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Entrevista

Estela Caldi: O Cultivo da Música

“O abraço musical que tocar um instrumento nos proporciona, e especialmente o piano, um instrumento harmônico que não depende de outros, pois é absolutamente autônomo para se expressar, é de uma força poderosíssima. É entrar em contato com o mais íntimo de nós, e aí reside o grande segredo: a comunhão com a própria alma. Muita gente passa a vida inteira sem saber que isso existe. Tocar com a bagagem que temos , seja ela qual for, mas tocar e sentir prazer com a música que fazemos é o abraço mais sentido e caloroso que podemos nos dar.”     Estela Caldi

 

Nascida na Argentina e naturalizada brasileira, Estela Caldi é pianista concertista e atua na área do ensino de música no Rio de Janeiro. Professora de piano por muitos anos na Pró-Arte e na Uni-Rio, ela agora está aposentada com tempo livre para se dedicar ainda mais a seus alunos e aos concertos que apresenta durante todo o ano.

Dois de seus filhos, Alexandre e Marcelo, são músicos profissionais na área da música popular (Marcelo Caldi é pianista e acordeonista, e Alexandre Caldi é flautista e saxofonista – flauta e piccolo, saxofones soprano, tenor, contralto e barítono). Junto com eles, Estela formou há mais de quinze anos o grupo chamado LiberTango, especializado em executar as composições de Astor Piazzolla. Ao longo desse período, vários outros músicos se uniram ao trio para se debruçar sobre a música de Piazzolla, cabendo mencionar o cantor Marcelo Rodolfo que integrou o LiberTango até início de 2012. Já gravaram três discos como resultado desse trabalho, A Música de Astor Piazzolla [2005], Cierra Tus Ojos y Escucha [2008] e Porteño [2010] , este com músicas de Astor Piazzolla e Carlos Gardel. Em dezembro de 2013, lançaram o quarto disco, Tangos Hermanos, no I Festival Tango Brasil, que aconteceu no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro. Com Marcelo Caldi, Estela forma desde 2009 o Duo Caldi de piano a quatro mãos. Uma família dedicada a produzir música de alta qualidade.

Quem tem o privilégio de conhecer Estela Caldi sente um pouco de pena daqueles que desconhecem esta musicista extraordinária que na vida faz tudo pra valer: toca seu instrumento, ensina música, faz soar seu LiberTango realizando, como dizem seus integrantes, um “profundo diálogo musical entre os dois maiores países da América do Sul”. Tudo sempre com o mesmo talento, trabalho e amor que lhe permitem executar, por exemplo, uma interpretação primorosa de Schubert.

Nesta entrevista, ela fala de seus estudos, de seu trabalho, de suas experiências e de sua paixão pela música. Cabe informar que esta entrevista foi realizada em 2005, mas certas observações dependentes da conjuntura daqueles tempos não comprometem pensamentos fundamentais sobre música, interpretação e ensino da música que ela então formulou.

 

Como se deu a sua formação musical?

Comecei a estudar em Buenos Aires no Conservatório Nacional de Música. Fiz dois cursos básicos: um curso de professora de música na especialidade piano e um curso de especialização em piano mesmo. Durou três anos, e depois eu fiz o mestrado aqui no Brasil, quando defendi minha dissertação chamada “A Execução da Rítmica Brasileira no Rude Poema para piano de Heitor Villa-Lobos”. Um trabalho que foi acompanhado naquela época por um disco 33, em que eu gravei o Rude Poema, a Lenda do Caboclo, a Alma Brasileira e todas as Cirandinhas. O disco se chama Villa-Lobos por Estela Caldi.

E o seu trabalho na área de ensino de música?

Fui professora de piano já em Buenos Aires. Trabalhava com iniciação musical para crianças nas escolas primárias e de segundo grau, utilizando o método Orff (pedagogia musical desenvolvida pelo compositor alemão Carl Orff) e regência de coro. Depois entrei como professora de piano na Escola de Belas Artes que havia no município de San Martin na província de Buenos Aires, e fui também pianista acompanhadora de uma professora de canto, Zulema Castello de Lasala. Foi ela quem me trouxe ao Brasil, porque seu marido, um compositor que morreu há alguns anos, Angel Lasala, já tinha estado por três ou quatro meses aqui no Rio de Janeiro estudando a música brasileira, e ela, que falava muito bem português, veio fazer uma pesquisa sobre música brasileira e aproveitou para gravar três programas de música argentina, em que eu a acompanhei. Até pouco tempo atrás ainda se ouvia de vez em quando esse programa nas rádios, ela cantando e eu acompanhando.

