sonhei que estava casado com Adela Chart:
Do primeiro sonho acordei em sobressalto,
O segundo me deixou mudo e atônito, Adela Chart!

Como vê, outro verso explode de mim; não há fim para a violência da Musa.

(*1) – Adela Chart é a heroína de “O Casamento”, a segunda história de Lesson of the Master de Henry James.  

 

PARA HENRY JAMES

5 de dezembro de 1892.

MEU CARO JAMES, – Como foi que caiu um silêncio tão grande entre nós? A voz ainda pequena da aprovação de meus atos me sussurra que não sou o responsável. Examinei a minha agenda, e descubro que não escrevi a você, nem recebi notícias suas desde 22 de junho, em cujo dia da graça este inestimável trabalho se iniciou. Não deveria ser assim. Como voltar atrás? Lembro-me de lhe comunicar com êxtase o recebimento de The Lesson of the Master, e lembro-me de receber Marbot: foi este o nosso último contato?

Bem! De qualquer modo, como você provavelmente concluiu a partir dos jornais, tenho andado em apuros diabólicos e (o que talvez seja novidade para você) num ritmo diabólico de trabalho. Nos doze meses do ano civil, terminei The Wrecker, escrevi todo o Falesa com exceção do primeiro capítulo (bem, grande parte dele), History of Samoa, fiz alguma coisa aqui e ali para o meu Life of my Grandfather, e comecei E terminei David Balfour. Que tal como produção de um ano? Desde então, posso dizer que nada mais fiz além de esboçar três capítulos de um outro romance, The Justice-Clerk, que deverá  ser cheio de barulho e espalhafato – se não der bom resultado, vai, pelo menos, descornar um auroque (se é assim que se escreve esta palavra). [Referência a uma expressão – “to make a spoon or spoil a horn” – que se traduz literalmente – “Fazer uma colher ou estragar um chifre”. De um chifre, é possível fazer uma “hornspoon”, uma colher. A expressão equivale à nossa: “Ou vai, ou racha”.]

Quanto aos apuros, talvez o divirta saber que fui realmente condenado à deportação por meus amigos em Mulinuu, C. J. Cedercrantz e o Barão Senfft von Pilsach. Mas o terrível destino deixou de acontecer devido a Influências superiores às Citadas. Só ontem à noite é que soube (por assim dizer) da deportação. Isto é, oficialmente, pois já escutara boatos. Toda a história me será relatada algum dia, e a partilharei com amigos espirituosos.

Mas acho provável que esta época de alegria em Samoa termine em breve; a violenta luz branca da história não baterá mais sobre este Seu Sinceramente, nem sobre seus colegas, aqui na praia. É de se perguntar se a razão ficará mais alegre com o fim de um caso vergonhoso, ou se o homem incorrigível mais triste com a interrupção do divertimento. Pois, digam o que quiserem, tem sido um período profundamente interessante. Você não sabe o que são notícias, nem o que é política, nem o que é a vida humana, enquanto não vê tudo isso numa escala bem pequena e com a sua própria liberdade servindo de orientação. Poucas coisas me teriam feito perder essa oportunidade. E amigos ansiosos me imploram que eu fique em casa e estude a natureza humana em salas de estar em Brompton! Farceurs! [farsantes] Além do mais, você sabe que meu talento não é dessa ordem. Nunca poderia ser induzido a sentir o menor interesse por Brompton enquanto Brompton ou por uma sala de estar enquanto sala de estar. Sou um Escritor Épiko com k, mas sem o gênio necessário.

