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Não Ficção

À Procura do Sítio do Picapau Amarelo entre as Histórias da Literatura Brasileira

Renata Cavalcanti Eichenberg

taubate-lobatoEra uma vez um menino de nome comprido, incapaz de se contentar com um único destino. Estudou Direito por determinação do avô e se descobriu escritor, brincando de jornalista no Minarete, periódico da cidade de Pindamonhangaba. Porém, foi o cargo de promotor no pequeno município de Areias que permitiu a José Bento Monteiro Lobato o definitivo mergulho na criação literária.

Seguiu-se a tentativa frustrada como fazendeiro que, por outro lado, rendeu-lhe a fama com a obra Urupês. Empenhado em compor uma literatura comprometida com as denúncias das mazelas nacionais, em especial, do campo, Lobato foi reconhecido na figura de Jeca Tatu. Nessa ânsia de não apenas escrever para divertir, mas, sobretudo, para alertar e emancipar o leitor, intuiu o papel que a literatura poderia ter na evolução do país. Já de posse da Revista do Brasil, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia, que, em pouco tempo, dominou o mercado cultural.

Seu pioneirismo, contudo, não previu a chegada de obstáculos fatais: a crise de energia e a mudança na orientação financeira do governo. Enfrentou a falência da empresa, honrando suas dívidas e ainda buscando força para solidificar a Companhia Editora Nacional. Sem perder o fôlego, mudou-se para o Rio de Janeiro, mantendo-se no ofício de escritor, colaborando para a imprensa e novamente lutando pelo progresso brasileiro. Nomeado por Washington Luís adido comercial nos Estados Unidos, trouxe de lá a certeza de estar no petróleo e no ferro o desenvolvimento do país e o empenho em denunciar as irregularidades e a corrupção da administração estatal. Nem a prisão diante das suas acusações foi suficiente para intimidá-lo, tornando-se ainda mais irônico e incisivo em suas delações, embora cego diante do fenômeno imperialista do modelo progressista americano.

Seu espírito criativo e incansável encontrou merecida recompensa na literatura para crianças, arte que iniciou em meados da década de 20. Inaugurando a literatura infantil no Brasil, Lobato esteve presente nas escolas e nos lares de crianças de diferentes épocas. Ciente da responsabilidade e do desafio de escrever para um público em formação, não mediu esforços para conferir qualidade artística a cada obra. Por conseguinte, o Sítio do Picapau Amarelo e seus personagens ultrapassaram as barreiras do tempo, ganhando vida própria além das páginas dos livros do autor, seja nos meios de comunicação de massa, seja nas narrativas orais de incontáveis leitores.

Uma biografia resumida dessa personalidade brasileira já é suficiente para atestar seu caráter múltiplo e, simultaneamente, renovador. Diante dessas peculiaridades, Monteiro Lobato certamente representa, para um tradicional historiador da literatura, muito desafio e sofrimento pela frente. Afinal, como enquadrá-lo na periodização literária sem desmerecer sua diversificada contribuição para as letras do país e para outros campos nos quais atuou com similar veemência?

Nessa tarefa, preocupados em sistematizar os acontecimentos literários de acordo com a evolução temporal, tais historiógrafos desfazem o mosaico lobatiano, imprimindo em suas obras apenas os pedaços cabíveis em seus esquemas perfeitamente encadeados. Documentar uma história, no caso, da literatura brasileira, implica, de fato, uma recuperação e uma organização coerente dos acontecimentos passados até a atualidade. Porém, como alerta Luiz Costa Lima (2006), a escrita de uma história, apesar de obedecer a uma necessidade antropológica, concebendo o que foi e o que fez o homem para se encontrar num determinado presente, não se resume numa investigação do tempo, mas no resgate da verdade ocorrida através dos tempos.

A verdade sobre Monteiro Lobato deveria, assim, estar impressa nas histórias da literatura brasileira. Contudo, sua verdade é estratificada, não cabendo, em uma ordenação linear, todas as suas esferas. Segundo Michel de Certeau, a história oscila entre dois pólos. “Por um lado, remete a uma prática, logo, a uma realidade, por outro é um discurso fechado, o texto que organiza e encerra um modo de inteligibilidade.” (2007, p.33) Tratando-se de um discurso linear, a realidade lobatiana é fragmentada para não ferir sua inteligibilidade.

O incômodo, entretanto, surge do caráter totalizante desse tipo de discurso. As seis obras aqui reunidas para verificação das verdades nelas contidas sobre o escritor paulista se intitulam “a” história da literatura brasileira, jamais “uma” história, prevalecendo a crença de haver em cada uma a absoluta verdade sobre a história literária nacional. Nas palavras de Costa Lima, “o oposto da crença não é a descrença, mas a dúvida.” (2006, p.23) Lança-se a dúvida, então: seria possível retratar Monteiro Lobato sem destacar sua literatura infantil?

Recorrendo a alguns estudos exaustivos do escritor, comprometidos em perfazer cada uma de suas verdades, pinçam-se, já nas primeiras páginas, constatações que refutam a questão levantada:

José Bento Monteiro Lobato, o nacionalista que lutou pelo petróleo brasileiro, que foi o editor arrojado, o escritor polêmico desde seu primeiro livro, o jornalista casual que ironizou e sempre incomodou os poderosos. Mas que também foi – e principalmente – o inaugurador da verdadeira literatura infantil brasileira. (KUPSTAS, 1988, p.5)

O escritor Monteiro Lobato é reconhecidamente um dos nomes mais conhecidos do nosso patrimônio literário. Tendo começado a redigir histórias para a infância há 60 anos atrás, tornou-se praticamente o responsável pela formação de, pelo menos, quatro gerações de brasileiros. E, incorporadas suas personagens e seu Sítio por outros meios de comunicação, como o rádio, o teatro, o cinema, a televisão e os quadrinhos, extrapolou os quadros unicamente literários, o que assegura e fortalece a perenidade de sua criação e de seu mundo de fantasia. Isso bastaria para consagrá-lo; porém, seu desempenho enquanto contador de histórias para crianças não esgota seu perfil intelectual, principalmente porque este perfil não foi apenas intelectual. (ZILBERMAN, 1983, p.5)

É válido ressaltar que ambas as obras não são destinadas ao estudo crítico da literatura infantil de Lobato, mas, como foi mencionado, à recuperação e à reflexão do legado múltiplo desse escritor. No entanto, não seria preciso ir tão longe, mesmo na obra de crítica literária assinada por Astrojildo Pereira, na qual reúne ensaios e notas de leitura, a peça fundamental do mosaico lobatiano é igualmente destacada no capítulo que oferece à biografia do escritor:

De início Lobato escrevia para as crianças com a mesma ou quase a mesma disposição de espírito com que escrevia para adultos. Mas pouco a pouco, no próprio processo de elaboração e reelaboração da obra, foi se inteirando da enorme importância, da grave responsabilidade de semelhante tarefa. Passou a executá-la com exemplar probidade artística e científica, em plena consciência do que fazia, e não parece difícil supor que nisto é que precipuamente reside o segredo do favor sem precedentes com que os pequenos leitores preferem os seus livros. (…) Foi esta sem dúvida a mais bela e cabal consagração que recebeu em vida, o bálsamo consolador dos seus dias derradeiros. E foi talvez na elaboração da literatura infantil que o gênio de Monteiro Lobato pôde realizar-se plenamente como escritor. Foi esta a sua aventura maravilhosa. (1963, p.96-97)

Nesse sentido, pressupõe-se encontrar o Sítio do Picapau Amarelo nas seis histórias da literatura brasileira selecionadas, uma vez que carregam nos seus títulos a intenção de abarcar na íntegra a historiografia literária nacional, seja em traços mais breves, seja em registros mais minuciosos. Todavia, tais obras, como foi salientado, ainda trilham o modelo tradicional do fazer história, defendendo a ideia de um progresso linear e cumulativo da cultura humana, que se manifesta na existência de épocas homogêneas e inconfundíveis, como define Heidrun Krieger Olinto (1986).

Nesse processo, os períodos literários são organizados e interligados por uma sequência temporal lógica e evolucionista. Conceitos como “a razão própria do Iluminismo” ou “a sensibilidade e o sentimento românticos” são perfeitamente entendidos e explicados, uma vez que tal sucessão de períodos, além de histórica, é também inteligível.  Não obstante, como adverte David Perkins, “qualquer esquema conceitual chama a atenção só para aqueles textos que se enquadram em seus conceitos, vê neles só o que seus conceitos refletem e, inevitavelmente, não abrange a multiplicidade, diversidade e ambiguidade do passado.” (1999, p.29)

Não há como haver, assim, a verdade absoluta sobre o passado literário do país nessas obras totalizantes, mesmo porque narrar por completo o passado é uma tarefa impossível para seja qual for o historiador. Nas palavras de Perkins, “qualquer narrativa parecerá incompleta e, de certa forma, arbitrária, pois qualquer evento pode ser disposto em sequências narrativas diferentes, a longo e curto prazo.” Porém, nessas escolhas, as verdades não podem ser distorcidas, caso contrário, o registro histórico perde sua razão de ser.

Daí a necessidade de existir novas formas de narrar o passado, permitindo o entrecruzamento entre termos gerais e particulares através do tempo, por meio da fusão entre sincronia e diacronia, de modo a abranger a variedade heterogênea de obras cronologicamente simultâneas. Os conceitos de verdade, homogeneidade e totalidade perderam relevância diante da impossibilidade de se escrever uma única, total e absoluta história da literatura, no caso, brasileira. Escrever, antecipa David Perkins, pressupõe narrar. Essa ação, por sua vez, parte de um desejo, de uma escolha a ser satisfeita. Movidos por interesses, escolhas, paixões ou desejos próprios, os historiadores devem criar, cada um, a sua história da literatura brasileira, a sua observação de um contexto e suas devidas consequências numa variação temporal. Nas palavras de Olinto:

A nova historiografia literária não demanda hipóteses gerais permanentes, mas formulações transitórias de validade limitada, que, mesmo assim, correspondem a consensos intersubjetivos negociáveis por comunidades científicas quanto a estratégias eficientes na solução de questões sentidas como problemáticas em função de certos interesses e paixões. (1986, p.17)

 Se os historiadores analisados no presente trabalho tivessem escrito uma nova história literária brasileira, certamente deixariam de lado a ordem linear e cronológica seguida, colocando em foco (por que não?) o autor ou a obra que mais os instigam para, a partir dele ou dela, contar uma história que não se inicia na era colonial ou no barroco culminando na contemporaneidade, mas que vem e vai no tempo de acordo com os diálogos estabelecidos entre a sua “paixão” e as diferentes realidades passadas-futuras-presentes. Como enfatiza Perkins, “os historiadores da literatura deveriam estar conscientes de quaisquer desejos que os motivem e deveriam perguntar-se se são esses os desejos que querem satisfazer”. (1999, p.4) Em contrapartida, nessa nova trajetória também deveriam tomar o cuidado de não construir uma obra fragmentária de uma totalidade desaparecida, como ressalta Hans Ulrich Gumbrecht. “Os discursos das histórias da literatura que procuram evitar tal recaída devem ser escritos no horizonte de discursos históricos integrados – já presente, ou pelo menos previsível em linhas gerais básicas.” (1986, p.238)

Igualmente para Gumbrecht, o estudo da história da literatura não tem mais como sustentar um caráter linear e evolucionista, uma vez que desapareceu o conceito de história como uma totalidade no momento em que os suportes de sua construção foram questionados e descartados:

De onde desapareceu a crença no estatuto ontológico dos conceitos teleológicos do desenvolvimento histórico – ou onde o valor de tais estruturas teleológicas foi rebaixado a modelos de construção de sentido historiográfico – surgiu um novo conceito de história da literatura. (1986, p.227)

Nesse sentido, entendendo a totalidade como fragmentada, não há apenas uma história da literatura, mas várias, que, apesar de fazerem parte de um todo maior, são únicas, podendo ser vistas separadamente. Contudo, ao isolar um fenômeno, não se pode desconsiderar as interligações que o influenciam. O pensamento anterior, dessa maneira, não é substituído pelo atual, mas articulado. Tem-se, assim, um paradigma instável, que não deve ser sinônimo de confusão, mas de necessidade de haver critérios para as escolhas feitas. Por isso, invalidando-se o conceito de verdade absoluta, entram em cena as versões possíveis, as plausibilidades, segundo Gumbrecht.

A pluralidade das histórias literárias é uma realidade concreta para o também teórico alemão Siegfried Schmidt (1986). Diante das inúmeras relações possíveis de serem estabelecidas entre a literatura e o contexto recepcional, o discurso historiográfico literário só consegue ser escrito no plural. As histórias da literatura, como destaca, são construções, jamais compilações, sendo um compromisso do historiador construir sua história do início ao fim, de maneira a existirem histórias literárias, mas nunca a história literária.