E foi então que acabei no curso de Teresópolis, onde conheci muita gente e o Homero Magalhães (pianista, professor e estudioso de música no Rio de Janeiro, já falecido, com quem Estela se casou e teve quatro filhos). Ganhei uma bolsa de estudos do governo brasileiro para estudar Villa-Lobos com o Homero Magalhães, mas por razões particulares desisti da bolsa. E terminei ficando por aqui. Na verdade, eu ia ficar por conta do estudo. Mas aconteceram muitas coisas, fiquei no Brasil também por outros motivos e, em ficando, acabei indo para a Pró-Arte. Durante onze anos dei aula na Pró-Arte, aqui em Laranjeiras, como professora de piano, e depois entrei para a Uni-Rio em 83, sempre como professora de piano. Mas ali lecionei também outras disciplinas – Música de Câmara, Piano Complementar para os alunos dos cursos de Composição e Regência, Licenciatura, Canto. E aulas de leitura à primeira vista e transposição ao piano, bem como leitura de partituras para os alunos que vão trabalhar com regência. Isso foi até 2003, quando me aposentei. Hoje continuo tendo meus alunos particulares, e sigo meu trabalho.

Como professora, fiz também trabalhos muito interessantes em cursos de férias, festivais de música como Londrina, Teresópolis, São José do Rio Preto, Curitiba, o Festival de Música de Câmara de Curitiba, que é um outro festival que acontecia em setembro-outubro de cada ano, independente daquele que acontece até hoje em janeiro. Os festivais me convidavam para participar, para tocar, mas também como professora. Durante muitos anos realizei um trabalho interessante nesses encontros, porque deles participam não só alunos que estão estudando piano, mas também professores para ministrar aulas. É uma oportunidade interessante de passar conhecimentos, uma troca de informações com as pessoas. Pode ser muito importante e enriquecedor.

Como são as condições de fazer música aqui no Brasil?

Em se tratando de música erudita, as condições pioraram muito nos últimos vinte anos. Mas consegue-se fazer alguma coisa.

Villa-Lobos promoveu um programa de música nas escolas.

Não sei como a música foi introduzida nas escolas. Não conheço muito bem esta história. Nem quando saiu das escolas. Mas, enfim, de alguma maneira a idéia dele foi importantíssima. Por exemplo, aqui no Rio de Janeiro existe uma escola secundária, a São Vicente, que tem uma grande e variada quantidade de coros. Quem faz esse trabalho tão maravilhoso são dois professores,  Patrícia Costa e Danilo Frederico, que antes também contavam com a participação de Malu Cooper, falecida prematuramente. Eles conseguem um resultado de alto nível, levando um número muito significativo de pessoas a tomar contato com a música através do canto. Mas um dado importante é que, em agosto de 2008, decretou-se que a música seria obrigatória em todas as escolas. Espero que consigam formar todos os professores necessários para esta grande empreitada.

Na cultura européia do século XIX, eles faziam música em casa. Não sei se essa tradição continua viva na Europa, mas ela dificilmente existe no Brasil, não?

Bom. Imagina, eu sou uma privilegiada de poder fazer música com os meus filhos, o Alexandre e o Marcelo, porque conseguimos juntar nossos interesses. Eles fazem música popular, e eu a única coisa que toco que se pode rotular de popular é o Piazzolla. Mas essa foi a maneira de nos juntarmos, porque eles não vão tocar nem Mozart, nem Schubert, nem Beethoven, e eu toco tudo isso. Quem conseguiu nos unir foi o Piazzolla, que está no limiar do que se poderia chamar música erudita e popular. Enfim, é também diferente, fazemos muita música em casa, porque somos músicos profissionais e precisamos ensaiar.