Mande logo outro livro de histórias. Estou agora reduzido a dois de meus contemporâneos, você e Barrie – oh, e Kipling – você, Barrie e Kipling são agora as minhas Três Musas. Quanto a Kipling, como sabe, há ressalvas a serem feitas. E você e Barrie não escrevem bastante. Deveria dizer que também leio Anstey quando ele é sério, e quase sempre ganho um dia feliz com Marion Crawford – ce n’est pas toujours la guerre [nem sempre é guerra], mas há vida no livro, coragem e movimento. Você leu The Witch of Prague? É claro que ninguém poderia lê-lo duas vezes; mesmo na primeira leitura, foi necessário pular algumas partes. Eppur si muove. [No entanto, se move.] Mas Barrie‚ uma beleza, The Little Minister e Window in Thrums. Hein? Substância neste jovem; porém ele deve procurar não ser engraçado demais. Existe gênio nele, mas há sempre um jornalista por perto – aí é que está o risco. Veja, que bela página é o caso da luva em Window! Deixa um homem sem palavras; isso é coragem, com sua licença.

Por que desperdicei o pouco tempo que me resta com uma resenha impressionista? Não tenho a menor ideia. Talvez uma simples ebulição de conversas literárias congestionadas. Começo a achar que seria oportuna uma visita de amigos. Gostaria que você pudesse vir!

Que tenhamos notícias suas, pelo menos, e perdoe esta efusão tola e caduca. – Seu como sempre,

ROBERT LOUIS STEVENSON

 

 

PARA HENRY JAMES

PLANTAÇÃO VAILIMA, ILHAS SAMOA

17 de junho de 1893

MEU CARO HENRY JAMES, – Acredito que deixei uma carta sua sem resposta. Você vai ficar triste por saber que minha mulher esteve muito mal, e alegre por saber que ela está melhor. Não posso dizer que ainda sinta qualquer ansiedade a seu respeito. Vamos lhe mandar uma fotografia tirada em Sydney, em que ela está com a roupa que costuma usar na ilha quando passeia, cuida do jardim e dá ordens com voz estridente a seus ajudantes morenos. Sentia-se muito mal quando posou para a foto, o que talvez explique um pouco o aspecto do retrato. Lembra-me uma amiga de minha avó que costumava dizer, quando falava com mulheres mais jovens: “Bem, quando jovem, eu não era exatamente o que vocês chamariam de bonita, mas era pálida, intensa e interessante”. Não me arriscaria a sugerir que Fanny não seja “bonita”, mas não há dúvida de que neste retrato ela está “pálida, intensa e interessante”.

Como você sabe, tenho andado com dificuldades e lutado contra os poderosos da terra, não inteiramente sem sucesso. Trata-se – talvez você tenha interesse em saber – de um caso enfadonho e enfurecedor. Se você chega a fazer com que os tolos admitam um fato, eles sempre salvam as aparências negando outro. Se consegue induzi-los a dar um passo para a direita, em geral se protegem com um salto para a esquerda. Sempre achei (sem prova alguma, por um simples sentimento ou intuição) que a política era a mais suja, a mais tola e a mais aleatória das atividades humanas. Sempre tive esta opinião, mas agora sei disso! Felizmente você não tem nada a ver com isso, e posso lhe poupar o horror de mais detalhes.

Recebi, de sua parte, um livro de um homem chamado Anatole France. Por que dissimular? Não sei o que fazer com Anatole. Ele escreve de um jeito muito bonito, mas e daí? O Barão Marbot era uma outra história. Assim como o Barão de Vitrolles, que agora estou lendo com atenção e prazer. Mas Marbot e Vitrolles estão mortos, e o que aconteceu com os vivos? É como se a literatura tivesse chegado a um ponto morto. Tenho certeza de que é isso o que se dá comigo; e não tenho dúvidas de que todos dirão o mesmo, quando tiverem o privilégio de ler The Ebb Tide. Meu caro, o horror desta história não dá para ser descrito com palavras. Somente quatro personagens, mas são um bando de porcos! E seu comportamento está tão profundamente abaixo de qualquer possível padrão que, em retrospectiva, me admiro de ter conseguido suportá-los até o fim da fábula. Bem, há sempre um consolo, servirá como uma pedra de toque. Se os admiradores de Zola o apreciam por sua feiura e pessimismo pertinentes, acho que vão admirar este livro; mas se, como suspeito há muito tempo, não admiram, nem compreendem a arte do homem, mas apenas chafurdam na sua rancidez como um cão no lixo, então vão ficar desapontados com The Ebb Tide. Ai de mim! pobre história, nem chega a ser rançosa.

