a revista » Edição #3 » Não Ficção » Agostar* em Paris e em Washington

Não Ficção

Agostar* em Paris e em Washington

 

“Não encontrar o caminho numa cidade não quer dizer muito. Mas perder-se numa cidade, como nos perdemos numa floresta, exige toda uma prática”, escreveu o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Quando morava em Paris, perder-se em seus caminhos no mês de agosto exigia uma prática singular, pois a capital francesa adota contornos de cidade fantasma. Em determinadas horas do dia, se pode flanar em meio a grandes avenidas sem vislumbrar um carro sequer no horizonte. Errando por certos bairros, a impressão é a de que a cidade foi evacuada por alguma ameaça de ataque bacteriológico e só você não foi avisado. Padarias, bares, restaurantes, lojas, teatros cerram suas portas sem a menor culpa. Nas vitrines gradeadas até a calçada, os avisos de “período de férias anuais” parecem zombetear do veranista citadino, como se dissessem: “Azar o seu que ficou aqui para sofrer na canícula, pois nós estamos nos refrescando nas cristalinas águas mediterrânicas”.

Num verão, permaneci solitário no meu prédio, nem a zeladora portuguesa ficou para me fazer companhia. Claro, em caso de solitude extrema, sempre haverá turistas a quem prestar informações diante da pirâmide do museu do Louvre ou em qualquer metro quadrado da avenida de Champs Elysées. Mas, mesmo os visitantes do verão passam raspando pela cidade, dão uma piscadela para a Mona Lisa, uma subidinha na torre Eiffel, compram algum perfume na Sephora e logo partem rumo a destinos menos desérticos, ao encontro das hordas praieiras.

 

 

Mas devo admitir que era um veranista convicto de Paris. Não há nunca fila nos locais que permanecem abertos, nem hora do rush, os garçons são menos estressados e as mulheres mais álacres e despidas, há o cinema ao ar livre no Parc de La Villette e as quase 400 salas de projeção sempre à disposição, os terraços dos cafés, os piqueniques noturnos no canal Saint-Martin ou a lua cheia na Pont des Arts. Bem, é verdade que por vezes o termômetro excede e a cerveja nunca é suficientemente gelada como nos nossos saudosos trópicos, mas, enfim, não se pode exigir tudo.

O escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) notou certa vez que Paris era a paisagem interior de uma grande parte da literatura mundial, de muitos livros que todos lemos e que contaram muito em nossas vidas. Antes de ser uma cidade do mundo real, Paris, para ele, foi uma cidade imaginada por meio da  leitura. No seu exílio parisiense, escreveu: “Eu poderia dizer que Paris é uma gigantesca obra de consulta. Uma cidade que se consulta como uma enciclopédia: desde a primeira página, ela fornece toda uma série de informações, de uma riqueza inigualável a qualquer outra cidade”.

Mas para agosto em Paris, talvez a leitura mais apropriada seja a do filósofo romeno E. M. Cioran. Emil Michel Cioran nasceu em 1911, na Transilvânia. Em 1947 se instalou em Paris e, para se liberar de seu passado, renunciou à língua materna e passou a escrever somente em francês. Morreu na capital francesa em 21 de junho de 1995, aos 84 anos. A editora Gallimard lançou. As 434 páginas de Solitude et destin – uma antologia de seus escritos de juventude, lançada pela editora Gallimard -, antecipam o provocador pensador, mais tarde definido como esteta da desesperança, niilista desencantado, arauto da melancolia ou pessimista incondicional. Aos seus 20 anos, já se notam as raízes de seu estilo corrosivo e percuciente; o gosto pelo paradoxo, a ironia, os silogismos e aforismos; o sombrio romantismo e o ódio às ideologias; seu anticristianismo feroz, a afirmação da tragédia humana e a descrença na História.

 

“Quando nos damos conta de que tudo é vão, mas que, absurdamente, continuamos a amar a vida, é preciso se decidir a realizar um gesto, uma ação. Pois, é melhor se destruir no frenesi do que na neutralidade. É quase impossível viver de forma neutra, de considerar como um espectador esta terra maldita e adorada”, escreveu o jovem Cioran, aos 24 anos. “Não compreendo como pode haver neste mundo pessoas indiferentes, almas que não se atormentam, corações que não queimam, olhos que não choram. Declaremos falsas todas as verdades que não nos fazem mal e falsos todos os princípios que não nos inflamam. Que nosso verbo lance raios e que nossos argumentos sejam flamas!”, disparava, em plena incandescência juvenil.

No fundo, todo problema da cultura e do espírito é o do homem e de seu destino, constata o jovem pensador, aos 21 anos. O sofrimento nos ajuda a compreender o mundo mais do que o entusiasmo, acrescentava, concluindo em embrionária lógica ciorana: “Os homens que meditam sobre a morte não podem ser que resignados; aqueles que meditam sobre a vida não podem ser que céticos”.  

