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Ficção

Späten Rosen – Theodor Storm

 

 

 

Theodor Storm (1817-1888) foi, segundo Georg Lukács, “o último representante da grande tradição literária burguesa na Alemanha”.  Filho das chapadas do Mar do Norte, cresceu em pleno campo de batalha com a natureza, entre o mar ameaçador e as pastagens nuas. Escreveu novelas em que revela uma profunda sensibilidade ao apresentar o conflito humano na vida cotidiana da gente simples. Há pouca ação em suas histórias, e um crescente desalento diante da fragilidade da vida impregna a narrativa de um lirismo melancólico e resignado. Figura convencional na literatura germânica, ele é celebrado por expressar a alma alemã, embora vários críticos modernos denunciem em seus escritos uma sentimentalidade que tende ao kitsch.

São informações que me chegaram pelos compêndios de literatura alemã. Na realidade, tomei conhecimento de Theodor Storm e sua arte, quando no final dos anos 80 li uma novela sua que me causou grande impacto. Späte Rosen – Rosas Tardias. Nela encontrei o tom compassivo de quem se debruça sobre vidas fracassadas, nesse caso sobre um amor quase perfeito, malogrado apenas para as antenas demasiado sensíveis do apaixonado. Sua frustração provém do fluxo do tempo que penetra nos sentimentos humanos, trazendo inexoravelmente mudanças e melancolia. Ao amor sujeito às intempéries dos descampados lamacentos da região vizinha ao Mar do Norte,  o autor contrapõe o êxtase do amor lendário de Tristão e Isolda, nascido de uma poção mágica. O tom melancólico é penetrante, e o leitor não consegue deixar de admirar a maestria com que o autor o instaura num cenário em tons pastéis, estável e tranquilo, de circunstâncias favoráveis.

 

Minha alma é plácida
como recanto de jardim parado.
Ali não se escutam
as patas dos passarinhos
nem as folhas ao vento.
A palmeira tem lugar asseado
perto da água que corre
e o mundo como que encontra
um centro esquecido.

Entanto
aaaaaaaaestremece
aaaaaaaaa luz
aaaaaaaaneste plácido coração.

 

 

Rosa por Leonardo Da Vinci

 

 

Späte Rosen                                 Rosas Tardias

 

Eu me encontrava perto de uma cidade do norte da Alemanha na casa de campo de um amigo. Tínhamos passado juntos uma longa parte da juventude, até sermos separados quase ao final desse período pela diversidade de nossos ofícios. Durante os anos 20, quando não tivemos nenhum contato, ele se tornou chefe de uma importante casa comercial; quanto a mim, as circunstâncias haviam me empurrado para o exterior e ali me mantido para sempre. Agora eu estava finalmente de volta à terra natal.

A dona da casa me era desconhecida até então. – Já não era jovem, mas em seus movimentos ainda havia a leveza da juventude, e seus olhos mirando calmos eram de uma luminosidade infantil. Reinava entre essas duas pessoas, como eu logo tive oportunidade de notar, um respeito mútuo quase de noivos. Quando ela vestida com roupas frescas entrava na sala para o café da manhã, seus olhos buscavam primeiro os do marido para lhes fazer a pergunta silenciosa, se ela assim lhe agradava. Então desaparecia por um momento uma ruga profunda na testa do companheiro, e  ele apertava a mão que ela lhe estendia, como se só então lhe fosse oferecida. Às vezes, quando ele estava sentado à sua escrivaninha no gabinete de trabalho, ela chegava da sala de estar ou do jardim de inverno que ficava defronte e sentava-se calada ao lado dele; ou entrava invisível para colocar-se atrás da sua cadeira e, quieta, punha a mão sobre seu ombro, como se precisasse lhe assegurar que ela estava por perto, que ela ali se achava ao seu dispor.

