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Poesia

Encontrando por acaso um poema de Georg Trakl…

 

Ein Faun mit toten Augen schaut
Nach Schatten, die ins Dunkel gleiten

Um fauno de olhos mortos contempla
As sombras que deslizam para a escuridão.

 

Encontra-se um poema de várias maneiras, quase sempre mais inesperadas que a busca numa biblioteca pelo nome do autor, tema ou época. O estudo de literatura se pauta certamente pelos caminhos organizados dos cânones literários de cada língua, mas é minha experiência que, como na vida, os encontros fogem à lógica humana. E não é verdade que muitas vezes lemos e relemos um texto, mas o encontro só vem a acontecer mais tarde, quando as palavras se abrem realmente à nossa compreensão? E os encontros com os escritos clássicos não são múltiplos, sempre surpreendentes?

Não conhecia o poeta austríaco Georg Trakl, e fui encontrá-lo distraída na sua cidade natal, Salzburg. Foi em 1987, ainda antes da queda do Muro de Berlim. Para agilizar meu aprendizado da língua alemã, passei um mês estudando no Goethe-Institut de Rothenburg ob der Tauber, uma cidade que ainda mantém seus contornos medievais na Rota Romântica da Alemanha. Era um junho chuvoso, todos reclamavam do atraso na chegada do verão daquele ano.

No dia 17 de junho, os alemães festejavam então o Dia da Unidade Alemã – depois da queda do Muro do Berlim, esse feriado passou a ser 3 de outubro. 17 de junho marca a revolta fracassada contra os soviéticos na Alemanha Oriental em 1953. Aproveitando o feriado nacional, o Goethe-Institut ofereceu aos estudantes a oportunidade de uma viagem de cinco dias a algumas cidades da Alemanha Oriental, inclusive Dresden, e logo me inscrevi na excursão. Só que nas aulas diárias, como um alerta suave sobre possíveis problemas na viagem, os professores começaram a repetir que talvez houvesse dificuldades na fronteira. Nada que dissesse respeito aos alunos, mas os professores, por serem alemães, poderiam ter de prestar declarações, por isso todos contavam com uma demora expressiva para entrar na outra Alemanha. Ora, nós brasileiros tínhamos passado por 21 anos de ditadura, um regime de lembrança ainda recente, pois só chegara ao fim em 1985, e essa amarga experiência deixou marcas em mim, aliás, acho que em todos nós. Escutar aquela ladainha de possíveis controles e censuras não me fez bem, e decidi cancelar minha inscrição e ficar sem conhecer a Alemanha Oriental.

Com um fim de semana prolongado pela frente, resolvi aproveitar o tempo livre para visitar Salzburg. A escolha desse destino obedeceu tão somente a meu desejo de conhecer a cidade de Mozart. E sem referências além das queixas de Mozart quanto ao provincianismo da região, o que o fez fixar residência em Viena, tive a grata surpresa de encontrar uma cidade realmente encantadora. Ela se estende ao lado de um belo rio, e as ruas com suas fileiras de casas que parecem de boneca se mesclam com edificações pesadas de pedra, um misto de modéstia e pompa que me fez arregalar os olhos de admiração. Tua cidade é muito bonita, Mozart, eu não parava de murmurar, sem perder de vista o rio que lhe traça o perfil.

No primeiro dia  depois da minha chegada, saí a flanar pela cidade, sem nenhuma orientação. Não demorou muito para eu me deparar com um enorme muro branco que parecia ocupar muitos e muitos quarteirões. Fiquei curiosa, não conseguia imaginar o que poderia ser aquela imensidão branca no meio da cidade. Ao dobrar uma esquina, vi que o muro também seguia outra direção e não parecia ter fim,. Pouco depois percebi que havia brechas no muro, e que as pessoas entravam e saíam por ali. A curiosidade venceu qualquer receio, e tratei de seguir alguém que enveredava pelo muro branco. Dei num magnífico jardim, daqueles jardins europeus em que as plantas de muito viço e cor obedecem a linhas e círculos de geometria refinada. Confesso que prefiro o desalinho mais selvagem dos parques brasileiros, mas o jardim ordenado que se abria aos meus olhos tinha beleza de sobra.

Jardins Mirabell
Mais tarde fiquei sabendo que se tratava dos Jardins do Palácio Mirabell, construído em 1606 pelo príncipe-arcebispo Wolf Dietrich von Raitenau como um sinal de seu amor por Salome Alt. Dentre os vários príncipes-arcebispos, Hieronymus von Colloredo é famoso por ter sido o patrão de Mozart e seu pai, que muitas vezes tocaram nos salões do palácio. Colloredo teve vários atritos com Mozart, a quem, segundo consta, acabou demitindo literalmente com um chute no traseiro. Nos jardins Mirabell, é costume ainda hoje realizar concertos ao ar livre.

Naquele dia, não sabia da história dos jardins, e me ative a contemplar sua beleza trilhando os vários caminhos. Já percebera, em outros lugares na Alemanha, que é costume dos alemães escrever frases nas paredes e muros. Aliás, na minha própria casa (minha família é de ascendência alemã) havia quadrinhos com versos e pensamentos em vários recantos. E foi assim que, seguindo a esmo pelo belo jardim, dei de cara com um poema de Georg Trakl, Musik im Mirabell.

Li o que estava escrito no muro, reli, e meu coração se abriu mais que meus olhos diante da surpresa do jardim. Não conseguia me despregar das palavras ali gravadas – dei várias voltas pelo jardim, mas sempre retornando ao muro para ler mais uma vez o poema.

Só mais tarde me informei sobre Georg Trakl, poeta nascido em Salzburg que escreveu Musik im Mirabell em homenagem aos jardins de sua cidade. Li outros poemas seus, mas tive dificuldade com o travo de sua poesia. Nada conseguiu reacender em mim o fascínio daquela leitura antiga. Com a ajuda de uma poeta minha amiga, realizamos a tentativa de trazer o poema para o português. A ponte é frágil como todas as que procuram dar passagem para a poesia. Mas aí está.

 

MUSIK IM MIRABELL

Ein Brunnen singt. Die Wolken stehn                 Musik im Mirabell
Im klaren Blau, die weissen, zarten.
Bedächtig stille Menschen gehn
Am Abend durch den alten Garten.

Der Ahnen Marmor ist ergraut.
Ein Volgelzug streift in die Weiten.
Ein Faun mit toten Augen schaut
Nach Schatten, die ins Dunkel gleiten.

Das Laub fällt rot vom alten Baum
Und kreist herein durchs offne Fenster.
Ein Feuerschein glüht auf im Raum
Und malet trübe Angstgespenster.

Ein weisser Fremdling tritt ins Haus.
Ein Hund stürzt durch verfallene Gänge.
Die Magd löscht eine Lampe aus,
Das Ohr hört nachts Sonatenklänge.

 

MÚSICA EM MIRABELL

Uma fonte canta. Nuvens pairam
No claro azul, brancas, frágeis.
Pensativos homens calados andam
À noite pelo velho jardim.

O mármore antepassado escureceu.
Um bando de pássaros risca a amplidão.
Um fauno de olhos mortos contempla
As sombras que deslizam para a escuridão.

A folhagem cai vermelha da velha árvore
E entra em círculos pela janela sem fecho.
Um clarão de fogo se eleva no espaço
E pinta obscuros fantasmas de medo.

Um estranho branco entra na casa.
Por sendas demolidas um cão lança as patas
A empregada apaga uma lâmpada,
O ouvido escuta na noite sons de sonata.

(tradução de Rosaura Eichenberg e Isis Alves).

 


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