É difícil hoje ter este tipo de espaço dentro de casa com as crianças, porque existem muitas outras atrações, o computador, a televisão. São prazeres que nos dão informação. A televisão, por exemplo, pode ser um bom elemento de informação. Assim como pode se revelar algo castrador, pode atuar como um meio de conhecimento, quando apresenta coisas interessantes. No próprio computador, com a Internet, é possível investigar o que se quiser. Pode-se entrar em museus, em qualquer sociedade de investigação, pode-se pesquisar, comunicar etc. E basta apertar uma tecla para fazer isto.

Por exemplo, com a nova tecnologia, você pode comprar esses teclados que existem. Se quer tocar uma bossa nova, você aperta uma tecla e tem o acompanhamento. Se quer fazer um tango, você faz. Quer ser acompanhada por uma orquestra sinfônica, não há problema. Então é uma coisa tão rápida, e tão descartável ao mesmo tempo, que não cabe mais este prazer de fazer música como fazemos. Uma coisa que se perdeu, porque aprender um instrumento é um trabalho artesanal que leva muito tempo, ao qual você tem de dedicar muitas horas de estudo.

A verdade é que se vê a repercussão da vida moderna em tudo. Não é à toa que as coisas acontecem. E hoje quase tudo é descartável. É como se você não tivesse que ter compromisso com coisa nenhuma. Quando você assume estudar alguma coisa, há um comprometimento seu. Eu me comprometo com esse estudo, porque eu quero. Quando você se liga a um estudo qualquer, seja filosofia, seja literatura, seja música, você necessariamente se envolve, estabelece uma relação, uma ligação com aquilo pelo qual se interessa e que você quer fazer.

Hoje fazemos várias coisas ao mesmo tempo, como falar ao celular enquanto escrevemos no computador e respondemos a perguntas que nos são feitas por alguém que passa, e tudo isso ouvindo uma musiquinha de fundo para incrementar o ambiente. Enfim, “ligados em tudo”, mas “não ligados a nada”. Estudar alguma coisa requer o comprometimento da concentração, da persistência, da força para suportar a frustração quando não atingimos num determinado dia o objetivo proposto, mas que sabemos poder alcançar insistindo com inteligência.

estela

Quanto ao trabalho do LiberTango, por que o conjunto tem esse nome?

Não sabíamos que nome colocar, de repente colocamos LiberTango. LiberTango é, afinal, um tango de Piazzolla. Mas nem sei por que chegamos a LiberTango. Talvez porque temos uma maneira muito livre de tocar o Piazzolla. Embora o portenho seja o resultado da mistura de muitos povos diferentes, de diferentes culturas – europeia, africana, indígena – há entre eles  uma dificuldade muito grande de aceitar as diferenças. Isso você vê todos os dias. Eles mesmo reconhecem, sabem disso, é uma coisa ancestral, acho eu. Por exemplo, o próprio Piazzolla foi repudiado em Buenos Aires. Primeiro, porque viveu grande parte da sua vida, até quase os dezoito anos, nos Estados Unidos. Ele não falava espanhol, quando voltou para a Argentina. E teve influências rítmicas e improvisatórias do jazz. Depois, porque ele é um músico popular que aprendeu a ler música, fato raríssimo na época. Então achavam que ele era um esnobe por causa disso, e acabou que ele foi parar na França, onde estudou com a grande professora de composição, Nadia Boulanger. Adquiriu um domínio da composição muito grande. E decidiu fazer coisas diferentes, quebrar regras. Para os argentinos mais tradicionalistas, isso era inadmissível. Eu estou aqui no Brasil, meus filhos são brasileiros, eu jamais poderia dizer que nós tocamos um Piazzolla que não tenha influências da música brasileira. Embora ele seja em essência o Piazzolla, tenha o acento e o sotaque argentinos, eu não posso deixar de pensar que existem componentes brasileiros dentro de nosso conjunto. Seja pela experiência que meus filhos têm em música popular, seja pelos arranjos que eles fazem e que contêm elementos musicais brasileiríssimos.

