a revista » Edição #2 » Não Ficção » Viagem à origem do Tai Chi Chuan

Não Ficção

Viagem à origem do Tai Chi Chuan

Há trinta e sete anos, em 1975, comecei a praticar a arte do Tai Chi Chuan. Não parei mais desde então. Como em todo estudo prolongado, o caminho, o tao, a pesquisa em si, se torna mais interessante do que os objetivos que vão mudando no decorrer do tempo. A partir de um certo ponto, tudo toma uma nova dimensão, quando o amadurecimento nos leva a perceber que, a cada topo de montanha que conseguimos alcançar, sempre se nos apresenta a vista de uma cordilheira de outros topos mais altos que teremos para escalar. O que pode parecer desesperador para uns é motivo de enorme prazer para outros, que encontram no desdobramento infinito da arte a possibilidade de progredir sempre.

Um desses topos de montanha do caminho para os praticantes de Tai Chi Chuan se encontra numa….planície! Na grande planície do rio Amarelo, no norte da China, onde há mais de seis mil anos nasceu a civilização chinesa.taijiviagem2

 

 

 

 

 

 

 

Estamos sobrevoando a planície central do rio Amarelo. Esta terra, habitada pelos chineses há milhares de anos, foi repetidas vezes palco de enchentes e secas através dos séculos. A vida desta região superpovoada nunca foi, e ainda não é, nada fácil. Aqui viveram as primeiras dinastias Xia, Shang e Zhou, e há importantes sítios arqueológicos em toda a região.

Aqui também está localizada Chenjiagou, mais um destes milhares de vilarejos. De avião podemos ver que os vilarejos são satélites das cidades maiores, em uma constelação infinita, até onde o olhar alcance.

Após pousar em Zhengzhou, fomos diretamente  para Chenjiagou. Chegamos no final do dia ao vilarejo, onde, há aproximadamente 370 anos, um militar, Chen Wang Ting,  pertencente a um clã de guerreiros, a família Chen, criou a arte marcial do Taijiquan.

taijiviagem3

Esse fato, até pouco tempo atrás questionado, foi recentemente comprovado por uma equipe multidisciplinar de historiadores e oficializado por meio de uma placa fundamental inaugurada pelo governo chinês em 2007, atestando que a arte marcial do Taijiquan (Tai Chi Chuan) nasceu de fato em Chenjiagou .

Quando você ama uma arte, procurar suas raízes significa muitas vezes um movimento de redução. Significa se despojar de acessórios e imagens de interpretação, muitas vezes honestos e com valor, mas, ainda assim, desdobramentos que no início eram abordados com muito mais objetividade e simplicidade.

O  Tai Chi Chuan é uma arte que se tornou polivalente e com tantas facetas que fica fácil perder-se em castelos nas nuvens. Para complicar, o fato de ser uma arte chinesa cria os maiores mal-entendidos, quando traduzimos os seus conceitos mais básicos, sem falar nos mais complexos.

Por isso, para mim, professor de Tai Chi Chuan há mais de 3 décadas, chegar a Chenjiagou foi muito importante. Não só por ser a cidade natal de meu mestre, de ser também a cidade natal do estilo a que me dediquei, o estilo Chen, mas também, e principalmente, por estar no lugar deste planeta onde uma série de convergências na história da China fizeram nascer a arte do Taijiquan, da qual todos os milhões de praticantes neste planeta desfrutam diariamente. É como chegar  à nascente de um rio, e grandes rios como o Amazonas nascem em pequenas fontes.

Além de praticante, gosto muito de história, e a do Taijiquan, com sua mistura de fatos e lendas se entrelaçando, sempre me cativou…

Chenjiagou me apresentou o que eu procurava, o que me daria uma nova perspectiva, um denominador comum desta arte que hoje em dia já é praticada em vários países, e que na minha opinião tem um papel importante a ser explorado no futuro da humanidade.

Esta arte, simultaneamente  marcial, filosófica e  terapêutica, nos ensina  como é importante cultivar os princípios que definem e qualificam o TaiChi aplicado através dos séculos, e como podemos continuar a divulgar e transmitir esses princípios demonstrando esta vocação do Taijiquan enquanto arte global perante a perspectiva da história.

Chenjiagou  é esta mistura surpreendente de simplicidade e grandiosidade. Este pequeno vilarejo entre centenas tem em cada esquina séculos de convívio com mestres e guerreiros, lutas, invasões, mudanças de política e perseverança nessa arte.

Ao pensarmos em termos históricos do Taijiquan, Chenjiagou chega a dar vertigem. Desde Chen Wang Ting, cada geração produziu vários mestres de taijiquan, dos quais só chegamos a conhecer os principais. Mesmo hoje em dia percebemos que, além dos famosos, existem vários desconhecidos de alta qualidade.

 

taijiviagem4

 

 

 O Tai Ji Tu [o símbolo do yin/yang, duas faces (os opostos) de uma mesma realidade, que só se realizam no interior da dinâmica que as une] em frente aos dormitórios e salas de aulas teóricas.