Era uma tarde clara de outubro. Meu amigo acabara de chegar da cidade depois do trabalho findo, e estávamos sentados conversando sobre os velhos tempos na ampla varanda na frente da casa, de onde se descortinava o jardim mais abaixo e os prados verdes rodeando as águas escuras da baía do Mar Báltico, e ainda mais além, elevando-se suavemente, os bosques de faias cuja folhagem já começava a se colorir. Tudo isso, e no alto o céu azul profundo do outono, estava como que cercado de bastidores escuros, formados pelos altos choupos que havia nos dois lados da varanda. – A mulher de meu amigo, com a filhinha caçula pela mão, tinha entrado pela porta aberta do jardim de inverno e passado por nós com um sorriso quieto; ela não queria se intrometer em nosso mundo de sombras, do qual não fazia parte. Agora estava com a criança nos braços na beira da varanda e seguia com a vista um vapor que passava, cujo ruído surdo das rodas já tinha quebrado o silêncio da paisagem por algum tempo. Seu vulto alto e o contorno de sua nobre cabeça distinguiam-se nitidamente contra o céu escuro.

Nossos olhos devem tê-la seguido sem querer, pois a conversa emudeceu. Sem pensar estendi a mão para as uvas que estavam diante de nós numa taça de cristal sobre a mesa de mármore.

“Assim tinha de acontecer”, disse eu por fim, quando retomei mais uma vez o assunto de nossa conversa, “eu, que negociava até castanhas e caroços de cerejas, me tornei um homem da ciência; e você… onde ficaram as tragédias que escrevia como aluno do sétimo ano do liceu?”

“A contabilidade italiana”, retrucou ele sorrindo, “é um remédio corrosivo contra a poesia; mesmo assim ainda é firme minha decisão de tomá-lo, para que produza seu efeito.”

Ele me fitou com seus olhos escuros, que ainda traíam o rasgo ideal que o distinguia na juventude. “Deve ter te custado muito esforço”, disse eu.

“Esforço?” repetiu ele lentamente…”É talvez o que menos me custou.” E com isso lançou um olhar para a mulher no outro lado, com uma tal intensidade de carinho, com a alegria de ela lhe pertencer, como se a tivesse conquistado há bem pouco tempo.

Sem querer tive de pensar num pequeno incidente do primeira dia da minha estada na casa. Naquele momento, ao entrar no gabinete de meu amigo, meu primeiro olhar caiu sobre o retrato de uma bela jovem, que estava pendurado ao lado de sua escrivaninha. Era pintado a óleo, em cores claras e luminosas, e de uma alegria e frescor de vida verdadeiramente luzentes. À minha pergunta sobre quem o quadro representava, respondeu Rudolf: “É um retrato da minha mulher. Quer dizer”, acrescentou, “da jovem que mais tarde se tornou minha noiva e depois minha mulher. Foi pintado para os avós e retornou às mãos dela por herança.” Ao dizer essas palavras, ele também tinha se colocado diante do quadro, enquanto eu em pensamento comparava os traços juvenis com os da mulher ainda fugazmente entrevista. – Quando depois de algum tempo me virei para ele, seu rosto tinha a expressão inequívoca de um afeto quase doloroso, que eu, durante minha estada prolongada, sabia cada vez menos esclarecer. Pois esta jovem se tornara sua; ela vivia e – assim parecia – o fazia feliz ainda hoje.

Por isso, quando naquele instante a bela figura sossegada à nossa frente desceu do terraço para o jardim, e porque eu não temia mexer numa ferida ainda aberta, não pude mais calar minha observação anterior. “O que foi, Rudolf?” disse eu, e peguei a mão de meu amigo de juventude., “Conta-me, se puderes!”