Que tipo de sonoridade empregamos, por exemplo? Embora sejam instrumentos usados por conjuntos de tango na Argentina, o saxofone e a flauta são menos comuns. O acordeão, nem se fala. O acordeão é um instrumento muito usado na música popular brasileira. Um instrumento raro no tango, mas que se vê aqui no forró, no interior, e principalmente no sul. Então cada vez que tocamos com acordeão, dizem: mas vocês não têm bandoneón? É como se estivéssemos ultrajando a essência do tango. E não é bem isso. Conseguimos dizer o discurso do Piazzolla com sonoridades diferentes, com pequenas luzes de brasilidade em alguns lugares, que são apenas toques, nada que tire a sua essência. Mas há criação, você cria diferenças ao tocar as mesmas frases. Então eu acho que o nome LiberTango vem um pouco disso. Muito livre para tocar.

O bandoneón é muito diferente do acordeão?

O bandoneón tem uma sonoridade diferente. Como instrumento é muito mais difícil, não tem uma lógica e tem botões nos dois lados. O acordeão não, o acordeão tem teclado num lado e botões no outro. E o bandoneón tem uma sonoridade bem particular, mas o acordeão hoje dispõe de muitos recursos, os acordeões mais caros. É possível apertar uma chave para que o instrumento fique com a sonoridade de bandoneón. Você tem de fazer muito esforço para identificar o timbre. Para quem não vê, é difícil saber que não é bandoneón. Mas nós, por exemplo, usamos vários recursos do acordeão. Quando fazemos Balada para um Loco,colocamos uma chave que torna o som parecido com o de um realejo. Ou fazemos um fundo musical com uma sonoridade um pouco mais aguda, outro mais grave. Utilizamos os timbres, isso é uma coisa que ficou num molde já nosso.

Vocês só tocam obras de Piazzolla?

Não mais. A partir do terceiro CD, abrimos o repertório para o tango tradicional gravando obras de Gardel. E pretendemos daqui para a frente tocar outros autores de tango tradicional em nossos shows e, eventualmente, nos próximos CDs que formos gravar. No último CD, Tangos Hermanos, além de tangos de Piazzolla e tangos tradicionais argentinos, incluímos uma obra com ritmo folclórico argentino, letra e música de Eladia Blazquez, e cinco tangos brasileiros de Ernesto Nazareth.

Vocês fazem arranjos para as músicas que apresentam?

Alguns são simples transcrições: assim como está escrito, transporta-se para outros instrumentos. E às vezes criamos os arranjos fazendo alguma modificação, que dê um toque diferente sem mudar a essência.

Quais são os instrumentos do conjunto?

Piano, acordeão, saxofone e flauta, e voz. Sempre temos participações especiais. Já trabalhamos com percussão, violino, contrabaixo, violão e bandolim.

A Argentina nunca ofereceu um patrocínio para o trabalho de vocês?

Não, e também não pedimos. São tantos os conjuntos de tango argentinos que desejam se fazer conhecer por aqui, que é quase impossível que a Argentina queira patrocinar um conjunto brasileiro. Mas creio que depois do Festival Internacional de Tango, o Tango Brasil, projeto de meus filhos Alexandre e Marcelo, realizado no Centro Cultural do Banco do Brasil em dezembro de 2013, no qual muitos argentinos participaram e conheceram o nosso trabalho, é possível que se dê uma abertura.

Qual é a sua visão do trabalho que realiza no LiberTango?

Há uma confusão quanto ao que é ser artista.

Por exemplo, certa vez fui ouvir aqui na Sala Cecília Meireles um conjunto de japoneses tocando tango. Maravilhoso. Tocavam desde o tango bem tradicional até o tango avançado de Piazzolla e outros posteriores, novos compositores de tango. E eles foram a Buenos Aires estudar, foram às fontes. Quando fui cumprimentar o que tocava o bandoneón, que fala espanhol e inclusive passou muito tempo na Argentina, estava junto um argentino que dizia: você tocou igualito, igualito como fazia Piazzolla. Ou seja, é como se você não pudesse fazer uma coisa diferente, porque, para ser bom, tem que ser igualito, igualito a Piazzolla.