 

A Escola

Ficamos na Escola do mestre Chen Xiao Wang, cujo diretor é seu irmão mais novo Chen Xiao Xing, sendo administrada pelo seu sobrinho, Chen Zhingqian.

Chegamos já ao final da tarde, e nossa primeira surpresa foi encontrarmos na porta da escola o grão-mestre Chen Xiao Xing, irmão do GM Chen Xiao Wang e diretor da escola da família Chen.

Nosso grupo era formado por dez brasileiros. Iríamos ficar por oito dias com dois objetivos: tornarmo-nos discípulos (eu e a professora Ana Cloe) do GM Chen Xiao Wang, na cerimônia anual de reverência aos seus antepassados, e participarmos todos do workshop anual da Lao Jia (a mais antiga e importante forma de Tai Chi Chuan).

Ficamos nos alojamentos da própria escola, que tem quartos grandes e confortáveis, com banheiro, aquecimento e uma vista incrível para o museu do Tai Chi Chuan, assim como para o pátio da escola, que em si é um espetáculo à parte.

taijiviagem18                         Vista do museu do taijiquan, da janela do meu quarto.

Chegamos dois dias antes do workshop, o que nos permitiu adaptarmo-nos  ao ritmo do vilarejo.

No segundo dia, chegou o grão-mestre Chen Xiao Wang. Ver o mestre Chen Xiao Wang em Chenjiagou é muito interessante. Primeiro, a fama e reverência de que ele goza como imagem pública. Ele é um líder para milhares de pessoas, por isso, quando ele chega, é sempre acompanhado de uma comitiva de ajudantes, repórteres e admiradores.

Mas, uma vez que nos viu, fez questão de cumprimentar um a um todos os seus alunos, e com calma, mostrando-se hospitaleiro e acolhedor. Foi a primeira vez que o vi lá. Já sabia que era idolatrado e que seria difícil abordá-lo. No entanto, ele já foi me adiantando uma reunião para nós no dia seguinte. Logo no terceiro dia, tivemos oportunidade de ter a reunião com o GM. Chen Xiao Wang. Ele quis saber se estávamos todos bem, e deixamos claro que sim e que era grande nossa felicidade de estarmos ali com ele, aprendendo e ao mesmo tempo sentindo-nos honrados por essa oportunidade.

Aos poucos iam chegando pessoas de todas as partes do mundo, e da China também. E apesar de não falarmos a mesma língua, estávamos ali pelo Taichi, e Tai Chi era o que não faltava.

taijiviagem5

 

 

 

taijiviagem6

 

 

 

 

 

Pátio da escola com alunos treinando a Lao Jia

Crianças, adolescentes, adultos, velhos, homens e mulheres, chineses e estrangeiros, todos fazendo taichi em todos os lugares, a qualquer hora do dia. Às vezes tarde da noite, como pude presenciar uma vez voltando de um jantar. No escuro pátio da escola, vislumbravam-se apenas os vultos de praticantes silenciosos.

Em Chenjiagou, a prática é constante. Pode-se ver, além das grandes escolas, várias pequenas escolas, com cartazes mais modestos, em casas menores, mas todas ensinando Taijiquan estilo Chen.

A escola em que ficamos é uma espécie de internato para crianças e adolescentes, onde, além do Taijiquan, outras matérias regulares como matemática, geografia, chinês etc. são ensinadas. É possível ver que o taijiquan é a matéria preferida. Para aquelas crianças, ter sucesso é sinônimo de se tornar professor ou treinador, e com isso ascender socialmente e poder ajudar seus pais no futuro. Existe uma espécie de comprometimento com o estudo e a prática, que nos tocou. Quando observávamos crianças estudando algumas das posturas  que também praticamos, repetindo-as incansavelmente dezenas de vezes, eu pensava, será que um dia poderemos ter algumas escolas assim? Com essa seriedade? O próprio mestre Chen Xiao Wang pensa que, como na sua época havia vários fatores não favoráveis, hoje em dia, com a situação inversa, é mais do que esperado que essas gerações alcancem níveis superiores de Taijiquan.

A escola, os alojamentos e o museu do Tai Chi junto com o prédio da administração formam um grande quarteirão, o centro das atenções do vilarejo.

taijiviagem7                                   O portal, a escola e a entrada do museu.   

O museu

Ao    contornar esse quarteirão, podemos ver, pintados no muro externo do museu, dois símbolos fortes do Taijiquan:

Fuxi e a Lao Jia

Fu Xi, o lendário imperador que teria inventado os rituais, o cozimento dos alimentos, a pecuária, a pesca e a representação, com linhas Yin/Yang [as linhas yin são partidas e as linhas yang, contínuas], das oito figuras simbólicas conhecidas  como Bagua.

taijiviagem8

 Fu Xi teria visualizado essas linhas  pela observação das marcas e linhas no casco de uma tartaruga e no dorso de um cavalo-dragão.   Ele teria arranjado essas linhas Yin/Yang em oito combinações de três linhas, os famosos Bagua do céu anterior.

taijiviagem9taijiviagem17 (Small) (Custom)taijiviagem10

Nessa representação, Fuxi é envolto pelo Bagua do céu anterior, formado nessa pintura por uma onda resultante do encontro das águas de dois rios, um com a tartaruga e outro com o cavalo dragão. Essa referência a Fuxi  no muro externo é o símbolo da filosofia na qual o Taijiquan se baseia. Ela imita as estampas a partir de baixos-relevos feitos nos vasos de bronze da dinastia Shang.

