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Não Ficção

Hitchcock – Algumas Notas

 

Numa das suas conversas com Truffaut, Hitchcock fala sobre Ingrid Bergman, que trabalhou em algum de seus filmes. Ao referir-se a uma contrariedade da atriz, Hitchcock lhe diz: “Ingrid, it’s only a movie!” No caso citado, Hitchcock criticava a mania de grandiosidade de Ingrid Bergman, procurava lhe dar uma lição de humildade. Mas parece que ele afirmou “it’s only a movie!” a muitas outras pessoas, como, por exemplo, a Anthony Perkins. Ele procura minimizar sua produção – olha, o que faço é apenas “entertainment”!  Sem dúvida, seus filmes são “great entertainment!”, do que existe de melhor nessa área. Mas as cenas marcam os espectadores, o medo que sentem guiados pelo suspense engenhosamente criado fica gravado na memória. Quem esquece a cena de Cary Grant correndo num descampado à margem de uma estrada deserta para escapar de um avião? Eu talvez esteja incorrendo num erro ao procurar um ou vários sentidos em cenas tão espetaculares, mas os franceses dos Cahiers du Cinéma foram os primeiros, acho eu, a reconhecer que havia algo a mais nos filmes de Hitchcock. É claro que procuraram esclarecer principalmente os detalhes técnicos cinematográficos em que Hitchcock exerceu toda a sua inventividade e criatividade. Estas notas mais modestas se atêm à marca que alguns filmes do grande mestre deixam nos espectadores.

 

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Impressões recolhidas de filmes realizados por Alfred Hitchcock (1899-1980).

A obra desse autor inglês marca os espectadores pelo emprego magistral do suspense e pelo refinamento da linguagem cinematográfica sempre sublinhada por um traço de humor. 

Um tema constante na obra de Hitchcock é o do inocente que se vê acusado de um crime que não cometeu e passa todo o filme sendo perseguido pelos bandidos e pela polícia.

Isso pode assumir as mais variadas nuances como o antigo ladrão de joias que se torna o suspeito mor quando uma série de roubos de joias acontece na Riviera francesa em Ladrão de Casaca (1955), ou o padre que não pode revelar o que escutou em confissão em A Tortura do Silêncio (1952), ou o estrangeiro que se vê envolvido numa trama de espionagem e tem de escapar de perseguidores que ele nem sabe quem são em Os Trinta e Nove Degraus (1935). É de observar que a polícia desempenha papel dúbio nessas tramas, pois em geral persegue o protagonista junto com os malfeitores. Talvez um dos exemplos mais emblemáticos é o de O Homem Errado (1957), filme baseado numa história real.   

Em O Homem Errado, o protagonista é confundido com o criminoso por causa da semelhança física. O filme relata o calvário por ele percorrido até conseguir provar sua inocência, mas o filme é baseado numa história real, o que resulta num happy end turvo, pois sua mulher enlouquece com o sofrimento. No final, Hitchcock sobrepõe a imagem dos dois homens, o inocente e o criminoso, e os sósias antagônicos remetem sem dúvida ao contexto religioso do homem pecador que também abriga a possibilidade de salvação. Hitchcock era católico.

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É provavelmente durante minha passagem pelos jesuítas que o medo se fortificou em mim. Medo moral, de ser associado a tudo o que é mal. Sempre me conservei afastado dele. Por quê? Por medo físico, talvez.” Em outra ocasião, disse: “…se ao menos as pessoas soubessem que tenho muito mais medo que elas na vida real…”

Esse medo do mal que existe embutido no mundo encontra expressão no suspense que Hitchcock soube criar pela linguagem visual do cinema. Em Janela Indiscreta (1954), o fotógrafo profissional então imobilizado pela perna quebrada perscruta a vida de seus muitos vizinhos pelas janelas que se abrem para o pátio dos fundos. Com a ajuda de uma teleobjetiva, ele consegue ir além das aparências e, sem erro, descobre um crime.