Entretanto, talvez alguns por acreditarem ainda na possibilidade de narrar uma totalidade, talvez outros por não terem presenciado em vida a evolução desses estudos, os historiadores aqui reunidos, José Osório de Oliveira, Alfredo Bosi, Massaud Moisés, Nelson Werneck Sodré, Antônio Soares Amora e Luciana Stegagno-Picchio, mantiveram seus interesses atrelados a uma cronologia, compondo narrativas lineares da história literária de uma sociedade. Nas palavras de Gumbrecht:

A sobrevivência da identificação da localização das obras na história e sua avaliação estético-literária, na prática da ciência da literatura, a procura de leis específicas, o desenvolvimento de argumentos sempre novos para defender a demanda da literatura e dos estudiosos da literatura de representar um saber histórico privilegiado – todas essas são indicações da persistência de derivativos teleológicos contra o pano de fundo de uma consciência histórica desprovida de concepções teleológicas -, fenômenos, portanto, que, na perspectiva da teoria da história, devem ser atribuídos à categoria da “simultaneidade do não-simultâneo”. (1986, p.228)

Diante disso, os fragmentos selecionados e ordenados temporalmente em busca do todo têm suas próprias totalidades ameaçadas, uma vez que, presos a um determinado contexto, sobressaem-lhes apenas os dados resultantes da concomitância entre a sua localização histórica e o julgamento estético correspondente. Desse modo, tais obras, ao obedecerem a “princípios que legitimam o valor cognitivo privilegiado de ‘grande literatura’” (1986, p.227), acabaram ocultando um fragmento de si mesma: a literatura infantil, mesmo quando tal fragmento não é personagem coadjuvante, mas protagonista. Afinal, Monteiro Lobato conta com aproximadamente 22 obras literárias, pelo menos 17 delas destinadas ao leitor mirim, sem levar em conta que uma delas, Reinações de narizinho, publicada em 1931, reúne 16 histórias editadas separadamente até 1930, sequência iniciada quase dez anos antes, quando lançou sua primeira obra infantil, A menina do narizinho arrebitado.

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A partir dela, a literatura infantil brasileira libertou-se do seu caráter pedagógico original, estimulando seu destinatário a apreender a realidade através de sua própria ótica, conferindo-lhe voz no ato de leitura e, portanto, liberdade. Nas palavras de Ligia Cademartori:

A leitura dos textos de Lobato possibilita uma nova experiência da realidade em que, ao mesmo tempo que são conservadas as vivências já adquiridas, antecipam-se possibilidades a serem experimentadas. É dessa maneira que o universo ficcional lobatiano propicia novas aspirações, instiga fins e pretensões que abrirão caminho a experiências futuras. Fugindo a todo o moralismo que costuma acompanhar muito de perto a produção do livro infantil, sua obra incentiva a investigação e o debate sobre questões a que o consenso e os valores estabelecidos já haviam dado resposta. É nessa proporção que a obra extrapola as expectativas de seus leitores, caracterizando-se pela ruptura com a moral oficial, com os preceitos religiosos e com as normas estatais. (1991, p.51)

 Em lugar de uma literatura emancipatória, tinha-se, até então, um texto normativo, preso ao pedagogismo vigente ao contexto de produção. Como resultado, o que predominava na época era o discurso monológico que, pelo seu caráter persuasivo, não abria brechas para interrogações, para o choque de verdades, para o desafio da diversidade, tudo se homogeneizando numa só voz, no caso, a do narrador. Tal discurso, uma vez dissipado por Lobato, foi substituído pelo diálogo entre narrador e leitor, permitindo o entrecruzamento dessas duas vozes, acrescidas de muitas outras a que o texto poderia dar espaço, o que, como enfatiza Cademartori:

não traz o caos, a dificuldade de compreensão, mas uma abertura para que muitas vozes se organizem – sufocando o discurso pedagógico persuasivo – e permitindo unidade na diversidade. Do entrecruzamento de vozes depende a dialética do reconhecimento na comunidade humana, pois na troca de palavras estão a resposta e o encontro do semelhante. (1991, p.24-25)

Assim, livrando-se de princípios normativos, Monteiro Lobato conseguiu criar uma literatura emancipatória que, adaptada à natureza infantil, eternizou-se através dos tempos, atraindo pequenos leitores de diferentes gerações, como aponta Regina Zilberman:

Por mais exacerbada que seja a fantasia do escritor ou mais distanciadas e diferentes as circunstâncias de espaço e tempo dentro dos quais uma obra foi concebida, o sintoma de sua sobrevivência é o fato de que ela continua a se comunicar com seu destinatário atual, porque ainda fala de seu mundo, com suas dificuldades e soluções, ajudando-o, pois, a conhecê-lo melhor. (2003, p.25)

Foi, então, no Sítio do Picapau Amarelo, na companhia da boneca Emília, de Dona Benta, Tia Nastácia, Visconde de Sabugosa, Pedrinho, Narizinho, entre outros, que muitos brasileiros se formaram leitores, e mais, escritores. José Osório Oliveira, nascido no ano de 1900, infelizmente, não teve o privilégio de crescer ao lado desses ilustres personagens, mas pôde constatar o sucesso da obra lobatiana junto ao leitor mirim. Por que não notar sua qualidade e inovação literárias em sua história da literatura brasileira?

Revista e ampliada em 1956, a obra de Oliveira, História breve da literatura brasileira, insere o escritor no capítulo intitulado “O descobridor do sertão”. Dedicando-se à obra regionalista de Euclides da Cunha, o historiador cita e comenta brevemente outros escritores empenhados no romance regional, entre eles, Monteiro Lobato, por meio de seu personagem Jeca Tatu:

Efetivamente, apesar de exagerada para efeitos de crítica social, a imagem de “Jeca Tatu”, poderosamente traçada por Monteiro Lobato no Urupês, está para o homem rural idealizado pelos literatos caboclistas como o índio verdadeiro, descoberto pelo general Rondon (“um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci”), está para o “Peri” do célebre romance de Alencar. (1956, p.107)

O nome do escritor só volta a ser novamente mencionado no capítulo relacionado ao Modernismo, apenas para registrá-lo também como contista preocupado em retratar o país:

Um contista de Minas Gerais: Rodrigo M. F. de Andrade, e outro de Pernambuco: Luís Jardim, vieram juntar-se ao Antônio de Alcântara Machado de Mana Maria (postumamente revelado), ao Mario de Andrade de Belazarte e a Marques Rebêlo, a João Alphonsus, a Aníbal M. Machado: contistas brasileiros, todos eles, e não, apenas, do Brasil – o que não quer dizer que no Ribeiro Couto-contista, como em Monteiro Lobato, não haja, também, brasileirismo – mais de temas, em todo o caso, que de expressão. (1956, p.139-140)

 Nada mais é referido sobre Monteiro Lobato. José Osório assinala em sua obra apenas um traço sucinto de uma das múltiplas trilhas desbravadas por esse escritor, deixando sua literatura para infância totalmente esquecida numa época em que as crianças brasileiras já se deliciavam com as aventuras no (e além do) Sítio do Picapau Amarelo. Mesmo distante das atuais reflexões e inovações no campo da história da literatura, nada o impedia de destacar o que já naquela época Lobato fazia de melhor: a literatura infantil. Talvez por preconceito ao gênero ou pela defesa ferrenha da periodização linear e homogênea da história literária nacional, seus leitores ficaram carentes de uma especial parte do mosaico desse escritor.