Para o filósofo, não há outra ética senão a do sacrifício. Com ironia refinada, já dizia, aos 22 anos: “Indigno-me com a idéia de que ninguém até agora morreu de alegria. Mas, talvez, seja preciso ter sofrido muito para morrer de alegria”. O sofrimento é a escola da tolerância, defendia, ao mesmo tempo em que atacava o moralismo excessivo das religiões, responsáveis “pela destruição da espontaneidade irracional e do elã indefinido da vida”.

Mais tarde, passados seus 70 anos, confessou: “Sempre vivi em contradições e nunca sofri por isto. Sempre encarei as contradições como elas vinham, tanto na minha vida privada como teórica”. Cioran admitia não somente ter aceito o caráter insolúvel das coisas, mas, inclusive, encontrado uma certa “voluptuosidade do insolúvel”.

Aos 26 anos, aquele cuja única ambição intelectual era a de se tornar um “pessimista pensador de boulevard”, afirmava: “Há na vida algo da histeria de uma primavera terminal. Um caixão suspenso nas estrelas, uma inocência em putrefação, um vício floral. Essa mistura de cemitério e de paraíso…”. Do puro Cioran em pleno agostar parisiense.

 

 

Este ano, vivenciei meu primeiro agostar em Washington. Assustaram-me tanto com um verão de derreter a alma na capital americana, mas achei o calor bastante suportável, e diria mesmo, no geral, agradável – mesmo que o Estado vizinho de Maryland tenha registrado um número recorde de vítimas causado pelas altas temperaturas, acima dos 90° F (equivalente a 32°C).

Apesar das férias presidenciais e do recesso do Congresso, as ruas não me pareceram tão desabitadas como os verões parisienses. No agosto de Washington, foi o escritor Mark Twain (1835-1910) quem surgiu das entranhas da cidade. Neste ano de data centenária, a editora da Universidade da Califórnia publicará em novembro, pela primeira vez, a edição de sua autobiografia do jeito que ele mesmo projetou e desejava, sem as alterações, cortes e colagens promovidas por herdeiros e outros editores nas publicações saídas do forno após a sua morte.

Nesses tempos em que a Justiça eleitoral brasileira tardou a desfazer sua carranca face à bem-vinda sátira de nossos humoristas, nunca é demais lembrar Mark Twain, reconhecido como um dos maiores escritores dos EUA e de inigualável verve humorística. É, aliás, do autor de “As Aventuras de Huckleberry Finn”, considerada obra-prima da literatura americana, e do satírico texto “King Leopold’s Soliloquy – a defense of his Congo rule” (Solilóquio do rei Leopoldo — defesa do seu regime no Congo), a frase de rara ironia e humor reflexivos: “Não tenho preconceitos de cor, nem preconceitos de classe, nem preconceitos de credo. Só o que me interessa saber é que um homem é um ser humano, e isso basta para mim. Ele não pode ser pior que isso”.

Mas mesmo os americanos podem demonstrar um certo mau humor. “Huckleberry Finn” sofre uma constante censura imposta por bibliotecas públicas e escolas americanas. Considerado por muitos nos EUA como racista e imoral, o livro descreve a sociedade americana em suas contradições pouco politicamente corretas, ingredientes na construção de uma sociedade livre, e mostra os dilemas morais da formação do Huck sem clichês e sem dogmas.

“Mais ou menos uma vez por ano algumas devotas bibliotecas públicas banem Huck Finn das suas estantes para crianças, e sempre com a mesma justificativa – que Huck, o abandonado e ignorante filho de um bêbado da cidade, é dado a mentir quando em apuros e pressionado, e por isso é um mau exemplo para os jovens e estraga os seus valores morais”, conta Twain em sua autobiografia, num relato de final engraçado, que espera-se o leitor brasileiro terá a oportunidade de acesso numa futura edição nacional.

Mas setembro está aí. É o novo ano que começa para os americanos, com leituras outonais e invernais por vir, eleições nos EUA e debates sobre o que é ou não mentira, como nos tempos de Huck. Mas, afinal, como disse Mark Twain: “Nada é feito em vão. Mas a mosca chegou perto disso”.   

* agostar: murchar com o calor, por falta de umidade; estiolar. (Dicionário Caldas Aulete, ed Delta, RJ, 1958, pág 158.

Fernando Eichenberg

 

Fernando Eichenberg é escritor e jornalista. Mora em Paris e está preparando um livro sobre essa cidade de tantas eternidades que dará muito o que falar. A conferir em breve.


Copyright 2012 © Todos os direitos reservados à Íbis Literatura & Arte