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Matéria de Capa

BOB DYLAN – Prêmio Nobel de Literatura

I’ve dined with kings
I’ve been offered wings
But I’ve never been too impressed

 

Em 2016, Bob Dylan recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Muitos foram os prêmios que lhe foram concedidos pela vida, pontuando seu ofício de cantar e escrever canções. Mas imagino que receber o Nobel de Literatura deve ter surpreendido o jovem de uns vinte anos que chegou a Nova York no início dos anos 60 para seguir seu destino.

A reação pelo mundo todo foi de grande espanto. A academia sueca ousara sair dos escaninhos bem delimitados ao longo de vários séculos de literatura. As canções seriam literatura?  Afinal, já iam bem longe as cantigas de amor e de amigo. O próprio agraciado com o prêmio revelou estar diante de um enigma. Assim como Shakespeare escreveu suas peças para serem encenadas, ele escreve suas canções para serem cantadas, afirmou no discurso lido por ocasião da entrega do prêmio, cerimônia a que não pôde comparecer. Nunca se detivera para pensar se suas canções seriam literatura, e agradecia à academia sueca por ter se debruçado sobre essa questão e chegado a uma conclusão tão lisonjeira. E o que tinha realmente a dizer veio em forma de canção interpretada pela cantora Patti Smith:

A Hard Rain’s A-Gonna-Fall

I met one man who was wounded in love
I met another man who was wounded with hatred
And it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard
It’s a hard rain’s gonna fall  

Patti Smith canta no Prêmio Nobel

Mais tarde ele tornou a refletir sobre a questão na palestra que proferiu na academia sueca cumprindo os requisitos do prêmio. Reafirmou seu ofício de cantar e escrever canções, revelando as raízes americanas que lhe deram o norte de seu caminho. Depois cuidou de mostrar que as leituras de clássicos da literatura, até de seus tempos colegiais, infiltram-se entre as linhas de seu canto, e escolheu falar sobre três dessas leituras por terem impregnado muito do que sentiu e escreveu.

O primeiro livro mencionado é a obra prima de Herman Melville, Moby Dick.

 

 

Moby Dick is a seafaring tale. One of the men, the narrator, says, “Call me Ishmael.” Somebody asks him where he’s from, and he says, “It’s not down on any map. True places never are.”

Moby Dick é um conto de navegação. Um dos homens, o narrador, diz: “Me chamem de Ismael”. Alguém lhe pergunta de onde é, e ele diz: “Não está em nenhum mapa. Os verdadeiros lugares nunca estão.”

A narrativa se passa no Pequod, a nau em que o capitão Ahab e sua tripulação composta de homens de todas as raças e lugares navegam em perseguição à baleia branca, Moby Dick, apresentada como a encarnação do mal. Dylan ressalta o percurso obstinado de Ahab até sua morte, mas não deixa de apontar a trajetória diversa de outros marinheiros. E faz questão de apontar que toda a história é entremeada de simbolismos, alegorias bíblicas, alusões a textos clássicos.

Dois fios bem resistentes da trama de Melville parecem ter se insinuado nas canções de Dylan. Apesar de americano até a medula dos ossos, Dylan acolhe na urdidura de suas letras homens de todo tipo, especialmente aqueles que vêm de lugares que não estão no mapa. E as citações de clássicos se justapõem a frases de autores não de todo conhecidos, expressões coloquiais se harmonizam com imagens de textos antigos. A navegação nas canções se faz entrecortada, deixando transparente sua fragmentação. Embora nem sempre fiquem claros para os ouvintes os cacos da civilização que se chocam entre a melodia, é fácil constatar que o livro mais citado nas canções de Dylan é a Bíblia.        

O segundo livro a que Dylan se refere é um romance do escritor alemão Erich Maria Remarque sobre a Primeira Guerra Mundial – Nada de Novo no Front.  A Primeira Grande Guerra foi uma guerra de trincheiras onde ocorreu uma carnificina que culminou na gripe espanhola, disseminada a partir dos soldados no final do conflito. No seu comentário, Dylan reafirma o que está descrito no livro de Erich Maria Remarque – o inferno. Quando homens são transformados em bandidos e assassinos, quando a civilização é destruída. Dylan manifesta de forma categórica o seu pavor diante dessa história de terror afirmando que nunca mais leu nenhum outro livro de guerra. Nascido no início dos anos 40, esse pavor da guerra deve ter ressoado de forma bem concreta em Dylan, assombrando suas canções. Lembra Hitchcock que declarou certa vez: “The only way to get rid of my fears is to make films about them.” [A única maneira de me livrar dos meus medos é fazer filmes a respeito deles.]

O terceiro livro é a Odisseia de Homero. Mais uma narrativa de navegação, desta vez uma longa viagem de retorno ao ponto de partida, Ítaca. Na visão de Dylan, o viajante no poema é todo mundo, tudo o que lhe acontece ocorre a nós, a todo mundo. E os eventos exigem esforço e luta, como a campanha de Odisseu para recuperar seu lugar em Ítaca, quando tem de derrotar os usurpadores pretendentes à mão de Penélope. Em seu livro de memórias, Dylan fala da sabedoria de sua avó que conhecia muito bem o teor da lida humana.

“I told him about my grandma on my mom’s side who lived with us. She was filled with nobility and goodness, told me once that happiness isn’t on the road to anything. That happiness is the road. Had also instructed me to be kind because everyone you’ll ever meet is fighting a hard battle.”

