a revista » Edição #3 » Poesia » Sobre Robert Frost

Poesia

Sobre Robert Frost

 

Esta reflexão sobre a poesia de Robert Frost foi escrita pelo também poeta Archibald McLeish para a Revista National Geographic. O artigo saiu no número de abril de 1976, com o título “Robert Frost and New England”, como introdução para “Look of a Land Beloved”, um ensaio fotográfico da Nova Inglaterra realizado por Dewitt Jones.

Vermont

Há mais de um modo de se pintar o retrato de um homem. Num sentido não de todo fantástico, as fotos da Nova Inglaterra e os poemas de Frost compõem um retrato de Robert Frost, ou pelo menos uma perspectiva a partir da qual esse retrato poderia ser pintado. Pois o essencial em Frost foi sua relação com a Nova Inglaterra. E essa relação, como espero mostrar, não era a que comumente supomos. Era antes o que os poemas de Frost, se lidos corretamente, confessam.

A situação de Frost é curiosa. Morto há doze anos, ele permanece uma espécie de enigma para seus leitores e até para o biógrafo que ele próprio escolheu com o intuito de se explicar à posteridade. Não que haja dúvida quanto à realização de Frost. Não há nenhuma dúvida a respeito de sua realização. Foi um poeta não só de seu tempo, mas de sua língua: um dos raros que merecem esse epíteto. Foi também um homem de letras respeitado, um dos mais respeitados de sua geração neste país. Um conferencista visto, ouvido e escutado de uma ponta à outra deste continente. Uma figura pública, um símbolo americano, que, como tal, compareceu à posse de um presidente. Seus manuscritos, autógrafos e lembranças são preservados nas bibliotecas mais ilustres. Tinha e tem leitores por todo o mundo. Milhares de pessoas sabem de cor muitos de seus poemas, que não param de ser recitados.

Road in Vermont

Mas quem é o falante nesses poemas continua uma interrogação, não só para os intelectuais e acadêmicos, que vivem questionando o passado, mas para as crianças nas escolas que, numa tenra idade, recebem poemas de Frost como leitura, para os jovens que os leem por vontade própria, e até para os velhos no meio de seus livros. “O que ele quer dizer? pergunta a criança, “Quem diria uma coisa dessas? pergunta a moça, “Não sei”, diz o velho, “Não o entendo realmente”.

As respostas nem sempre são fáceis, especialmente se você parte da suposição, como a maioria de nós fazemos, de que já as conhece de antemão. Quem é o falante nestes poemas? Um ianque, você diria. Que língua ele fala? Linguagem ianque. Frost não é citado na Enciclopédia Britânica como o “poeta da Nova Inglaterra”? Não morou e cuidou de sua fazenda em Derry, New Hampshire? Não escreveu “North of Boston”? É claro que sim.

 

Mas o problema é que, se você parte da suposição de que Frost era um poeta ianque, vai esperar que ele escreva como um ianque (o que ele freqüentemente, mas nem sempre, faz), e vai querer que seus poemas sejam poemas da Nova Inglaterra, não apenas da paisagem da Nova Inglaterra, mas da mentalidade da Nova Inglaterra, o que talvez não sejam de modo algum. É aí, nesse ponto, que você se depara com as perguntas das crianças, com o embaraço ocasional em aulas nas universidade, e com o transtorno de ilustres eruditos que, depois de usarem poetas da Nova Inglaterra, antecessores de Frost, como chaves para a compreensão de sua obra, acabam tentando explicar por que as chaves não funcionam.

The New England fall colors of Maine – https://www.jeff-foliage.com/

Tome-se, por exemplo, o famoso tom irônico presente em toda a obra de Frost. Seus poemas, até os primeiros poemas que são dados como leitura às crianças, ressoam com ironia. Claro que a ironia é um artifício ianque comum. Mas será a ironia de Frost ironia ianque? Experimente o fio com o seu polegar. A mente ianque é irônica no antigo sentido grego: “dissimula” afirmando mais ou menos (em geral, menos) do que deseja dizer, e há um riso na natureza das palavras para avisar o leitor. A ironia de Frost é outra coisa. É perturbadora nas suas implicações – até trágica – e pode ser selvagem. (Releiam “Provide, Provide”). A diferença não está no humor ou na falta dele: Frost tem humor para sete poetas. A diferença está na própria ironia, no modo como zomba das coisas. E no tom que confere à voz, no sentido que nos transmite a respeito do falante.