A ciência de que o mal existe fundamenta os filmes de Hitchcock, que versam sobre o perigo de lidarmos com ele e até de nos aproximarmos dele. A curiosidade do fotógrafo de Janela Indiscreta lhe arruma mais uma perna quebrada. Mas, à semelhança de outros grandes artistas, Hitchcock não recua por medo do que procura ver. Antes, com seu domínio do suspense, leva o espectador a sentir o medo dessa aproximação que lhe permite ficar cara a cara com o mal. Quase como se ensinasse um modo de vencer o medo.

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Há um travelling no filme Young and Innocent (1937) que delineia visualmente esse chegar perto do mal. No filme, a jovem protagonista fica sabendo por meio de um vagabundo que o verdadeiro assassino é um baterista de orquestra com um tique nervoso nos olhos. Enquanto a polícia procura fazer o cerco a um falso culpado no lado de fora, os dois personagens entram num salão de festas onde a orquestra toca para alguns casais que dançam na pista. A ação da câmera tem início no saguão anterior ao salão de festas que é visto do alto. A câmera segue a jovem e o vagabundo entrando e se acomodando no salão, registra pelas janelas os policiais cercando o local, passa pelos casais que dançam e aproxima-se lentamente da orquestra. Focaliza primeiro toda a orquestra, depois o baterista com sua bateria, para então aproximar-se de seu rosto pintado de negro como o de todos os outros músicos, e por fim mostrar seus olhos se contraindo num tique nervoso. É um amplo e longo movimento de câmera que cria o suspense ao aproximar o espectador do mal enfim flagrado.

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Outra experiência marcante na infância de Hitchcock foi um castigo bastante assustador que seu pai lhe aplicou depois de ele ter cometido uma pequena falta. Escreveu um bilhete a um delegado amigo seu e pediu que o filho fosse à delegacia entregá-lo. Lá chegando, o delegado leu o bilhete e prendeu Hitchcock numa das celas. Quando o libertou depois de alguns minutos, disse que era isso o que acontecia a um menino que não se comportava bem. Por essas ou por outras, Hitchcock sentia medo da polícia. Nos seus filmes, mesmo quando os policiais se portam muitas vezes como baratas tontas perseguindo o homem errado, ele não os retrata da maneira hilária de um Sherlock Holmes desancando a Scotland Yard. A distância que guarda dos homens da lei é respeitosa, um tanto temerosa. Em O Terceiro Tiro, o único a perseguir os protagonistas é o homem da lei.

Mais do que filmes de detetive, por assim dizer, em que o espectador entra num jogo para tentar descobrir quem cometeu o crime, os filmes de Hitchcock focam gente que se envolve em enrascadas e caminhos ambíguos, sem saber muito bem o que estão fazendo, todos em perigo pelo mal sempre presente. Nesse mundo em que domina o medo, as cenas são pontuadas por um traço de humor, quase sempre criado com recursos visuais, e que muitas vezes lembra os filmes de Fritz Lang.

 

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Como um exemplo desse humor, vale lembrar a cena inicial do penúltimo filme de Hitchcock, Frenesi (1971). A história se passa em Londres – ainda vivendo nos Estados Unidos, Hitchcock vem repensar sua velha Inglaterra. A primeira cena do filme é um panorama do Tâmisa, e a câmera se desloca para um cartaz na margem que anuncia a despoluição do rio. Esse sinal do progresso moderno é logo quebrado pela visão de um cadáver que aparece flutuando até a margem. Hitchcock está dizendo que a despoluição de um rio não é garantia de eliminação das sujeiras e contradições da natureza e do homem. Aliás, a história apresentada focaliza um assassino serial que mata mulheres estrangulando-as com sua gravata – não me parece especulação muito extravagante observar que ele lembra Jack, o Estripador. A Londres renovada pelas tendências modernas ainda está atada a seus velhos pesadelos. As preocupações ecológicas são ironizadas mais uma vez no cadáver ocultado num saco de batatas, e a obsessão com o que as pessoas devem comer explode em franca comédia nas cenas hilárias do detetive que não consegue mais se alimentar como de costume, porque a mulher está fazendo um curso de culinária francesa e insiste em preparar pratos sofisticados que ele detesta. Vale repensar com humor os cuidados ecológicos (que, se fanáticos, procuram uma harmonia tão perfeita na natureza que se faz mister eliminar a nota dissonante dos humanos), e a obsessão pela saúde que dita regras para o comportamento das pessoas, sobretudo para os hábitos alimentares, na missão impossível de acabar com a fragilidade inerente ao nosso corpo. O humor de Hitchcock está fazendo falta no mundo de nossos dias.