Ainda no muro externo do museu, encontramos a ilustração da Lao Jia Yi Lu [a sequência de todas as posturas da forma Lao Jia].

taijiviagem11

Atrás de cada postura da Lao Jia, podemos ver o BaGua do arranjo do céu posterior.

Esses dois arranjos correspondem respectivamente a dois mundos: o Bagua do céu anterior de Fu Xi, ao mundo das ideias ou mundo invisível. E o Bagua do céu posterior, ao mundo tangível das realizações. De autoria do rei Wen, que teria sido co-autor do Yi Jing [Livro das Mutações – texto milenar do pensamento chinês] junto com Fu Xi e, posteriormente, Confucius (o nome do rei Wen também significa linhas, escrita, cultura), esse Bagua representa a influência energética cíclica dos trigramas nos assuntos práticos, como a medicina, o feng shui [fluxo das energias em um espaço] e o Taijiquan. Em contrapartida, o Bagua de Fuxi representa o mundo das ideias, posicionado também no muro externo como uma espécie de talismã que evoca o perfeito equilíbrio das energias, guia e proteção a seus praticantes.

A escolha do Bagua do céu posterior como fundo das posturas da  Lao Jia pontua o fato de a Lao Jia ser a realização, no mundo real, dos ideais de dinamização do Yin Yang, ou Taiji.

Dentro do museu no pátio na frente do prédio principal, encontramos de novo o Bagua do céu posterior. Desta vez, pontuando a função prática de um museu: ensinar, transmitir, preservar.

taijiviagem12

Antes de chegar ao pátio principal, podemos ver na foto acima os três portais. Segundo a guia que nos acompanhou na visita ao templo e museu, cada portal simboliza uma fase na progressão da prática do Taijiquan. O primeiro portal é o da prática e maestria do corpo nas  posturas; o segundo, o da prática e maestria do Qi [sopro-energia na tradução de Cyrille Javary]; e o terceiro, o da prática e maestria do espírito.

taijiviagem13      Professora Ana Cloe no terceiro portal,  o da maestria do espírito (Shen)

O museu tem cinco andares, como os cinco níveis (elementos), e fica de frente para o sul, o que mostra como tudo foi feito de acordo com os melhores aspectos do Feng Shui. [Literalmente Vento Água, é uma corrente do pensamento chinês que, por meio da relação yin/yang, ensina como equilibrar e harmonizar as influências energéticas em um espaço.]

 taijiviagem14

No terceiro andar estão expostos o histórico e as características dos outros estilos de Taijiquan além do estilo Chen. O teto é iluminado por um Bagua do céu posterior, pontuando que essa diversificação dos estilos é iluminada por princípios comuns, acima das diferenças naturais entre expressões da mesma arte.

O museu do Taijiquan foi uma surpresa para mim. Não esperava por algo tão completo em termos de história, simbolismo, nem tratado com tanta maestria.

Dentro da área do museu também se encontram o templo e o cemitério. No cemitério, onde é feito o ritual de limpeza de túmulo e queima de oferendas, encontramos os túmulos e lápides de Chen Fake e Chen Zhao Xu, avô e pai de Chen Xiao Wang.

taijiviagem15

 

 

 

 

 

O cemitério durante a cerimônia de queima de oferendas

 

É no templo dos ancestrais da família Chen que são feitos alguns dos rituais mais importantes, entre os quais o discipulado.

Na frente do templo, encontra-se a imagem de bronze de Chen Wang Ting.

Aí também se encontram as lápides de Chen Chang Xing e Chen Xin, entre outros mestres famosos. Nesse local, tive uma sensação especial. Ali estava eu, o espírito (shen) de um brasileiro do sec. XXI, no único lugar deste planeta habitado pelos espíritos (Shen) dos grandes mestres de Taijiquan de todos os tempos desde o século XVII…  Subitamente me dei conta de que muitos daqueles mestres usaram o Taijiquan como modo de defender o vilarejo com sucesso nos últimos 4 séculos, uma perspectiva difícil de ser sequer imaginada pelos milhões de seres humanos que hoje em dia praticam e desfrutam dos tesouros do Taijiquan.

Temos de fazer o possível para que esta arte seja levada mais a sério no Ocidente, esta é a mensagem que esta nascente, este chão, este templo nos mostra silenciosamente.

taijiviagem16

Professores Estevam Ribeiro e Ana Cloe no templo da família Chen em frente à estátua de Chen Wang Ting

Ao lado de Chen Wang Ting, em duas grandes lápides, estão escritos os ideogramas Te– potencialidade, virtude; e Wu, guerreiro, no sentido daquele  que controla e apazigua a violência.

O museu, o cemitério e o templo foram as três maravilhosas surpresas de nossa estadia.

 

Estevam Ribeiro

 


Copyright 2012 © Todos os direitos reservados à Íbis Literatura & Arte