Então eu acho assim: quando se entende um discurso, começo meio e fim, quando se consegue falar esse discurso sem “sotaque”, como é que se vai dizer esse discurso? Aí é que entra o artista, as experiências que ele tem, a riqueza do seu inconsciente. É isso o que diferencia um artista do outro.

Querer impor a um artista que ele seja igualito, igualito, igualito… é querer bitolá-lo, percebe? Essa é a idéia que eu acho importante. Por exemplo, alguém que conhece bem Schubert, que conhece as sinfonias, que ouviu todos os lieder (canções) e entende essa linguagem, ele sabe do que se trata. Agora como é que ele vai dizer isto? É aí que está o artista, aquilo que faz a diferença. Não quer dizer que ele vai tocar Schubert como tocaria Chopin. Não é isso o que estou dizendo. Apenas que Schubert será executado com luz própria.

E acho que essa é uma grande dificuldade, inclusive na área do ensino da música. Uma coisa é ensinar o aluno, dando uma ordem: isto é assim, isto é assado. E outra coisa, independentemente de ensinar o aluno, é deixar que ele se manifeste. Se ele entendeu o que você diz, vamos ver como é que ele faz, como é que ele diz. Porque o professor começa a dizer: toca piano aqui, toca forte ali, tudo é dirigido minuciosamente. Pode ser que no início você precise fazer isto com alguém que não saiba, mas como é que você vai fazer o aluno crescer? Só deixando experimentar, para ver como é que ele faz. O que é que ele tem a dizer. Essa é a formação. Essa é a minha visão.

A  tradição musical é vasta. Haveria compositores que são mais tocados hoje em dia?

Olha, eu diria que existe público para tudo. Sabe, existe gente que é doida por ópera, existem sociedades dos amantes da ópera, clubes de ópera. E existem até as pessoas que vão assistir àqueles vídeos de ópera novos, que comentam sobre ópera. Outros gostam muito de música para piano, especificamente. Pessoas que vão a concertos de pianistas, gostam de piano. Outras gostam de música de câmara, uma coisa mais sofisticada. E existe também a música popular em todos os lugares.

Nos concertos, em geral, predominam as obras para virtuoses.

Sim, mas, por exemplo, até hoje os cinco concertos de Beethoven, que já ouvimos até a exaustão, enchem o Municipal. As pessoas vão, gostam de ouvir concertos de Chopin, concertos de Schumann, concertos de Mozart, os mais conhecidos. Há grupos que só gostam de ouvir música contemporânea, mas passaram a escutar a música mais tradicional. E há grupos que freqüentam as bienais em Belo Horizonte, aqui no Rio, em São Paulo, em Brasília.

Qual é a sua opção pessoal?

Pessoalmente, eu gosto muito de tudo. Gosto de música contemporânea, gosto de música em geral. Gosto muito de Bach, gosto muito dos românticos, gosto muito dos clássicos, dos modernos também. E gosto do que faço com o Piazzolla, gosto da música popular, dependendo do que é. Há música popular de muito boa qualidade. Gosto menos de jazz. Aquilo que tem improvisação demais é para mim um pouco cansativo. Mas isto é uma coisa particular. De resto, gosto de tudo porque tudo me dá prazer. Quando a música tem qualidade, acho que tudo é bom.

Você tem algum compositor especial?

Especial, especial, não tenho.

E nos cursos de piano, quais são os compositores mais estudados?

Nos cursos de piano, aí temos de abrir um leque para o aluno poder escolher.

Existe o problema das dificuldades?

Sim, na universidade havia, imagino que continua havendo, grupos muito heterogêneos de alunos. Uns mais avançados que outros. Então os programas seriam muito livres nesse sentido. Por exemplo, em lugar de dizer, tem que estudar tal prelúdio e fuga ou tal obra no primeiro ano, você diz, tem que estudar um prelúdio e fuga, um concerto com orquestra e um estudo, por exemplo. Aí então, de acordo com o nível do aluno, escolhe-se uma obra que seja pertinente. Há alunos, por exemplo, que vão se formar tocando o segundo concerto de Brahms, e outros que só poderão fazer a música de Haydn ou o primeiro Beethoven.