 

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Em 1956, Hitchcock lançou um filme chamado O Terceiro Tiro que é puro humor. Quase uma comédia. Num cenário rural de Vermont, por sinal muito belo, quatro pessoas se veem às voltas com um cadáver que surgiu na paisagem idílica. Seguindo a linha do temor hitchcockiano, três delas pensam que tiveram parte no destino do estranho, mesmo que por um tiro extraviado ou por um golpe desajeitado de sapato na cabeça do morto. O tema recorrente do inocente acusado de um crime que não cometeu apresenta aqui uma variante – são as próprias pessoas que se recriminam e se sentem culpadas. O quarteto se une ao longo da história para se esquivar da investigação da autoridade policial da região, pois não desejam que venha ao conhecimento público sua possível participação na morte do sujeito. É com esse propósito em mente que os quatro passam o filme inteiro a enterrar e desenterrar o cadáver, como se essa fosse uma tarefa rotineira na lida da vida.

Como diz Truffaut na sua famosa série de entrevistas com Hitchcock: “O humor do filme depende de um único expediente: uma atitude de indiferença desconcertante. Os personagens discutem o cadáver de forma tão casual como se estivessem falando de um maço de cigarros.”  Ao que Hitchcock responde: “Essa é a ideia. Nada me diverte tanto quanto a litotes.”

A litotes é uma figura de linguagem em que procuramos atenuar uma ideia quase sempre negando o seu contrário. Em vez de filmar um melodrama, Hitchcock minimiza os aspectos aterradores e apresenta o drama, que não deixa de existir, em situações triviais. Nas suas palavras: “Com O Terceiro Tiro, eu tirei o melodrama da noite negra como breu e levei-o para a luz do sol. Como se eu tivesse armado um assassinato ao longo de um córrego rumorejante e deixado cair uma gota de sangue na água clara.” Cita como muita divertida a frase de uma mulher que encontra o velho capitão arrastando o cadáver para enterrá-lo pela primeira vez – o capitão pensa ter matado o sujeito com um de seus tiros para caçar coelhos. “Qual é o problema, Capitão?” É como se o cadáver nem existisse.

Ao final da película, ficamos sabendo que o estranho morreu de causa natural. Não houve assassinato, a polícia recolhe o cadáver para sepultá-lo, mas o drama permanece na tarefa de enterrar e desenterrar o cadáver ao longo de todo aquele dia.

 

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Intriga Internacional [North by Northwest] foi lançado em 1959. Uma obra-prima de Hitchcock. Segue a linha do inocente perseguido por um crime que não cometeu, naquela nuance radical de ele não saber quem são seus inimigos, nem a trama estranha em que se vê envolvido. E o traço de humor sublinha todas as cenas. Mas nesse filme estamos num outro patamar.

Por que o protagonista é perseguido por um crime que não cometeu? Bem, porque ele estava na ONU falando com a vítima, quando essa foi esfaqueada, e ele foi fotografado com a faca ensanguentada na mão. A foto correu mundo, pois o local do assassinato era nada menos que a ONU. A cena é tão escandalosa que o espectador até sente vontade de rir. Estamos certamente longe do humor inglês de Hitchcock. Um pouco mais tarde, as cenas hilárias com a mãe do protagonista levam o espectador a se perguntar se o filme não seria uma comédia debochada, no estilo de chanchada brasileira. Tudo ainda se torna mais estranho quando o espectador é informado de que o misterioso desconhecido, o sujeito com quem o protagonista é confundido, nem existe. A enrascada que engolfa o pacato cidadão que apenas vivia seu cotidiano sem grandes tropeços não parece fazer nem pé nem cabeça.