O que significa que as crianças têm razão. Há, na verdade, uma espécie de contradição em certos poemas de Frost, se você os lê a partir da suposição de que são poemas ianques. Mas isso não quer dizer que a dificuldade esteja nos poemas. É a suposição que precisa ser reconsiderada. E não vejo melhor maneira de reconsiderá-la que olhar demorada e atentamente para fotografias da Nova Inglaterra, com poemas ou fragmentos de poemas de Frost na mente enquanto você as contempla. As palavras surgem daquele campo, desta pastagem, daquelas árvores distantes, ou há uma relação diferente entre o poema e a região? É o sentimento, o sentido, o caráter de um canto do continente que fala nestes versos? Ou não será o contrário?  Não será o falante o homem que vê essa região, o homem que a ama, que a usa e emprega para seus objetivos – mas que nos fala unicamente em seu próprio nome?

Para mim, não há dúvida de que fala um ser individual e único, um homem singular, um homem excepcionalmente singular. Acho um erro procurar na obra de Frost a mentalidade da Nova Inglaterra ou o seu sentimento. A relação de Frost com a Nova Inglaterra não foi a de um filho nativo, que pode não dar valor à sua terra natal, mas a do estranho que se apaixona por uma região e faz (literalmente “faz”) a sua vida nela.

Nascido e criado na Califórnia, Frost sabia disso tão bem quanto nós. Um de seus mais famosos poemas fala precisamente dessa escolha. A estrada “menos viajada” em “The Road Not Taken” não é, como os professores às vezes dizem, a arte da poesia. Não há estrada mais viajada que a arte da poesia. A estrada “menos viajada” é o “caminho para” a arte da poesia – o caminho que Frost escolheu com a idade de 26 anos, quando se mudou para a Nova Inglaterra, a Nova Inglaterra real, a região da Nova Inglaterra, a fim de tentar conseguir o sustento, para si e para a sua família, numa pequena fazenda em New Hampshire, enquanto lutava para tornar-se um mestre naquela arte.

 

“I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I –
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.

 

Vou estar falando disso com um suspiro
Daqui a muitos e muitos anos:
Duas estradas se separavam numa mata, e eu…
Eu tomei a menos viajada,
E isso criou toda a diferença.

 

É claro que ele não foi o primeiro, nem seria o último a fazer essa escolha, a correr esse risco impossível. Jovens escritores, jovens artistas arriscam-se por toda a parte. Apostam suas vidas de homens nas suas esperanças de escritores. Fecham os olhos para as dificuldades, carregando as jovens esposas junto com eles – até os filhos. Mas Frost foi mais audacioso que a maioria, não só porque o risco de cuidar de uma fazenda é maior, especialmente uma fazenda na Nova Inglaterra, mas porque estava menos preparado para assumi-lo. Nasceu e foi criado em cidade. Quase nada sabia sobre fazendas. E seu conhecimento da Nova Inglaterra, da Nova Inglaterra real, era também quase nenhum.

Seu pai tinha nascido na Nova Inglaterra, mas essa não era, como freqüentemente dizia ao filho e a quem quisesse escutá-lo, a terra de sua escolha. Era, mesmo em criança, um simpatizante do Sul, e durante a Guerra Civil fugiu de casa em Lawrence, Mascavastes, para tentar alistar-se no Exército Confederado. (Chegou até a Filadélfia).

O próprio Robert nasceu em San Francisco, filho de mãe escocesa, natural de Leith perto de Edimburgo, e San Francisco foi seu lar durante os primeiros onze anos de vida, até que o pai morreu e a família arruinada estabeleceu-se perto de Lawrence. E Lawrence, é claro, era uma próspera cidade industrial que ficava “na” região da Nova Inglaterra, mas não “fazia parte” dela. De modo que, ao mudar-se para a sua fazenda em New Hampshire, Frost não era um ianque no sentido da região.

Robert Frost Summer Cabin

Entretanto, quando se mudou para a fazenda e atravessou a salvo o primeiro inverno…

 

“How the cold creeps as the fire dies at length –
How drifts are piled,
Dooryard and road ungraded,
Till even the comforting barn grows far away,
And my heart owns a doubt
Whether ‘tis in us to arise with day
And save ourselves unaided.”

 

Como o frio se insinua quando o fogo morre por fim…
Como os flocos se amontoam,
Jardim e estrada desnivelados,
Até o próprio celeiro confortador parecer remoto,
E meu coração abrigar uma dúvida
Se está em nós nascer com o dia
E nos salvarmos sem ajuda.