Ele olhou mais uma vez para o jardim abaixo, atrás do qual a neblina noturna já começava a se elevar dos prados; depois afastou o cabelo liso da testa e disse com o tom afetuoso de sua voz que me era outrora tão familiar: “Não é nada errado, nem tampouco uma desgraça; já posso te dizer… se é que existe alguma coisa para dizer… Ficaste sabendo no seu tempo, pelas minhas cartas, que conheci minha mulher há quase quinze anos na casa de meus pais. Ela visitava minha irmã, com quem tinha se encontrado nos banhos em nossa Ilha no Lago Oeste. Eu vivia então na mais cansativa e extenuante correria de trabalho. Um sócio, cujos recursos garantiram parte da construção ainda inacabada do edifício da casa comercial, abandonou de repente o negócio, e o que faltava teve de ser executado de outra maneira e num prazo mais curto, Além disso, surgiu a obra da Sociedade das Viagens de Navio a Vapor, para a qual eu já tinha projetos à época, mas que se deparava sempre com novos obstáculos interpostos pelo ciúme da cidade nossa vizinha. Depois do dia de trabalho e de muita agitação, eu precisava de uma simpatia encorajadora, um refúgio em que meu coração pudesse descansar. Encontrei ambos na jovem amiga de minha irmã. À noite no jardim de meus pais, caminhando para cima e para baixo entre as sebes de alfeneiros, meus planos e minhas preocupações eram o objeto de nossas conversas; ela tinha ouvidos atentos e compreensivos para tudo. A simplicidade e a segurança de seu ser, que ainda há pouco admiraste no primeiro dia de tua estada, já existia então. Tampouco lhe era alheia a malícia da juventude. Lembro-me de uma noite, quando me sentei com as duas jovens à velha mesa de jardim no caramanchão. Naquele dia tinha me acontecido toda sorte de reveses. Num acesso momentâneo de desânimo, exclamei: “Enfim, está acima das minhas forças!” Ela não respondeu logo, mas calada apoiou o queixo na mão e me fitou por algum tempo com olhos como que zangados e espantados. Depois virou a cabeça para minha irmã e disse sorrindo: “Olha, nem ele próprio acredita mais nisso!” E ela tinha razão. Já na semana seguinte, eu sentia que as forças me eram suficientes. Por fim, quase nem é preciso dizer que ela colocou sua mão na minha, e eu a segurei. Outros me falavam da sua beleza; meu olhar a fitava, mas eu nunca pensava nisso, nem lhe dei atenção mais tarde. Assim ela se tornou minha mulher, uma companheira da vida  que os dias me traziam sempre me colocando diante de novas tarefas para resolver. Vais te lembrar – pois eu te escrevia outrora mais amiúde – como desde então se desencadeou um rebuliço após o outro. Para mim, era quase como se tudo acontecesse pelas suas mãos, pois no seu lugar ela sabia fazer tudo no tempo certo; ela compreendia a linguagem calada das coisas, exatamente como  a Maria de Ouro do conto de fadas, que escutou, ao passar pelos prados, gritos vindos das árvores: Sacuda-nos, nós maçãs estamos todas maduras! – Depois de alguns anos, consegui comprar esta casa e arrumá-la de acordo com nossos desejos simples. Mas com a fortuna, que me favorecia, aumentaram também meus negócios; eu não os tinha, eles é que me possuíam. Eu estava preso numa rede de combinações, em que uma sempre se revezava com outra. Todas as forças de meu espírito estavam aplicadas nesse único serviço, que as absorvia dia após dia.”

Meu amigo se deteve; sua filha mais velha de doze anos saíra da casa vindo até nós e perguntava pela mãe. Ele a tomou em seu braço e prestou atenção aos sons que vinham do jardim abaixo. Lá da estufa, que com sua cumeeira branca se erguia dentre os arbustos ao lado do muro do jardim, escutava-se a risada da pequena e a intervalos, como que sossegando, a voz da mãe. “Vai, Jenni!” disse ele sorrindo, “dois grandes figos maduros; vocês podem colhê-los!” – Ela fez que sim com a cabeça e se mandou escada abaixo, passando pela relva que se espalhava por baixo da varanda, e desaparecendo entre os arbustos ao lado.

O pai a seguiu com os olhos por um minuto, depois continuou a falar! “Foi na primavera, numa tarde de domingo; a menina magra, que acabamos de mandar ao encontro da mãe, mal tinha seis meses na época. A sala que abre para o jardim, aqui na varanda, acabara de ser pintada, o sol da primavera iluminava o piso, e pelas portas de batente duplo abertas penetrava o aroma do brotar das folhas e botões. Sentado no sofá, eu tinha pegado um daqueles livros em que há muito tempo não pusera os olhos; não sei se  pensei nos teus e em nossos estudos outrora tão aplicados do alemão antigo, ou se quis apenas me certificar de que havia aqui fora um outro mundo para mim, diferente daquele lá na cidade entre as paredes escuras de meu escritório. Era Tristan do Mestre Gottfried, que eu tinha aberto. A uma certa distância diante de mim, sentada perto da janela, minha mulher se ocupava de um trabalho feminino; no quarto ao lado dormia a criança em seu berço. Tudo estava quieto; nada me impedia de começar a viagem pelo mar com Tristan e Isolde.

