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Não Ficção

O Caminho do Guerreiro – A Arte sem Arte

 

O praticante de Artes Marciais, inevitavelmente, irá deparar-se com um determinado estágio em que haverá  necessidade de manejar seu corpo, sua energia e  também sua “arma”, seja ela  espada, sabre, leque, lança, bastão ou  kuan tao,  de forma  espiritualizada .

Evidentemente, os  treinamentos e técnicas desenvolvem habilidades,  trazem experiências e conhecimento. Porém, este não é um fim em si mesmo. O “caminho” está ainda longe de ser completado.

Os tratados sobre Artes Marciais versam longamente sobre este  ponto da experiência, que seria, por assim dizer, o objetivo maior e o mais difícil de ser alcançado. Os mestres explicam que, após o domínio das técnicas (tarefa que já é bastante árdua), outras habilidades deverão ser conquistadas pelo estudante. Neste momento será necessário o despertar da “arte sem arte”, ou “arte da não – arte”… Isto significa que todo o conhecimento ou técnica precisa ser transcendido.

Naturalmente, nossas habilidades técnicas sofrem influências da  mente, do ambiente e dependem do corpo físico. Estamos operando ainda na esfera da dualidade, do mundo manifesto. Na maioria das vezes, o praticante não consegue realizar o grande ideal das Artes Marciais, que é justamente “transferir” ou transpor a habilidade técnica  para além das situações concretas de treinamento; transferir seu conhecimento  para outras esferas da vida e praticar nas situações cotidianas … Podemos nos perguntar de que adianta tanto conhecimento ou tanta habilidade  técnica, se não conseguimos usá-las em nossas vidas?! Sem perceber, podemos tornar nossa prática tão restrita que, mais uma vez, nos dissociamos das reais necessidades da vida, criando mais um nicho, mais uma separação. Vale lembrar que, essencialmente, as Artes Marciais e as Artes Orientais destinam-se à pessoa toda!  Sendo preciosos instrumentos que propiciam autoconhecimento, determinação, força interior e sensibilidade.

A preciosa obra  A Arte da Guerra de Sun Tze ( 490 A.C.), verdadeiro clássico de estratégia, é ao mesmo tempo um valioso tratado sobre liderança, sensibilidade e desenvolvimento pessoal.

A fim de  transformarmos nossa técnica em algo que realmente possa ser vivido, devemos converter a técnica em arte, adquirindo, na linguagem dos Clássicos, uma “presença de espírito” ou “mobilidade do coração”. Dizem os Tratados  que o discípulo só progredirá, se ele puder desprender-se de toda a intenção e também de seu próprio eu. Não havendo “eu”, não há adversário, não haverá meta, não haverá vitória ou derrota, não haverá, portanto, sequer a própria Arte… Simplesmente, o movimento, a ação técnica acontece, “algo” faz acontecer, simplesmente porque é, porque se está ali… Num estado de completa fusão com a natureza das coisas.

 Num certo momento do caminho, deve-se, então, espiritualizar a prática, transcendendo a técnica… Como transcendê-la?! É simples, devemos  praticar diligentemente e, ao mesmo tempo, devemos praticar de maneira um tanto descompromissada… como se “treinássemos”, sem qualquer objetivo…Sem empenho específico na espiritualização da técnica ou propósito consciente. O método para se atingir a espiritualização da prática, ironicamente, é exatamente o mesmo: praticar diligentemente. A mudança deve ocorrer em nossa mentalidade, em nossa aspiração, em nosso estado interior.

 A cultura chinesa muitas vezes nos parece profundamente enigmática… Estamos acostumados a dissociar a teoria da prática e podemos logo pensar em métodos complexos para atingir estágios espirituais ou artísticos em nossa prática. Para os chineses e para as Artes Orientais em geral, volto a dizer, o caminho a percorrer é o mais óbvio: o caminho da dedicação e da prática diligente!

É sabido que o treino que visa apenas habilidade técnica tende a tornar-se obsoleto,  sem função em nossas vidas.

 Eugen Herrigel, em seu livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, descreve, mais ou menos assim, uma das poucas instruções verbais recebidas de seu mestre arqueiro: “Deve-se atingir o alvo sem fazer pontaria, como que esquecendo-se da  intenção de atingi-lo.Dessa maneira, a flecha atingirá o alvo simplesmente porque esta é a sua natureza …” Penso que é neste ponto que reside toda a sabedoria e objetivo último das Artes: Promover a experiência, a vivência do que é a ordem cósmica, do que é a harmonia e de como integrar-se e compreender a natureza das coisas:  a flecha do arqueiro  atinge o alvo sobretudo porque esta é a natureza da flecha – atingir o alvo. O arqueiro é mero instrumento que, num lapso de tempo, se integra à ordem das coisas.

  Outro exemplo bastante esclarecedor a respeito dos “estados da Arte” em nossas práticas, notadamente as ditas “Artes” Marciais – aqui em questão, é o livro de Gusty Herrigel – O Zen Na Arte Da Cerimônia das Flores.  A autora também descreve sua experiência: “A longa prática vai dando polimento aos hábitos, até que a  forma pura fale por meio da obra. Nas etapas avançadas da evolução, a originalidade se mostrará cada vez mais livre, tornando-se despojada e límpida, até fundir-se com a verdade pura, na unidade perfeita , que se expressa na essência da Arte .”

Este estado de coisas também pode ser comparado, ainda mais profundamente, à maneira de viver, como diz D. T. Suzuky : “Viver Bem inclui uma certa técnica, inclui escolhas e adaptações…O que é diferente da  Arte de Viver,  que engendra a compreensão do seu significado, a apreensão de seu mistério”…

Em verdade treina-se para que um dia toda a  técnica consciente, fruto do “esforço e dedicação”, possa ser abandonada. A todo momento, as Artes nos “guiam” para esse lugar.

O mestre teria a responsabilidade de fazer com que o aluno descubra a via de acesso a este caminho, que não inclui, todavia, somente o intelecto ou a vontade consciente.

Como podemos ver, esta questão é amplamente citada em toda a literatura Zen, mais especificamente naquela chamada de o “ Zen do guerreiro”, já que a classe Samurai encontrou no Zen uma fonte de nutrição e serenidade. Nas artes marciais japonesas, há o BuDo ou “ o caminho do guerreiro”: o conceito Do pode ser comparado ao de Tao e permeia todo o treinamento Zen, cuja experiência direta do estado meditativo é o objetivo e foco do treinamento, chamado de Mushin ou não-mente.

 No Taoísmo, esse estado chama-se Shen Ming. Como se a própria mutação, ou “a dança das dez mil coisas”, nos levasse naturalmente à grande diluição, ao silêncio, ao estado de ausência, para a fusão com o Tao, com o Princípio que rege todas as coisas.

Atingido este estado, há o que se conhece por “arte – sem arte”, ou “arte suprema”, estado em que não há “arte”, nem tampouco artista

Devemos, então, nos abrir para esta possibilidade, a partir de um propósito de constante permissão, para simplesmente deixar que nossa prática  “seja”!

 

Ana Cloe Marrelli / Grupo Art’Chi

                                                             Maio / 2004 – Ano do Macaco

 


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