 

…quando ele atravessou a salvo o primeiro inverno e começou a escrever, seus poemas tornaram-se poemas ianques – famosos mais tarde como “os” poemas ianques de sua geração. É precisamente aí, nesse fato curioso e quase paradoxal, que se encontra a verdadeira chave para a sua relação com a Nova Inglaterra.

 

A maioria dos jovens americanos que, antes e depois, tomaram a estrada menos viajada tratou seu meio de sustento apenas como um meio. Se cuidaram de uma fazenda, essa era um modo de ganhar tempo para escrever, e a terra em que trabalhavam era apenas isso – terra. Mas não para Robert Frost. Desde o começo, como se pode ver nos primeiros poemas de New Hampshire, essa região era mais que um meio. Era uma presença na palavra escrita bem como no trabalho rural. A Nova Inglaterra tornou-se uma metáfora geral para tudo o que Frost aprendia ou vinha a sentir: uma árvore para as colmeias que estava construindo.

Vermont

Na obra da maioria dos poetas, particularmente jovens poetas, você vai descobrir que os temas e as cenas mudam de poema para poema, mundos mudam de livro para livro. Quando você lê os primeiros poemas de Frost, você está sempre “ali”, sempre na Nova Inglaterra ou no que ela se torna para os objetivos do poema. Enquanto os primeiros poemas de muitos outros devem ao lugar onde foram escritos apenas a casa e a comida, os de Frost devem à Nova Inglaterra o seu próprio ser.

Tomem-se os primeiros versos no primeiro poema (depois da epígrafe) em “Collected Poems”:

 

“One of my wishes is that those dark trees,
So old and firm they scarcely show the breeze,
Were not, as ‘twere, the merest mask of gloom,
But stretched away unto the edge of doom.

I should not be withheld but that some day
Into their vastness I should steal away…”

 

Um de meus desejos é que aquelas árvores escuras,
Tão velhas e firmes que mal deixam ver a brisa,
Não fossem, por assim dizer, só a máscara da tristeza,
Mas se estendessem até a beira do destino.

Não deveria ser detido se algum dia
Na sua imensidão eu me perdesse…

 

Não é um poema particularmente bom – jovem, irregular e desajeitado -, mas deixa logo claro que Frost está usando uma paisagem característica da Nova Inglaterra: essa visão de campo aberto até a linha de árvores que limita o espaço por toda parte em Massassuchets, New Hampshire ou Vermont. Primeiro “só a máscara da tristeza”, as árvores tornam-se pelo seu desejo a “beira do destino”, uma “imensidão” sombria e sem fim, na qual, se assim o desejasse, um homem poderia perder-se. E Frost, ou assim ele diz, é um desses homem: “Não deveria ser detido…” Em outras palavras, o desejo da escuridão estava nele mesmo. Chama o poema de “Into My Own”. Mas a imagem que contém esse desejo é uma imagem da Nova Inglaterra. E o homem na beira da pastagem, de um lado, as árvores contra o céu, de outro, compõem o poema entre si.

Pode-se dizer o mesmo de outras emoções profundamente pessoais, como, por exemplo, o medo de que fala no poema de inverno que citei. Ele o chamou de “Storm Fear” e começou com um tom cômico-apreensivo, conveniente aos que, criados na cidade, se vêem no silêncio e na solidão do campo, quando o vento sopra leste e cai a primeira neve:

 

“When the wind works against us in the dark,
And pelts with snow
The lower-chamber window on the east,
And whispers with a sort of stifled bark,
The beast,
“Come out! Come out!” –
It costs no inward struggle not to go…”

 

Quando o vento sopra contra nós na escuridão,
E fustiga com neve
A janela do quarto de baixo a leste,
E sussurra com um latido sufocado,
A fera,
“Venha para fora! Venha para fora! –
Não nos custa luta interior alguma não ir…

 

Mas, embora o tom seja leve, o medo não é apenas cômico. Há um antigo terror humano nesse “latido sufocado”, e, mesmo que a “fera” seja um monstro de Halloween, há ainda assim algo verdadeiramente monstruoso em tudo isso – algo que dificilmente teria sido confessado, se a Nova Inglaterra, com seus mitos de inverno, não tivesse tornado a imagem possível. Ao se ler esse poema dos primeiros tempos, pensa-se em outro poema posterior e maior que também começa com a neve da Nova Inglaterra… “Snow falling and night falling fast, oh, fast”” (Neve caindo e noite caindo rápido, oh, rápido)… e que termina, assim como este, com um terror irônico e mencionado em tom leve – mas que gela o coração:

 

“They cannot scare me with their empty spaces
Between stars – on stars where no human race is.
I have it in me so much nearer home
To scare myself with my own desert places.”