“As quilhas deslizam; na solitária hora do meio-dia, Isolde está sentada no convés. O vento de verão sopra em seus cabelos dourados; mas as lágrimas transbordam de seus olhos, pelas saudades de sua terra natal, pelo medo da terra estrangeira, onde ela deve se tornar esposa do rei grisalho. Tristan quer consolá-la, mas ela o repele; ela o odeia, porque ele matou seu Ohm Morolt. O ar se torna abafado, ela tem sede. Nos recintos femininos do navio, mal guardada, está a poção do amor, que deve acender no coração de Isolde a paixão pelo noivo velho. Uma moça pequena grita: “Vejam, aqui está o vinho!” e Tristan inadvertidamente oferece a taça à rainha.

 “Ela bebeu hesitante, sabia-lhe muito forte,
E deu a ele; assim também ele bebeu.”

“E então começa a magia do antigo poeta; vivemos com os dois amantes a dúvida e o desejo ardente de seus corações, como eles não querem e mesmo assim devem, como eles ainda acreditam ser livres, e mesmo assim temem vir a sê-lo. Irresistíveis fluem os doces versos; com sua maneira secretamente insistente, seduzem o coração. Eu via diante de mim o belo e jovem par, como eles juntos se apoiavam na balaustrada do navio. Miravam além sobre a água, para não ver como suas mãos repousavam confiadas uma na outra; e assim embriagados um no outro, falavam, como se fossem palavras fortuitamente desconhecidas, do mar e da névoa, do ar e do oceano…

“O aroma da taça, que o antigo mestre sabe aproximar do leitor, elevou-se e começou a exercer seu feitiço também em mim. A poesia despertou em meu ser algo que a vida até então deixara adormecido; eu não tinha conhecido este outro mundo, que agora impunha a Tristan e Isolde suas próprias leis inexoráveis; por meio dele o próprio poeta, como diz no início de sua obra, vai destruir e fazer crescer.

“Levantei os olhos do livro para minha mulher sentada diante de mim. Outrora, meu amigo, o perfume da juventude ainda permanecia em seu rosto. Pela janela caíam sobre sua testa as sombras das folhas novas dos choupos, balançando-se suavemente para lá e para cá, enquanto ela mantinha os olhos abaixados para seu trabalho. – Ela não era tão bela como ‘a Isot, isca do amor?’ Ou a taça do amor não era um simples símbolo, e a poção secreta se fazia realmente necessária para produzir esta sublime loucura?

“Nesse instante acordou a criança ali ao lado. A jovem mãe se levantou e largou seu trabalho; mas, enquanto caminhava pela sala, ela me fitou com seus belos olhos serenos e me fez um sinal para que a seguisse. – Tive de sorrir. “O que desejas?” disse eu a meia voz para mim mesmo, e fechei o antigo livro mágico. Logo ela estava de volta e me trazia a criança, que arregalou os grandes olhos sonolentos para o claro sol da primavera. –

“Continuou tudo calmo entre nós, como sempre fora. Ano após ano se passaram, e nesse meio tempo murchou aos poucos a bela jovem ao meu lado. Eu não percebia; não tinha olhos para ver como os traços de sua amada face perdiam imperceptivelmente o contorno suave da juventude, nem como se apagava o brilho sedoso de seus cabelos loiros; apenas a percepção de seu ser imaterial me era cada vez mais clara; eu sentia nitidamente como seu espírito se tornava cada vez mais íntegro, e como eu a venerava cada vez mais.

