Nos anos 80, andei com uma amiga pelo interior de Minas Gerais, e chegamos até a cidade de Diamantina. Reproduzo aqui as notas que então rabisquei ainda meio mareada com a beleza das terras mineiras.
A máquina fotográfica que não comprei revela o instantâneo da mãe debruçada na sacada antiga de rendas de ferro, o bebê escanchado na cintura, o olhar interessado no movimento da praça não de todo larga, com os sobrados de esguelha para a catedral no centro, mais nova mas já manchada de cinzas do tempo. O momento se prolonga com o sol se despedindo do topo das montanhas, e a mulher permanece ali, um pouco inclinada para fora, uns possíveis babados no vestido emprestando-lhe ares antigos, mais solitária a praça quando ela se recolhe e o vão escuro da janela silencia os muros ao redor.
Na escadaria da igreja velhos se sentam cansados das horas recitadas minuto a minuto, mais atentos talvez à sua modorra interior que às figuras que se deslocam pelo chão de pedras irregulares à sua frente.O cumprimento do homem quase gordo de chapéu de couro revirado é reconhecido só depois de algum esforço, o que gera embaraço e até certa timidez no sorriso que começara com decisão no meio da barba mal cuidada. Ao beato de rosto chupado pelas rugas não parece chegar o vaivém dos carros de último tipo, nem tampouco a música estridente de um bar ao lado, suas orações e ele próprio já acomodados em baú antigo, talvez numa daquelas casas de esquadrias coloniais, empinadas ao longo de ladeiras.
Para baixo chega-se ao mercado de animais à porta e higiene duvidosa por dentro, e, com a visão sempre recordada de árvores encimadas por flores de um vermelho vivo alaranjado, adentra-se em periferia de menos elegância que debaixo do sol forte ramifica-se em ruas já sem calçamento e casebres de sobrevivência penosa. De lá, firmes sobre as pedras e o cascalho, as botas procuram o caminho dos escravos na montanha. O cinza das rochas escurece a encosta verde, mas há uma promessa de brilho nos seus reflexos, que afinal se confirma nas pedras brancas que põem a descoberto as várias trilhas beirando o córrego d’água com seus poços. O gingar em cima das botas é sinuoso, lembrando suor, malícia, violência à espreita, mas o passo é seguro, barulhento nas pedrinhas, alheio ao calor e ao esforço, como que ignorante do perigo um metro acima. As botas perseguem o caminho, abraçando resignadamente a montanha que, se vista do alto, por entre as torres da igreja, antes liberta qualquer laço a que o corpo se sujeitou, e parece unir-se às preces que escapam pelas aberturas ao lado do sino que bate candente as seis horas da tarde.
No meio da entrada para a gruta, entre dois paredões de pedra quase rendada nas pontas, o esvoejar selvagem de dois pássaros de plumagem branca e cinza escura, um em perseguição ao outro, os gritos estridentes quem sabe de amor. Mais acima da cachoeira, em recanto de silêncio, areia branca e água clara sobre o cascalho, as árvores encobrindo o sol e o calor, o movimento das folhas e do córrego criando estrelas de diamantes, ali na beira, ao alcance de todas as mãos.
Mais tarde o sol oblíquo doura as copas das palmeiras, os troncos já sombreados, ao lado de construções inabitadas que ainda guardam nas fachadas o teor ordeiro de sonhos de justiça inusitada. Por trás da janela de vidro quebrado, o rosto humano avultando, acolhido pela montanha, assim como outro olhar perscrutador de face negra, envolta em véu branco rendado. Na rua íngreme toldada por árvore inclinada na direção dos montes, o piano catando as notas de Chopin atrás de cortinas bordadas com recato.
Mas os dedos do pé se retorcem uns sobre os outros, escultura grotesca do tempo, o desarrazoado das palavras sem conseguir esconder as indecisões dos desejos e das ideias, ainda assim, firme nos pés aleijados, a figura humana insistindo na conversa não escutada.
E uma vez mais descendo a ladeira, com as montanhas nos olhos, ou subindo até a estação com rendas de ferro no topo do telhado, volta-se sempre à praça do precário comércio humano, a velha surda de sorriso inexplicável diante dos arremedos de carnaval, ciosa como a companheira de estar naquele dia ainda de pé. Enquanto os telhados convencidos de sua beleza, muitos dispensando serem cimentados, quietos diante das montanhas mais altas que eles, mesmo assim orgulhosos de sua altura, prometem visões nos espelhos das virtuais pedras diamantes àqueles capazes de vencer as ladeiras dentro de si mesmos.