O que interessa é abrir um leque, para que eles tenham o conhecimento de tudo, pelo menos na medida do possível. Porque é sabido que o que eles recebem na universidade, nos conservatórios, é apenas uma introdução à música. Eles vão estudar mesmo depois de sair de lá.

Eles têm tantas disciplinas para estudar, tantas coisas para fazer, que estudar o instrumento fica bem difícil. Hoje, num curso de instrumento, você tem muitas outras disciplinas. O que se fazia antes não existe mais. Por exemplo, quando eu estudei, o aluno estudava teoria, solfejo, uma história da música – pronto, acabou. E aí estudava piano, nem sei quantas horas por dia. Hoje não é mais assim. É muito difícil, a realidade é outra. Comumente as pessoas que entram na universidade já estão trabalhando, fazendo alguma coisa: ou dando aula, ou cumprindo meio expediente em algum lugar. Então toda essa realidade está mudando muito.

Ainda na área do ensino de música, qual a importância que você atribui a aprender a tocar piano a quatro mãos?

É a melhor maneira de pôr em prática elementos da performance que são essenciais a um bom instrumentista. Tocar com outro o mesmo instrumento requer generosidade em todos os aspectos: dividir o espaço físico, ouvir atentamente o que o outro diz, respirar junto, chegar a soluções musicais que tenham sentido para ambos os pianistas, usar o pedal de maneira a valorizar o resultado como um todo, “sentir” que duas pulsações podem ser uma só. 

Quais seriam os compositores mais fáceis para introduzir alguém na cultura da música erudita?

Eu não saberia dizer. Como temos uma interferência tão grande da televisão, do rádio, eu introduziria um pouquinho de tudo. Não sei se poderia dizer que coisas mais simples seriam mais acessíveis. Ou se é possível introduzir uma pessoa à música fazendo-a ouvir, sei lá, uma sinfonia de Haydn primeiro, afinal nosso ouvido tem quatrocentos e tantos anos de música tonal. É mais fácil saber o que pode vir na sequência, você mais ou menos adivinha. Mozart, algumas sinfonias de Beethoven. Acho que no início é talvez mais interessante introduzir música sinfônica. Eu sinceramente não saberia dizer como introduzir uma pessoa à música.

Mais pelo acaso?

É. Ouvindo. É muito interessante, porque nós temos parâmetros. Por exemplo, muitos alunos, quando começam com Bártok, acham um horror, porque o parâmetro era ouvir Mozart, ouvir Beethoven, ouvir Chopin. O Luis Carlos Justi, que faz parte do Quinteto Villa-Lobos, o oboísta com quem toquei durante muito tempo, contou que numa turnê foi com o Quinteto Villa-Lobos para uma cidade no Nordeste, onde o público nunca tinha visto nenhum dos instrumentos que ele levava. E eles tocaram desde Mozart até música contemporânea. As pessoas acharam tudo o máximo. Por quê? Porque elas não tinham parâmetro nenhum. A música contemporânea, para elas, foi tão interessante quanto o Mozart. É muito difícil responder essa pergunta, porque depende do que a pessoa ouviu até o momento. É complicado, porque ela tem um referencial auditivo que vai fazer com que rejeite algumas coisas, outras não. Não sei. Aquelas pessoas gostaram de tudo. Adoraram. Mozart, Beethoven, Schönberg foram para elas o mesmo barato.  Não havia referencial. Não tinham expectativa.

Quais os concertos que tocou de que mais gostou?

Com orquestra? O segundo de Brahms foi o que me deu mais prazer de tocar. Alguns concertos de Mozart, de Beethoven, o primeiro concerto de Chopin. Tocar com orquestra é uma coisa mais difícil. Toquei também os Choros 8 com orquestra, outras coisas de Villa-Lobos com orquestra. Foram trabalhos muito interessantes, mas o que realmente me deu mais prazer foi o segundo de Brahms. Faz muito tempo que não toco sozinha. Trabalhei durante muito tempo na área do ensino de música, e estudar para tocar sozinha requer muita dedicação.

Hoje em dia existe uma tendência para que os intérpretes se apresentem em concertos com a partitura aberta diante de seus olhos. Qual é sua opinião a respeito disso?