“Há três anos ainda nos nasceu uma segunda filha – escuta! Elas estão na estufa; como ela discute com a irmã! – –

“Nesse meio tempo o meu trabalho se tornara aos poucos mais fácil; os negócios seguiam seu caminho disciplinado, de modo que eu podia deixar grande parte nas mãos de outras pessoas. Por fim, minha vida ganhou de novo espaço para outras coisas. Como o sustento necessário aparecia sem pressão, o impulso humano inato para a beleza se fez novamente sentir. Dei ao jardim sua feição atual e deixei que lá embaixo se formasse o roseiral – já escutaste que minha mulher ama as rosas acima de todas as outras flores. – Em anos posteriores, construiu-se atrás do roseiral o espaçoso pavilhão. O mosaico de madeira de seu piso, as cadeiras e todo o resto dos acessórios, deixei que artesãos talentosos os produzissem segundo os desenhos de um arquiteto meu amigo; as altas janelas foram cobertas até a metade com cortinas de seda cinza clara, o que resultou numa luz esmaecida agradável. Aqui nesta quietude do jardim li pela primeira vez num contexto imperturbado os antigos cantos eternos, a Odisseia – os Nibelungos; eu lia em voz alta; ela sentava-se ao meu lado e escutava, e suas mãos diligentes sem querer deixavam o trabalho repousar. Tampouco foi esquecida a música feita em casa; a vida não me deixara tempo para exercitar uma arte, mas minha mulher sabia cantar, e tinha desde sempre cantado com gosto na minha presença e na das crianças. Então apareceram outros que faziam o mesmo; assim imperceptivelmente formou-se um pequeno círculo de participantes com os mesmos intuitos.

“Em junho do ano passado aproximou-se meu aniversário de quarenta anos. – O sol de manhã me acordou cedo, tudo o mais dormia. Eu me vesti e andei pela casa  silenciosa até a varanda. A relva embaixo da varanda ainda estava coberta de sombras profundas; apenas os cimos das árvores e a saliência dourada no topo da estufa brilhavam ao sol da manhã; além sobre a água ainda permanecia a névoa branca, dentre a qual a ponta oscilante de um mastro se deixava ver apenas de vez em quando. Desci devagar para o jardim, tomado pelo sentimento do amanhecer doce e intocado; pisava sem ruído, como se temesse acordar o dia.

“Na noite anterior, eu me envolvera mais uma vez com o Tristan de Mestre Gottfried,  e tinha mergulhado de corpo e alma no livro antigo. Eram as últimas páginas que esta graciosa mão de poeta tinha escrito.

“A poção do amor tinha exercido seu feitiço. A bela rainha Isolde e Tristan, o sobrinho do rei, não podiam mais se separar um do outro. O velho e paciente rei tinha finalmente desterrado os culpados; mas o poeta realiza o desejo de seus corações palpitantes e conduz seus queridos a um lugar ermo bem longe dos homens. Nenhum abelhudo os seguiu; o sol brilha, as ervas exalam seu aroma; na enorme solidão apenas ela e ele; em volta deles a floresta, e invisível nos ares o canto contínuo dos pássaros. Eles caminham pelos prados ao clarão da tarde, até onde soa a fresca fonte; ali se sentam de novo embaixo da tília e voltam os olhos para a gruta na rocha, onde descansaram juntos à noite. Cavalgam ao amanhecer pela charneca úmida de orvalho atrás da caça, a besta empunhada, os cavalos avançando juntos. Os cabelos dourados de Isote flutuando nos ombros de Tristan.

“No mundo quieto da manhã elevam-se as imagens da poesia como sonhos em mim. – Nesse ínterim avançara o tempo; o sol brilhava quente sobre os caminhos do jardim, as folhas gotejavam, a fragrância das flores se difundia, e nos ares começava o delicado ruído do mundo dos insetos. Eu sentia a plenitude da natureza, e uma sensação de juventude me acometeu, como se o segredo da vida ainda permanecesse fechado diante de mim. Apressei meu passo, pisei com mais firmeza; sem querer estendi o braço e quebrei um ramo florido do arbusto que estava ao lado sobre a relva. – Lá embaixo diante do pavilhão ainda estavam as cadeiras de jardim, como as tínhamos deixado à noite; nas persianas fechadas escorria o orvalho. Peguei a chave no seu esconderijo embaixo do degrau e escancarei as portas para que o ar da manhã pudesse penetrar. Então retornei, sacudi ao passar a porta fechada da estufa, e depois de algum tempo, pela sala que abre para o jardim, entrei no quarto da minha mulher. Ainda nada se movia na casa; a quietude da manhã continuava em todos os cantos. Mas um perfume de rosas mais forte, mais fresco parecia trair a proximidade de uma mesa de aniversário. – Quando abri a porta de meu gabinete, meus olhos caíram sobre uma pintura a óleo na forma oval de um medalhão, que estava encostada na minha escrivaninha. Era o perfil em tamanho natural da cabeça de uma jovem; sobre a moldura pesada, que o enquadrava, estava uma guirlanda de rosas centifólias vermelhas desabrochadas.—A cabeça estava um pouco curvada na nuca, o cabelo loiro parecia ter sido puxado para trás ainda agora por uma mão bem leve; nos lábios meio abertos havia a petulância deliciosa da juventude,