Como antídoto ou febrífugo, estou fazendo grandes progressos na minha History of the Stevensons, que talvez venha a ficar bastante divertida, pelo menos em algumas partes. O excesso de material me oprime. Meu avô é um delicioso elemento de comédia; mas, ao mesmo tempo, tenho de tratá-lo como uma figura séria e (a seu modo) heroica, e às vezes me perco; receio que vou acabar embaçando o efeito. Entretanto, À la grâce de Dieu! [Com a graça de Deus!] Ou vai, ou racha. [Literalmente: Farei uma colher ou estragarei um chifre.] Veja, tenho de escrever “Building of the Bell Rock” cortando e comprimindo o livro de meu antepassado, o que de certo modo espero ter feito, mas não sei. E esse trecho cria uma considerável diferença de estilo e qualidade entre os capítulos II e IV. Porém, não há outro jeito! É uma necessidade deliciosa e exasperadora. Sabe, a substância do livro é uma narrativa excelente: mas a quantidade talvez seja excessiva! Aí é que está o xis do problema. Bem, bem, você perceberá que tudo isso afetou a minha mente; talvez ela ficasse igualmente afetada com menos material. The Ebb Tide e Northern Lights são uma refeição completa para qualquer homem simples.

Escrevi encomendando o seu último livro, The Real Thing, por isso fique tranquilo e não o envie. O que mais anda fazendo ou pensando em fazer? Não tenho notícias, nem quero recebê-las. Tive de abandonar toda bebida forte e o fumo, e estou agora num estado de transição que parece próximo da loucura. Acho que você nunca fumou, por isso não pode saborear os prazeres de parar de fumar. Mas pelo menos já bebeu, e talvez compreenda meu aborrecimento, quando por acaso descubro um copo de clarete ou quando uma dose de brandy com água me causa uma dor de cabeça lancinante na manhã seguinte. Não há erro; é tomar qualquer coisa que a dor de cabeça surge. O fumo me é igualmente nocivo. Se sobreviver a esse abandono de hábitos, vou acabar me tornando um fedelho doentio. A verdade é que sou feito, ou retorcido, de tal modo que não gosto de pensar numa vida sem o vinho tinto sobre a mesa ou sem o fumo com sua pequena e encantadora brasa. Não me diverte ver a vida à distância. Posso considerá-la o Jardim do Éden, se participo de tudo, mas não me agrada a cor dos mourões. Suponha que alguém lhe dissesse, você deve abandonar sua casa, seus livros, seus clubes, para acampar no meio da África e comandar uma expedição, você uivaria, daria pontapés e fugiria. Penso o mesmo de uma vida sem vinho e fumo; e se isso continuar, vou ter que sair à procura de meu prazer, meu senhor, como qualquer ser de carne e osso!

Pensei que Bourget fosse seu amigo. E pensei que os franceses fossem uma raça educada. Ele recebeu minha dedicatória com um silêncio altivo que me surpreendeu a ponto de me deixar apoplético. Será que fui dedicar meu livro (*1) ao estrangeiro detestável, ao horrível francês, ao Maldito Forasteiro? Bem, não o faria de novo; e, a menos que o caso seja suscetível de explicação, talvez você pudesse lhe dizer o que penso a respeito, enquanto saboreiam as nozes e o vinho como passatempo de happy hours. Sinceramente, pensei que minha dedicatória merecesse uma carta.