 

Eles não me amedrontam com seus espaços vazios
Entre as estrelas – onde não há raça humana.
Tenho em mim tão mais perto de casa,
Para me amedrontar, os meus próprios desertos.

 

Esses não são evidentemente poemas campestres no sentido usual – de modo algum, poemas pastorais. O que têm a dizer sobre as coisas do campo – neve, ceifa, flores do prado – transforma-se em algo muito diferente: algo sobre o homem, sobre a experiência de ser humano, de estar vivo neste pequeno planeta atingido pelo sol e gasto pelo vento, que um dia também acabará.

O mesmo vale para o caráter de Nova Inglaterra que possuem. São poemas da Nova Inglaterra, sim – nenhum outro o é mais -, mas não num   sentido descritivo ou geográfico. São poemas da Nova Inglaterra, porque usam a Nova Inglaterra para seus fins, a paisagem, o sentimento e os aromas da Nova Inglaterra de um modo tão profundo e, ao mesmo tempo, tão familiar. Porque esta paisagem deixa transparecer o significado humano, porque as perguntas humanas estão refletidas aqui como em nenhum outro lugar que eu conheça. Mas o que surge em nossas mentes quando os lemos não é a Nova Inglaterra, somos nós mesmos: nossa condição de homens, nossa consciência de seres humanos.

Assim, qual é a resposta para a nossa pergunta? O que esta voz irônica, esta voz às vezes cruelmente irônica, nos “fala”? O que ela quer conosco? Com nossas crianças? Com aquela jovem no começo ansioso de sua vida? Com o velho no final da sua? Com nossos seres?

Nossos “seres”? Bem, Frost nos deixou uma espécie de resposta: um pequeno poema que colocou como epígrafe no começo de seus “Collected Poems”. Chama-se “The Pasture”, uma palavra que sempre me lembra a Nova Inglaterra, e é escrito com o tom de voz suave e implicante que um homem poderia dirigir a uma criança ou à mulher que ama:

 

“I’m going out to clean the pasture spring;
I’ll only stop to rake the leaves away
(And wait to watch the water clear, I may):
I shan’t be gone long. – You come too.”

 

Vou sair para limpar a fonte do pasto;
Só vou me deter para tirar as folhas
(Esperar, talvez, para ver a água clarear):
Não vou me demorar. – Venha você também.

 

Esta é uma promessa, é claro, de escritor para leitor: Venha comigo e eu lhe mostrarei… O quê? Só a água clareando numa fonte turva? Sim, isso e outros milagres. “Mostrar” a água clareando numa fonte, realmente “mostrá-la” (ou uma folha caindo, uma vida), de um modo que a mente possa enfrentá-la e o coração encerrá-la dentro de si, é o trabalho mais difícil no mundo, o trabalho da arte.

O que Frost diz àquelas crianças que compreendem, mas não de todo, aos jovens que percebem a ironia atrás das palavras e se ressentem, ao velho às voltas com seu pensamento, é o que toda a arte diz: Veja! (Não “Olhe”, mas “Veja”.) Qualquer coisa pode nos levar a olhar, qualquer movimento casual num quarto, o vento nos choupos, um saco de papel desenrugando-se. Só a arte pode nos fazer ver. Henry Thoreau estabeleceu a distinção na forma mais simples possível: “… não há poder de visão no olho em si, não mais que em qualquer outra gelatina… Nada podemos ver, enquanto não ficarmos possuídos pela ideia do ser, enquanto não a levarmos a nossas cabeças, – e então dificilmente podemos ver outra coisa”.

Isso vale para a água turva naquela fonte. E, tudo considerado, também para os poemas de Frost. Cumprem a promessa da epígrafe no início: “mostram”. Vemos por causa deles: não a Nova Inglaterra, mas a paisagem de nossos corações. Quanto à ironia, essa é também um modo de “falar” para que se possa “ver”: um reflexo, uma refração da luz que torna visível o que é familiar demais.

 

“I would have written of me on my stone:
I had a lover’s quarrel with the world.”

Gostaria que escrevessem no meu túmulo:
Tive uma briga de namorados com o mundo.

 

Robert Frost grave

 


Copyright 2012 © Todos os direitos reservados à Íbis Literatura & Arte