“Parei sem fôlego e cravei os olhos no belo rosto jovem; para mim, era como se eu precisasse não trair minha proximidade, como se pudesse por uma respiração descuidada dissipar tudo em aroma. – Devia ser um mundo impregnado pela luz do sol da primavera, para o qual se voltavam estes olhos jovens e risonhos. Inclinei involuntariamente a cabeça. Ela… ela teria sido esta jovem; com ela também eu teria fugido para aquela solidão, pela qual todo coração humano um dia anseia…”

Rudolf pegou minha mão.

“E por que ela não o foi? – Conheces a pintura. O que eu tinha visto não era a fantasia de um pintor, nem a rainha loira Isote, que talvez nunca tenha existido. Este rosto diante de mim pertencia à vida, à minha própria vida; assim fora outrora aquela que há muitos anos colocou sua mão na minha, que ainda vivia ao meu lado.

“Levantei de novo os olhos para a pintura, ela não me largava; a sede de beleza me dominava por inteiro. Ocorreu-me o início de uma velha canção: ‘Oh juventude, oh belo tempo das rosas!’ – ela a cantara várias vezes outrora na casa de meus pais. Estendi o braço para a pintura, como se ela devesse retornar assim mais uma vez, como se esta doce imagem juvenil ainda não tivesse caído para sempre no esquecimento do passado.

“Então de repente, enquanto meu coração era dilacerado pelo arrependimento e por uma saudade inútil, apoderou-se de mim um pensamento de felicidade indiscutível, inexprimível. Ela, que assim fora outrora; ela própria ainda vivia; estava bem próxima, eu podia agora mesmo, neste instante, ainda estar ao seu lado.

“Deixei o quarto, fui à sua procura; mas ela não estava mais na casa. Quando desci para o jardim, ela veio ao meu encontro subindo pela varanda. Ela me olhou sorrindo, como se quisesse ler em meus olhos a alegria pelos presentes de aniversário. Mas não lhe dei tempo, agarrei calado a sua mão e a conduzi para o jardim mais abaixo. – E como ela no seu roupão branco, com sua maneira de menina, caminhava ao meu lado, com seus olhos serenos me perguntando e me olhando espantados, e como sua mão tão macia e entregue se deixava estar na minha, não pude mais esperar e me lancei por terra diante dela em adoração; pois toda a paixão de minha vida estava desperta e precipitava-se ao encontro dela, impetuosa e irresistível.”

Rudolf calou-se por um instante; depois disse em voz baixa, enquanto contemplava diante de si a luz vermelha do crepúsculo, que já se mostrava no céu com seu último brilho: ‘Assim eu também bebi da taça do amor, um grande e profundo gole; tarde demais… mas ainda não tarde demais!”

Flores e Rosa Da Vinci

Ficamos sentados em silêncio um ao lado do outro; aos poucos foi caindo a escuridão. No jardim tudo estava quieto, mas no pavilhão lá embaixo as luzes já estavam acesas e brilhavam através dos arbustos. Então um acorde foi tocado, e, cantadas por uma voz grave de contralto, soaram as palavras através da noite:

Oh juventude, oh belo tempo das rosas!

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Theodor Storm. Drei Novellen. Berlim, Verlag von Gebrüder Baetel, 1911.

Tradução de Rosaura Eichenberg

 


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