Eu lhe contei sobre a minha avó por parte de mãe, que vivia conosco. Ela era cheia de nobreza e bondade, disse-me certa vez que a felicidade não está na estrada rumo a alguma coisa. Que a felicidade está na estrada. Ensinou-me também a ser gentil porque todo mundo que você vai conhecer está travando uma dura batalha.”

Cabe observar um dos eventos da Odisseia que ganha relevo no texto de Dylan. É a ida de Odisseu ao Hades, onde encontra Aquiles, o herói da Ilíada. Esse diz a Odisseu que trocaria a honra e glória que conquistou pelo lugar de um servo arando sua gleba, porque estaria vivo, e não morto no Hades. Desejo que se realiza nas canções. Diz Dylan: “Nossas canções estão vivas na terra dos vivos.” Mais afins a uma epopeia que a uma tragédia.

 

 

Mas, finaliza Dylan, as canções não são como a literatura. São para serem cantadas. Com grande maestria, ele conclui a sua palestra recorrendo mais uma vez a Homero, com o verso inicial da Odisseia na tradução de Robert Fitzgerald:

“Sing in me, oh Muse, and through me tell the story.”  

Canta em mim, oh Musa, e por meio de mim conta a história.”

As canções de Dylan contam certamente histórias, algumas até de forma bem explícita por serem canções narrativas. “Lily, Rosemary and the Jack of Hearts”, “Joey”, “Black Diamond Bay”, “Tangled up in blue” e muitas mais. Mas em todas a história é cantada/contada de forma entrecortada, os fragmentos se unindo por sugestões, alusões, sinais. A história é tudo menos linear. A narrativa possível em nossos tempos.

Outra consideração que me ocorreu sobre Dylan ter recorrido a Homero para falar de suas canções é bem prosaica. Ao longo de séculos, estudiosos se debruçam sobre a Ilíada e a Odisseia, e uma das questões que ocupou por bastante tempo suas mentes – nem sei se chegaram a uma conclusão definitiva – é a existência de Homero.  Há muitos sinais de tradição oral nos dois poemas, como, por exemplo, o emprego de epítetos para os personagens, por isso já houve quem defendesse a tese de que os poemas foram recolhidos de histórias passadas e repassadas pela linguagem oral, sem que houvesse um Homero para criá-los. Uma questão um tanto bizantina, porque a trama narrativa dos dois poemas é de tal modo sofisticada que se torna difícil admitir a não existência do poeta.

Homero existiu ou não? As canções de Dylan seriam literatura? Seja qual for a resposta, os dois cumprem à risca o que a Musa lhes dita – cantam e contam a história.

Essas observações sobre o discurso de Dylan ao receber o Prêmio Nobel e a palestra que proferiu na academia sueca são notas diminutas que mais serviram para me esclarecer a reação que tive ao saber do prêmio conferido a Bob Dylan. Como as canções de Dylan são uma das minhas paixões de vida inteira, vibrei com grande alegria e pensei:

Em 2016, quem ganhou o Prêmio Nobel de Literatura foi a literatura.   

 

“If a song moves you, that’s all that’s important. I don’t have to know what a song means.”

Se uma canção comove você, é só o que importa. Não tenho que saber o que uma canção significa.”

John Donne as well, the poet-priest who lived in the time of Shakespeare, wrote these words, “The Sestos and Abydos of her breasts. Not of two lovers, but two loves, the nests.” I don’t know what it means, either. But it sounds good. And you want your songs to sound good.”

“Assim também John Donne, o poeta-sacerdote que viveu na época de Shakespeare, escreveu estas palavras: ‘O Sestos e Abydos de seus seios, Não de dois amantes, mas dois amores, os ninhos’. Tampouco sei o que significa. Mas soa bem. E você quer que suas canções soem bem.”

As palavras significam, mas a música das canções também significa. Não é a sina dos humanos existir em meio a uma Babel de significados? O alarido se faz balbúrdia ensurdecedora ao redor de nós

Dylan acerta no alvo, quando diz que não temos de saber o que as canções significam, o importante é que elas consigam nos comover. Como Rainer Maria Rilke escreveu em seu livro Cartas a um Jovem Poeta:

A solidão das obras de arte é infinita, e nada as alcança menos do que a crítica. Somente o amor pode compreendê-las, conservá-las e tratá-las com justeza.”

Os seres humanos vivemos no redemoinho das palavras e seus significados, porque são imprescindíveis para que possamos lidar com a vida. Mas todos temos um núcleo irredutível a explicações sensatas, de onde brota nossa vitalidade. Como disse Emily Dickinson: “Mesmo o possível tem sua partícula insolúvel”.

A obra de arte nasce do ofício humano e carrega no seu DNA esse mesmo ponto que não há como desvendar. Dylan e Rilke têm razão – não nos aproveita muito bruxulear como mariposas em torno dos múltiplos significados da arte humana. O que realmente importa é pressentir o que ela guarda de incompreensível.

John Keats começou o poema Endymion com a seguinte frase:

                  A Thing of Beauty is a Joy Forever

Sim, a arte humana produz beleza e alegria. Mas o Forever escapa ao nosso entendimento, o sinal de que estamos, os humanos e a arte humana, no vestíbulo da grande compreensão.  Não é sintomático que nos contos de fada a narrativa chega ao fim com a frase padrão, e eles viveram felizes para sempre? Mas por participarmos ainda que minimamente do que é para sempre, a Musa canta nos artistas e por meio deles conta a história.     

 


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