Ausentando a literatura infantil de Monteiro Lobato em sua história, Oliveira seguia a corrente vigente daquele tempo, primando pela evolução literária. No entanto, sabe-se hoje, que narrar uma história da literatura não implica simplesmente ordenar de forma contínua e passiva os acontecimentos numa linha temporal, na qual o realismo é superior ao romantismo e assim sucessivamente. Tal generalização dos fatos impede o registro da gama variada de escritores e obras em diferentes ou concomitantes espaços de tempo.

Todavia, a distância temporal entre esses atuais estudos e o contexto de produção da obra de José Osório Oliveira não o absolve do fato de excluir por completo a literatura para crianças elaborada por Monteiro Lobato. Subentende-se que nesta ultrapassada história linear, entram os cânones e saem os demais, denominados erroneamente de “literaturas menores”. Dentro dessa lógica, a literatura infantil lobatiana não seria um cânone? Como, então, ficar de fora? Resta o preconceito.

De acordo com Michel de Certeau, as reflexões atuais revelam os convencionalismos que limitaram a historiografia construída num passado recente, seja com relação à escolha dos assuntos abordados, seja referente à determinação dos objetivos que originavam tais estudos. Como exemplo, lembra os preconceitos visíveis na história religiosa francesa, que “privilegiavam os ‘católicos liberais’ frente aos ‘católicos intransigentes’ (…); ou então, preferiam ao ‘modernismo’, científico ou social, frente ao ‘integrismo’”. (2007, p.43) Voltando-se à historiografia literária brasileira, parecia, de certo, absurdo, incluir um “gênero menor” numa obra destinada à recuperação no tempo de um “gênero maior”, a literatura adulta.

Alfredo Bosi, nascido em 1936, certamente passou algumas férias no “sítio”, deslocando-se a diversos universos com o auxílio do pó de pirlimpimpim. Se, em último caso, tenha passado longe da porteira desse “sítio-mundo” de Dona Benta, em sua trajetória acadêmica, voltada, em especial, para a literatura brasileira, tomou conhecimento da importância do escritor para a evolução do gênero no país, registrando-a, mesmo que timidamente, em sua história da literatura, intitulada História concisa da literatura brasileira:

(…) às primeiras obras narrativas (Urupês, Cidades mortas, Negrinha) logo se seguiram livros de ficção científica à Orwell e à Huxley, de polêmica econômica e social, que desembocariam, por fim, na originalíssima fusão de fantasia e pedagogia que representa a sua literatura juvenil. (1994, p.215-216)

 Preocupado em inserir Monteiro Lobato no realismo, como escritor com intenções regionalistas, basta-lhe admitir que o autor foi um tanto além desse adjetivo “regional”, assumindo-se “um intelectual participante, que empunhou a bandeira do progresso social e mental de nossa gente”. (1994, p.215) Prossegue salientando o papel de Lobato dentro do Pré-Modernismo e a sua relação com a Semana de Arte Moderna. Disso tudo, como pontua Bosi, “permanece o ficcionista de Urupês, Cidades mortas e Negrinha” (1994, p.216). E é sobre essas obras que o crítico vai se debruçar nas linhas seguintes, indicando “os limites da arte lobatiana”. Limites? Bosi mesmo admite que sua conclusão parece “colidir com a relevância da figura humana que vive na história brasileira onde já assumiu um papel simbólico”. (1994, p.217) Talvez faltou ao estudioso apresentar e analisar aquilo que Lobato mais fez e inovou: sua literatura infantil. Nenhuma obra é citada, nem em nota de rodapé, quando lista as “obras de ficção” do autor. O que elas são, então?! Ensaios, jogos, livros didáticos?! Para Bosi, simplesmente não são, uma vez que não as registra.

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Massaud Moisés deve ter acompanhado, sob o então olhar infantil, muitas das publicações de Lobato em torno do Sítio do Picapau Amarelo. Na sua História da literatura brasileira, dividida hoje em três volumes, Monteiro Lobato encontra-se no segundo, que carrega o subtítulo: “Realismo e Simbolismo”. Pelo índice, localiza-se o escritor na segunda parte da obra, dedicada ao Simbolismo, quarto e último capítulo, intitulado “Belle Époque”. Ao listar a produção lobatiana, Moisés não ignora a literatura infantil, embora não a destrinche nem a inclua na ordem cronológica da listagem, como faz com as obras não literárias:

Faleceu a 5 de julho de 1948, deixando, além de Urupês, as seguintes obras: Cidades mortas, contos  (1919), Idéias de Jeca Tatu (1919), Negrinhas, contos (1920), A onda verde, jornalismo (1921), O macaco que se fez homem, contos (1923), Mundo da lua (1923), O presidente negro ou o choque das raças, romance (1926), Mr. Slang e o Brasil (1927), Ferro (1931), América (1932), Na antevéspera (1933), O escândalo do petróleo (1936), A barca de Gleyre, correspondência literária (1944); e a literatura infantil. (2001, p.406)

No parágrafo seguinte, Moisés admite três diferentes caminhos trilhados por Lobato: o do livro infantil, o do ensaio e o da literatura em geral, justificando sua escolha em destacar o terceiro:

(…) quer para a história da literatura infantil, quer para a luta em prol de nosso desenvolvimento sócio-econômico-cultural, quer para a evolução literária nacional, (Monteiro Lobato) representa figura de primeira plana. Obviamente, em nosso caso, a concentração na terceira modalidade impõe-se pela própria natureza, sem menosprezo pelas outras, imprescindíveis a uma visão completa do autor como intelectual e homem de ação. (2001, p.407)