Se é que alguma coisa tem valor neste mundo! Você conhece a história do homem que encontrou um botão no seu guisado e chamou o garçom? – O que me diz disso? – pergunta ele. – Bem – diz o garçom -, o que você esperava? Encontrar um relógio e uma corrente de ouro? – Apólogo divino, não acha? Esperava (de certo modo) encontrar um relógio e uma corrente de ouro; esperava poder fumar em demasia e beber com prazer durante todos os dias de minha vida; e ainda estou indignado fitando este botão à minha frente! Nem é um botão, é uma insígnia a favor da abstinência do álcool! – Seu como sempre,

ROBERT LOUIS STEVENSON

(*1) Across the Plains.

PARA HENRY JAMES

APIA, julho de 1893.

MEU CARO HENRY JAMES, – Sim, Les Trophées (*1) é, em seu conjunto, um livro. Excelente; mas será o trabalho de uma vida?  Sempre suspeito que você tenha um volume de sonetos escondido na manga; quando vai aparecer? Estou num de meus ataques de impaciência indiscriminada contra a ficção e tudo o que lhe é afim, lendo com êxtase, em vez disso,  Decisions de Fountainball. Você nunca o leu: bem, não tem muita forma, e deve ser inexprimivelmente enfadonho para os outros – até para mim, em muitas páginas. É como caminhar com uma lanterna muito ruim pela galeria subterrânea de uma mina, colhendo pedaços de minério. Isso, e a guerra, será a minha desculpa por não ter lido a sua (sem dúvida) encantadora obra de ficção. O passar do ano me fará voltar a seu trabalho e, quando a ficção começar a me parecer novamente sólida, sei que o amarei, porque é James. Quando estou nesse estado de espírito, sabe que prefiro tentar ler um livro ruim? Não é tão decepcionante, pelo menos. E Fountainball é de primeira qualidade, dois grandes volumes in-fólio, tudo enfadonho e tudo verdadeiro, tudo tão sucinto quanto um obituário; uma média de um fato interessante em cada vinte páginas, e dez delas ininteligíveis devido a problemas técnicos. Isso é literatura, com a sua licença! Alimenta; cai sobre você genuína como a chuva. Chuva: ninguém ainda fez justiça à chuva em literatura – certamente um tema para Scott. Mas, por outro lado, não se pode criar a chuva no estilo de livro razão que estou tentando empregar – ou melhor, entre o de um livro razão e o de uma antiga balada. Como superar, como evitar a entorpecente particularidade da ficção? “Roland aproximou-se da casa; esta tinha portas verdes e venezianas nas janelas; e havia uma raspadeira no degrau superior”. Ao diabo com Roland e a raspadeira! – Seu como sempre,

R.L.S.

(*1) Volume de sonetos de Joseph-Marie Hérédia.

 

PARA HENRY JAMES

APIA, dezembro de 1893.

MEU CARO HENRY JAMES, – O correio me assaltou à mão armada três dias antes do que eu esperava; e que Deus me acuda! É impossível responder a todos como deveria. Seu júbilo a respeito de Catriona me fez bem, e mais ainda a sutileza e a verdade de sua observação sobre a falta de sentido visual neste livro. É exato e, a menos que eu faça o maior esforço – como primeiro passo, já estou convencido de sua necessidade -, receio que isso será ainda mais verdadeiro no futuro. Ouço as pessoas falarem e sinto o modo como agem, isso me parece ser ficção. Meus dois objetivos podem ser descritos como:

1o Guerra ao adjetivo

2o Morte ao nervo ótico

Reconhecidamente, vivemos na era do nervo ótico em literatura. Por quantos séculos a literatura se desenvolveu sem sinal dessa característica? Mas vou refletir sobre a sua carta.

Que refinada é a sua personagem do crítico em Essays in London! Duvido que tenha feito algo mais satisfatório em termos de estilo e insight. – Seu, como sempre,

R.L.S.

 

 

As cartas foram traduzidas de The Letters of Robert Louis Stevenson to His Family and Friends, Volume II, ed. Sidney Colvin. The Project Gutenberg Ebook – transcritas da edição de Londres, Methuen and Co.,1906.


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