Dependendo da obra, isso é possível e não desmerece o pianista. Grandes pianistas, como o Sviatoslav Richter, com um repertório vastíssimo, começaram a tocar, com a partitura à sua frente, obras que sempre tinham tocado de cor. Creio que há muitas variáveis nessa questão.

Além de piano solo, existe a música de câmara. Poderia falar sobre isso e também sobre o Duo Caldi?

Fiz muita música de câmara. É o que eu mais gosto de fazer. Tocar a quatro mãos, tocar com a minha amiga que mora em Roma e que conheço há tantos anos (Mirta Herrera – pianista e professora de música radicada na Itália), enfim o nosso encontro foi sempre gratificante porque nos reuníamos para tocar obras de que gostávamos muito. Em 2011, a convite de meu filho Marcelo, começamos um trabalho de piano a quatro mãos muito, muito bom. Estamos programados para gravar um CD neste ano de 2014, e creio que faremos um registro bem bonito.

É importante fazer as coisas por prazer.

Por exemplo, os coros que aqueles professores têm no Colégio São Vicente com a garotada, de que falei há pouco. Isso é realmente uma coisa bem diferente do que acontece na maioria dos lugares. É difícil você conquistar uma garotada para fazer música por prazer. Ali todos estão querendo realmente cantar por prazer. Os meninos vão ao cinema, ao boliche, mas também vão ensaiar até as dez horas da noite. Isso é muito legal, mas é raro.

Segue a sua filosofia do comprometimento.

Exatamente, exatamente. Eu acho que é uma coisa que une as pessoas e que traz prazer. Esse é um dos valores que perdemos. Eu, por exemplo, gosto de ensinar, gosto muito de ensinar, tenho muito prazer em ensinar. A única coisa que me deixa fria com alguém é ver que essa pessoa não tem interesse. Alunos que não estão nem aí, não querem nada. Isso eu não gosto. Se eu tenho uma pessoa que apresenta dificuldades, então vamos trabalhar essas dificuldades. Se cada um trabalha dentro de seus limites, dentro de suas possibilidades, claro que vai fazendo progresso, isso é muito gratificante. Não faço expectativa nenhuma em cima de um aluno, não espero que o aluno faça isto ou aquilo, espero que ele desabroche naquilo que é capaz de fazer. Se conseguir isto, já está muito bom. Segundo, acho que o fato de eu poder passar conhecimentos, resolver alguma questão que possa facilitar, digamos assim, a compreensão de um assunto para uma pessoa que está ao meu lado, isso é para mim extremamente prazeroso.

Uma visão artesanal, mas prazerosa da música?

Prazerosa. Mas tem que ser. Eu não acho que exista nada que seja só como as pessoas dizem, ah, mas isso é muito difícil, muito árduo. É como o motoboy que adora trabalhar no seu ofício: ah, eu tenho que trabalhar vinte e quatro horas por dia. Mas ele trabalha vinte e quatro horas por dia porque quer e porque gosta, a menos que seja alguém que precisa trabalhar desse jeito para juntar um dinheiro para a sua família. Mas todos os que trabalham muito, de uma forma intensa, acham nisso um prazer. Quero dizer, há um prazer no trabalho. Não existe nada que você faça com muita intensidade sem prazer. Se você trabalha muito, infeliz o tempo inteiro, fica doente, não é possível.

Eu, por exemplo, quando sento e estudo durante muitas horas, digo muitas vezes, puxa, que trabalho árduo, tenho que corrigir este ponto. Mas o processo de estudar é algo que me dá prazer. Posso dizer, estudei tanto e isto não está saindo, mas amanhã vou ver de novo, e depois de amanhã de novo. Sabe, esse processo me dá prazer. Isso não me deixa infeliz.  Não é só tocar, existe o processo do estudo, da descoberta, de como você pensa que vai tocar aquela frase. Tocar piano não é só sentar e estudar piano. Estudar piano, como estudar música, é você estar ligado a esse assunto. Você experimenta como num laboratório. Acho que é por aí.

Por você, não vai acabar a música.

Ah, não, de jeito nenhum.

 

 


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