Nesse caso, o crítico assume não oferecer ao leitor um estudo completo da obra lobatiana, uma vez que deixa de lado sua produção infantil, como se fosse possível separar a pipoca do milho que a origina, e esse do sabugo do qual fora separado. Não parece, pois, se tratar da escolha de um fragmento, mas da seleção de uma parte desse fragmento em detrimento de outra. Ao não incluir a literatura infantil na lista de obras publicadas do autor, Moisés não estaria a menosprezá-la, vestindo-se daquele preconceito salientado por Michel de Certeau? Tudo indica que sim, pois, ao virar a página, o leitor depara-se com a seguinte afirmação: “com a obra de estréia (Urupês), Lobato selava o seu destino para sempre; publicasse apenas aquele livro, e decerto seu nome ocuparia idêntico lugar na evolução de nossas letras.” (2001, p.408) Mas que letras são essas que não aceitam a literatura para a infância? Parecem ser as letras que seguem uma história evolutiva, uma periodização estanque, na qual as particularidades se perdem na constante tentativa de estabelecer uma concomitância entre história e estética literárias. Parecem ser as letras que se preocupam, como denuncia Heidrun Olinto, “em categorizar uma época a partir de etiquetas artificiais que sugerem milagrosa unidade, homogeneidade, identidade e estabilidade garantida dentro de determinados limites temporais.” (1986, p.37)

Seja como for, Moisés prossegue, tratando de denominar a prosa lobatiana:

Sua ficção, ao mesmo tempo que não era do ensaísta, visto recusar-se a veicular ideologias ou programas éticos, distanciava-se da prosa lírica em voga no Simbolismo. Filiado por formação e gosto, ao Realismo e Naturalismo, (…) a sua ficção é realista, ainda que dum realismo espontâneo, paredes meias com o ‘sorriso da sociedade’. (2001, p.410)

E assim finaliza sua abordagem:

Se a literatura para adultos tem sido ofuscada pelo brilho do homem engajado em campanhas pioneiras de redenção nacional e pelo alcance da literatura infantil -, nem por isso deixa de representar uma contribuição que por si só faria o renome de qualquer escritor. (2001, p.411)

Diante do reconhecimento da importância de Monteiro Lobato para a evolução do gênero no Brasil, por que deixar suas obras infantis para um capítulo à parte, externo ao seu trabalho? Não se trata de literatura também?! Não pertence ou pelo menos dialoga com o objeto de análise: a literatura brasileira?! Se o compromisso em escrever uma narrativa linear da história das letras do país impede que o autor drible o tempo, muito menos parece permitir que ele estabeleça relações com as diferentes peculiaridades de um mesmo escritor, prejudicando a própria história que construiu, pois, como afirma Gumbrecht, “os textos literários são um campo privilegiado para a representação de situações pré-conscientes de necessidades” (1986, p.234), sendo capazes, assim, “de fornecer uma representação mimética da ação e do comportamento passados.” (1986, p.232) Nesse sentido, se eles conservam a sua atualidade através dos tempos, como ocorre com as obras infantis lobatianas, esses estudos almejam uma totalidade que só pelo aspecto aqui abordado já desfalece.

Situação semelhante ocorre na História da literatura brasileira escrita por Nelson Werneck Sodré, publicada originalmente em 1938. Mesmo depois de inúmeras edições revisadas e atualizadas, a literatura para infância do escritor paulista não mereceu espaço. No capítulo intitulado “O regionalismo”, por entre o subcapítulo “Monteiro Lobato e o Jeca Tatu”, Lobato é apontado como o escritor responsável pelo fim do regionalismo:

Com Monteiro Lobato o regionalismo chega ao fim, dentro dos moldes que haviam presidido o seu desenvolvimento. Ao estrear com os contos de Urupês (1918), o escritor paulista, ao mesmo tempo que ajuntava ao gênero elementos novos, acentuava as suas deficiências e, principalmente, os seus desvios, e liquidava-o. (1995, p.416)

Criticando a técnica narrativa do escritor e responsabilizando seu personagem Jeca Tatu pelo extermínio do regionalismo no país, Sodré revela-se ainda mais imprudente. É claro que o historiador se refere ao final do regionalismo lírico, originado na prosa romântica, mas ele precisa deixar clara essa ideia. Um teórico da história da literatura não pode afirmar que uma forma, uma técnica, um gênero estilístico pode simplesmente se extinguir, barrando a possibilidade de outros autores, em outros tempos, voltarem seus olhares para a prosa regionalista ao seu modo, seja ele romântico ou não:

Jeca Tatu era falso justamente pela verdade unilateral de sua forma exterior – sob a aparência da preguiça, da ignorância, da doença, estava o drama profundo. Resultando num libelo às avessas, o tipo era condenatório da vítima. Lobato reconheceu isso depois, o que tem importância apenas biográfica. No conjunto, tendo realizado um tipo, que é um dos máximos da ficção, o regionalismo se esgotava com ele. (1995, p.417)

No que diz respeito à literatura infantil de Monteiro Lobato, Sodré apenas a menciona na nota de rodapé referente à biografia do escritor ao final do capítulo sobre o regionalismo brasileiro. Diz ele, “escritor e editor, Monteiro Lobato se tornou uma das figuras mais importantes da literatura brasileira no tempo. Essa importância e a notoriedade consequente cresceram ainda com a sua obra destinada à infância.” (1995, p.427)

Se a construção narrativa de Lobato, para Sodré, é deficiente – ele mesmo escreve, “os contos raiam muitas vezes os limites da anedota, ou não se completam” (1995, p.416) -, se apenas a obra Urupês, representada pelo personagem Jeca Tatu, merece ser destacada, como ele pode afirmar, quando redige a biografia do escritor, que ele foi uma das figuras mais importantes da literatura brasileira? E como pode ainda assegurar que tal renome apenas cresceu com a sua obra infantil? Não estaria nela, principalmente, o seu sucesso através dos tempos? Para Sodré, assim como para Bosi e para Moisés, não. Segundo eles, definitivamente a obra para infância não modificou o papel de Monteiro Lobato na literatura brasileira.

Apenas ao final do capítulo referente ao Modernismo é possível encontrar mais algumas linhas dedicadas ao escritor, “tido como inimigo do Modernismo, Monteiro Lobato foi, na verdade, um renovador da prosa, fazendo-a simples, fácil, correntia.” (1995, p.559-560) O historiador esqueceu-se de mencionar que, além de renovador da prosa, Lobato foi inovador da prosa destinada ao leitor mirim. O inovar lobatiano, pelo que o tempo indicou, foi mais importante que o seu renovar, mas Sodré não reconheceu isso em vida.