O título do filme em inglês é North by Northwest – uma citação de Hamlet. No filme, há uma cena em que o protagonista conversa com o chefe de uma agência de inteligência americana perto de um avião já na pista em que esse agente da lei deve embarcar. Claro que o barulho ensurdecedor dos motores impede que o espectador escute todo o diálogo, mas é possível ler no corpo da aeronave o nome da companhia aérea – North by Northwest.

A citação de Hamlet é tirada do Ato II, Cena II. “I am but mad north-north-west; when the wind is southerly I know a hawk from a handsaw.” [“Eu sou louco somente ao norte-nordeste; quando o vento vem do Sul sei distinguir um falcão de um facão.”]

Essa frase shakespeariana vem apontar a natureza singular do filme de Hitchcock. Aqui não é dado ao espectador observar a vida com todos os seus medos e angústias, guiado por uma câmera cheia de perspicácia e humor. Antes estamos mergulhados em pleno nonsense.

Pode haver linhas explicativas no roteiro para alinhavar num todo minimamente coerente a história do filme, mas como evitar a sensação de nonsense na cena em que o protagonista é perseguido por um avião numa estrada deserta ainda totalmente iluminada pelo sol? A estrada está vazia, de vez em quando passa um carro ou um ônibus, e o protagonista aguarda o encontro com um desconhecido. Hitchcock diz que procurou fugir dos clichês de uma aleia escura repleta de sombras ameaçadoras – a cena é em pleno sol, tudo claro. Mas de onde surge um avião agrícola pulverizador? E mais, como lembra Truffaut, por que surge numa área onde não há nada a pulverizar, conforme observação de um fazendeiro na cena?

A reflexão sobre a vida atinge um patamar mais elevado em Intriga Internacional. Quase como tentar descobrir a maneira de arcar com nossos medos e angústias numa vida que se desenrola em franco nonsense. Nessa linha, encontramos uma informação interessante sobre o filme na série de entrevistas realizadas por Truffaut. Hitchcock conta ter imaginado uma cena para Intriga Internacional que acabou não sendo realizada.

“Ocorreu-me a ideia de que nos movíamos numa direção norte-noroeste a partir de Nova York, e que uma das paradas no caminho era Detroit, onde eles fabricam automóveis Ford. …Eu queria filmar uma longa cena de um diálogo entre Cary Grant [o protagonista] e um dos operários da fábrica, enquanto caminhavam ao longo da linha de montagem. Poderiam estar falando, por exemplo, sobre um dos contramestres. Atrás deles um carro estaria sendo montado, peça por peça. Por fim, o carro que viram ser montado a partir de uma porca e um parafuso está completo, com gasolina e óleo, e pronto para sair da linha de montagem. Os dois homens olham para o carro e dizem: “Maravilha!” Depois abrem a porta do carro e dali cai um cadáver! … De onde vem o corpo? Não do carro, evidentemente, porque eles o viram ser montado a partir do zero! O cadáver cai do nada, entende! E o corpo poderia ser o do contramestre que os dois estavam discutindo.”  

Essa observação de Hitchcock esclarece o espírito como essa sua obra-prima foi pensada. E o cadáver caindo de dentro do carro recém-montado não lembra o cadáver de Harry que surge a partir do nada na paisagem idílica de Vermont em O Terceiro Tiro?

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Obras consultadas:

Araújo, Inácio.  Hitchcock.  São Paulo, Brasiliense, 1982.

Truffaut, François.  Hitchcock. London, Toronto, Sydney, New York,
Granada Publishing, 1978. 

 

 


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