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Professor e antecessor de Massaud Moisés na cátedra de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), Antônio Soares Amora parece ter sido mais influenciado pelo professor português Fidelino de Figueiredo, mestre de ambos. Habituados ao ensino da literatura apenas como história literária, dirigida sobretudo à memorização, as aulas de Figueiredo, como testemunhou Amora,

foram uma surpreendente demonstração de procedimentos renovadores: em vez de episódios histórico-literários, de minúcias biobibliográficas, de uma abundância de datas e de teses quase sempre polêmicas, o que se teve (…), foram, em princípio, tão só aulas de leitura de um texto literário. (1992, p.20)

Apesar de julgar ultrapassado o ensino da literatura por meio da periodização linear e evolutiva, Amora manteve tal recurso ao redigir a sua historiografia literária brasileira. Porém, as inovações de seu mestre respingaram em sua obra, uma vez que considera e destaca o gênero infantil de Monteiro Lobato quando se destina à biografia do escritor no capítulo VI, “Era nacional: época do simbolismo (1893-1922)”, subcapítulo “Romance e conto”. Ao contrário de Sodré, bem como dos demais autores até aqui salientados, Amora compreende a inovação da literatura para infância protagonizada por Lobato como um ato de renovação da literatura brasileira:

Mas o escritor de ficção não ficaria nos primeiros êxitos; só que agora entraria por outro caminho de renovação da literatura nacional – a literatura infantil, em que ainda maiores vieram a ser seus triunfos e sua projeção no Brasil e no estrangeiro (Reinações de Narizinho; Viagem ao céu; O Saci; Caçadas de Pedrinho; Emília no país da gramática; Aritmética de Emília; O Picapau Amarelo, etc.) (1968, p.18)

 Mesmo mais sucinta que as obras anteriormente analisadas, é nela que pela primeira vez são citados os livros infantis de Monteiro Lobato. É nela também que o gênero infantil torna-se a peça mais importante da biografia do escritor:

Ao morrer era, dentro e fora do Brasil, dos mais prestigiados dos nossos escritores e intelectuais. Começou como articulista e contista, dono de estilo castiço e sedutor, e desassombrado na luta pela formação da nossa consciência das duras verdades acerca da vida rural brasileira, na área do caipira ou do Jeca Tatu (figura que imortalizou) e dos erros de nossa realidade política, social, mundana, intelectual e econômica (a mania da imitação ou o macaquismo; a subserviência ao capitalismo internacional; o carneirismo das massas eleitorais; o “meufanismo” cego). Terminou sua vida como notável contador de histórias para crianças. E ao escritor infantil pode faltar algo de ensinamentos morais e de edificação da bondade (intenções que declaradamente não teve), mas não faltam sedução e capacidade de ensinamento da realidade da vida. Seus heróis infantis (Narizinho, Pedrinho, Emília, Rabicó, o Visconde de Sabugosa), de parceria com Dona Benta e Tia Anastácia, negra velha, encanto da criançada, ficaram, tal qual o Jeca Tatu, na galeria das imperecíveis figuras da literatura brasileira. (1968, 138-139)

Embora defensor de uma literatura infantil pedagógica, ao condenar justamente o que Lobato fez de melhor para a criança, a sua emancipação como leitora, Antônio Soares Amora distingue-se dos historiadores anteriores ao incluir a literatura infantil dentro do panorama da literatura brasileira sem menosprezo ou preconceito. Admitindo eternos os personagens do Sítio do Picapau Amarelo, bem como o personagem de Urupês, Amora entende e valoriza a diversidade do escritor paulista, sem separar o milho da espiga, como se fossem todos únicos e independentes e não partes imprescindíveis de uma mesma natureza. Deixando de lado, por um momento, a homogeneidade característica da sua narrativa linear e evolucionista, ele funde estudos sincrônicos e diacrônicos, compreendendo a variedade heterogênea da obra do escritor paulista, sem necessidade de esconder suas partes em prol de uma classificação em função da marca unificadora do período que as gerou. Pena não ter atentado para a qualidade artística dessa “parte” (fundamental) destinada ao leitor em formação, condenando-a por despir-se de moralismos e pedagogismos.

Luciana Stegagno-Picchio nasceu um ano antes de Monteiro Lobato publicar seu primeiro livro para crianças. Contudo, ela certamente não enveredou pelas fantasias e aventuras propiciadas pelo “sítio-mundo” do Picapau Amarelo quando pequena, uma vez que nasceu na Itália. Durante a sua infância, os livros de Lobato circulavam apenas em território nacional. Entretanto, como estudiosa da literatura brasileira, em sua fase adulta, não pôde deixar de cruzar a porteira do “sítio”. E isso se torna evidente em sua obra quando o foco é o escritor paulista, apesar de também conservar a linearidade em sua história da literatura.

Ele se encontra no capítulo décimo primeiro, “A prosa do parnaso ao crepúsculo: instinto de nacionalidade e literatura regionalista”, subcapítulo “Regionalismo participante: o caso Monteiro Lobato”. Picchio mescla biografia e obras, de maneira a esboçar o mosaico do escritor, ainda que sem deixar de amarrá-lo a um estilo ou escola:

A inclusão de Lobato entre os escritores pré-modernistas é motivada pelo caráter nacionalista e participante de uma obra literária instrumental e instrumentalizada como poucas e, consequentemente, inavaliável no plano da pura realização poética. Ao passo que a sua colocação entre os narradores regionalistas decorre do êxito de Urupês (1918). (1997, p.396)

E em meio a esse mosaico, surge a pergunta: “De sua obra, o que resta?” Como resposta, o destaque para a produção lobatiana infantil:

Antes de mais nada (resta) a narrativa para crianças, um bloco único (dezessete volumes) na literatura mundial do gênero, onde o gosto a um tempo imaginoso e didascálico, fervorosa e folcloristicamente nacionalista de Lobato chocava-se com a necessidade de vestir de panos nacionais as velhas estórias de Esopo e de La Fontaine, de substituir bruxas e gnomos das florestas da Europa central pelas onças e jabutis, e ao mesmo tempo educar sem constranger nem falsear, ensinar sem aborrecer. (1997, p.397)

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Pela observação registrada quanto à nacionalização e modernização do folclore pelas mãos de Lobato, Luciana certamente não apenas passeou pelo “sítio” como também pelos estudos relativos à literatura para infância, ao contrário de Amora. Os críticos da área têm trabalhos minuciosos sobre o tema, como é o caso de Regina Zilberman:

Localizando a ação do presente de seus leitores e desdobrando as peripécias com base no cotidiano das personagens, Monteiro Lobato teve os meios para romper com a tradição literária destinada aos jovens de seu tempo. Essa era caudatária do folclore europeu, constituído por narrativas de transmissão oral, recolhidas, e consequentemente cristalizadas, nas compilações dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen. (…) É com esse panorama que Lobato rompe, o que não significa que o ignore. No entanto, somente o incorpora quando o submete às regras dos moradores do Sítio do Picapau Amarelo; e, sobretudo, quando o moderniza, procedimento que o leva a renovar a linguagem dos heróis do passado, assim como suas atitudes, condição que elege para evitar o sepultamento definitivo deles. (2003, p.155-157)

Esse fato evidencia o olhar, de certa forma, plural da autora, uma vez que leva em consideração, em seus estudos sobre a literatura brasileira, aquela destinada ao público infantil. Isso parece não ocorrer com os outros autores abordados, com exceção talvez de Antônio Soares Amora. É válido ressaltar que as obras aqui analisadas foram selecionadas a partir de três critérios. O primeiro apurou apenas aquelas que têm como objetivo abranger a história da literatura brasileira. O segundo considerou somente obras que carregassem no título essas três palavras especificadoras: história – literatura – brasileira, acrescidas ou não de outras. O terceiro critério exigiu obras atualizadas e revisadas após a morte do escritor paulista (1948), quando sua literatura infantil já se fazia obrigatória na vida das crianças brasileiras.

Apenas Amora e Picchio demonstraram reconhecimento ao gênero para infância. Picchio ainda avança ao valorizar a inovação de Lobato no campo das letras infantis, sem menosprezar a emancipação do leitor mirim, como fez Amora. Tal fato talvez se explique pela distância existente entre as datas de edição dessas duas obras. Em 1964, quando a historiografia de Antonio Soares Amora é publicada pela sétima vez, os estudos teóricos sobre a literatura infanto-juvenil certamente ainda engatinhavam. Só nas últimas duas décadas eles ganharam renome e espaço acadêmicos. Logo, Luciana Stegagno-Picchio, com sua História da literatura brasileira revista e atualizada no ano de 1997, foi a única a apresentar o escritor Monteiro Lobato, senão por completo, pelo menos em sua particularidade mais densa e rica, sem desmerecer seu processo criativo inovador.

Foi, sobretudo, numa história literária brasileira narrada sob o olhar estrangeiro que a obra infantil lobatiana mereceu determinada atenção e respaldo:

Reinações de Narizinho (…), O saci, Viagem ao céu, Caçadas de Pedrinho são obras-primas sobre as quais se formaram cinqüenta anos de infância brasileira, tanto que entre as fontes da cultura dos intelectuais de hoje faz-se igualmente mister indicar, ao lado dos simbolistas franceses ou dos narradores russos ou norte-americanos, o porquinho Rabicó e a sua esposa dividida, a anticonformista boneca Emília, consciência super-ego (até o advento da estória em quadrinhos) de todos os garotos do Brasil, saboreadores das estórias que se contam no Sítio do Picapau Amarelo. (1997, p.398-399)

Todavia, nenhum dos seis autores deixou de lado o modelo linear e evolucionista para escrever sua história da literatura brasileira, prevendo, antes de tudo, “a” história no lugar de “uma” história, numa visão totalizante e não fragmentária sobre essa matéria tão viva e mutante. De acordo com Siegfried Schmidt (1986), apesar de a história literária ser claramente uma instituição política e social, muitos estudiosos da literatura insistem em torná-la uma ciência legitimatória, preocupados, especialmente, em justificar o presente pelos acontecimentos passados. Os historiadores literários, segundo o teórico, precisam ter em mente que não tratam de matérias objetivas ou de acontecimentos históricos auto-evidentes. Ao contrário:

Sempre trabalham com “matérias” interpretadas em contextos cognitivos presentes. Conseqüentemente, não existe algo como um critério objetivo para histórias literárias admissíveis, aceitáveis ou necessárias. Em geral, histórias literárias podem ser tão multifacetadas quanto os historiadores que as escrevem. A diferença entre histórias literárias é constituída por diferenças em intenção, interesse, legitimações e nos procedimentos ou métodos aplicados. Um historiador literário autoconsciente deve, portanto, ser explícito em relação a questões sobre propósitos, interesses e necessidades de grupos sociais, comunidades de pesquisadores ou outras circunstâncias em função de que ele pretenda construir uma história literária. (1986, p.116-117)

Porém, entre essas diferenças, não se pode deixar de lado o compromisso com a coerência dos fatos. Maussaud Moisés, por exemplo, optou por não incluir a produção lobatiana para infância, em seu estudo. Separando literatura da literatura infantil, interessava-lhe apenas, como ele mesmo frisa, o Monteiro Lobato que “marcou presença na evolução literária nacional”. Mas não seria na revolução da literatura para criança que Lobato realmente se destacou no cenário das letras brasileiras? Desse modo, o autor acabou pecando pela transmissão de uma informação contraditória ou incompleta, de maneira a prejudicar o leitor de sua obra. Dentro dessa perspectiva, Moisés pode ser enquadrado naqueles historiadores literários que, de acordo com Schmidt, têm sido movidos por interesses políticos, normalmente guiados por intenções educacionais, culturais ou estéticas, ou mesmo por exigências quase naturais do “lugar de onde fala” e do público ao qual seu livro se destina, esquecendo-se do seu papel primeiro de narrar uma história da literatura brasileira repleta de particularidades.

É importante esclarecer que a insistência em defender a presença da literatura infantil escrita por Monteiro Lobato nas histórias da literatura brasileira aqui abordadas explica-se justamente pela sua importância na evolução do gênero no país. Apesar de Lobato também figurar no cenário das letras destinadas “ao público adulto” – na falta de outra expressão mais adequada -, sua produção para criança não deve ser desprezada diante de tamanha relevância. A ausência de nomes cruciais da literatura para a infância nessas obras é, de certa forma, aceitável diante das limitações sofridas por esse tipo de trabalho quando guiado por critérios, em especial, lineares e evolucionistas. O mesmo ocorre com escritores que, apesar de terem produzido livros infantis, destacam-se, sobretudo, por seu legado destinado ao público adulto, como, por exemplo, o gaúcho Erico Verissimo.

Essa omissão, em contrapartida, não pode se repetir quando o foco é Monteiro Lobato, uma vez que é na literatura infantil que o leitor encontra sua verdadeira reforma literária. Como não relacionar o escritor ao seu “sítio” de aventuras fantásticas? Isso seria, praticamente, uma missão impossível, talvez o mesmo que apresentar o próprio Erico Verissimo sem mencionar O tempo e o vento. O resultado poderia ser catastrófico, não pelo fato de valorizar uma obra em detrimento de outra, mas por uma condição social e histórica. As peripécias ocorridas no Sitio do Picapau Amarelo, acima de qualquer outra produção de Lobato, mudaram os rumos da literatura destinada aos pequenos, sustentando um caráter vanguardista que carece nas demais obras do autor, independente de sua qualidade estética. Tal inovação, responsável por tamanha repercussão no público leitor de diferentes tempos, parece ser elemento indispensável para historiadores literários preocupados em inserir em suas histórias o legado do escritor paulista.

Por isso, os teóricos hoje condenam os modelos tradicionais de narrar a história. A possibilidade de se gerar uma rede de múltiplos processos interativos e instáveis obriga o historiador atual, como afirma Heindrun Olinto, “a repensar a esfera do literário de modo mais completo e a refletir sobre as próprias circunstâncias sócio-históricas dos fenômenos literários no circuito da produção e da recepção”. (1986, p.20) A literariedade da obra também deve se valer do seu contexto recepcional, responsável por torná-la via comunicativa e transformadora, como ocorre com o acervo infantil lobatiano. De acordo com Olinto:

Um texto vive como texto literário tão somente nestas constelações acionais sociais concretas em sistemas históricos definidos por determinados processos de socialização e determinadas necessidades, capacidades cognitivas, sentimentos, intenções e motivações gerais e, ainda, por condicionamentos políticos, sociais econômicos e culturais que correspondem aos ‘sistemas de pressupostos’ de sua ação. (1989, p.30)

Afinal, as marcas específicas da literatura não se confundem com propriedades exclusivas do texto, mas apontam para a relação comunicacional. Tais conclusões são oriundas dos estudos realizados por Hans Robert Jauss no final da década de 70, quando considera “o estudo crítico dos processos recepcionais tributário do saber histórico, porque as concretizações do texto literário precisam ser explicadas pelo contexto histórico e social da recepção.” (1986, p.27-28)

Quando se fala em Monteiro Lobato, espontaneamente, fala-se em literatura infantil brasileira, resultado de um contínuo e, portanto, vitorioso processo recepcional. Não há dúvidas de que o Sítio do Picapau Amarelo e seus personagens deliciosamente nacionais foram determinantes na trajetória desse gênero. Na companhia deles, Lobato não só inventou surpreendentes narrativas, como também adaptou clássicos da literatura e de obras européias, reinventou o folclore e a mitologia ocidental, além de ter se aproveitado da história, da matemática, da ciência e da geografia. De acordo com Regina Zilberman, o escritor “só não fez poesia para criança, tornando-se assunto de filmes, peças de teatro, histórias em quadrinhos e seriado de televisão. (…) Por essas e por outras é que, sozinho, é quase um sistema literário inteiro.” (2005, p.33) Não foi à toa que o próprio ofício de escrever para crianças passou a ser um desafio muito maior, uma vez que não bastava mais simplesmente ensinar ou adaptar. Era preciso falar a mesma linguagem, tornar-se um verdadeiro amigo, uma criança também, capaz de instruir, divertir e emocionar o leitor mirim. Daí por que a literatura infantil no Brasil, após ter sido despertada pela obra lobatiana, enfrentou um longo período de criações nos moldes desse autor até, enfim, na década de 70, ingressar em uma fase de rebentação literária.

Ater-se ao valor recepcional de uma obra, atrelada ao processo de leitura, destrói os conceitos de unidade, linearidade, presentes nos modelos historiográficos tradicionais. Além disso, a literatura infantil, orientada de antemão a um consumo muito específico, que se dá sob a chancela de instituições sociais como a escola, cria problemas sérios para o teórico e o historiador que dela se aproximam munidos dos instrumentos consagrados pela história da literatura quando linear, periodizada, totalizante. Nessa perspectiva, dificilmente há espaço para a inserção do gênero, posto que ele é, ao mesmo tempo, um fragmento da literatura do país e uma projeção da história da escola e da leitura, realizando um constante diálogo entre essas áreas. Por outro lado, o abandono dessa literatura pelos críticos historiográficos ao analisarem a obra do escritor que a emancipou, omite o papel que seus textos tiveram em uma sociedade em diferentes tempos. Como ressalta Regina Zilberman, os livros que Monteiro Lobato escreveu com o pensamento na criança obtiveram grande sucesso a ponto de permitir-lhe viver quase que exclusivamente da literatura, motivando as editoras a publicarem autores nacionais:

Não fosse assim, elas abrigariam apenas autores estrangeiros em tradução ou facilitariam as adaptações de obras consagradas, como aconteceu no início do século XX. Como vender livros para a infância dava lucro, as editoras procuraram investir em outros nomes, fato que conferiu consistência e durabilidade à literatura destinada às crianças do Brasil. ( 2005, p.34-35)

Nessa corrente, o “sítio” e suas riquezas ficcionais excederam o suporte literário, como se vivessem independentemente de quem os criou. A popularidade da obra de Lobato torna-se indiscutível frente a tantas referências presentes na sociedade, seja em adaptações, brinquedos, jogos, decorações, evidenciando que “a realidade fabulosa que saiu de sua cabeça acabou sendo maior, mais poderosa e mais duradoura do que ele mesmo cogitou.” (2005, p.22). Talvez hoje nem seja necessário ler Monteiro Lobato para tomar conhecimento desses seres e cenários, mas só lendo-o é possível encantar-se por eles e, assim, entender sua repercussão junto ao público e, finalmente, estabelecer os múltiplos diálogos possíveis com as histórias da literatura do país. Contudo, apenas Picchio acenou realmente essa alternativa, justo quem certamente não teve a oportunidade de passar férias escolares no Sítio do Picapau Amarelo. Amora chegou muito perto da colega italiana, porém, talvez por desconhecimento da teoria literária infantil, condenou o que há de melhor na prosa de Lobato dedicada à infância.

Voltando ao pensamento de Heidrun, ela ainda suscita a questão: onde encontrar um historiador plural que, movido por suas paixões,

respeite a periodização múltipla contraditória, enfatize a simultaneidade de processos heterogêneos não-sincronizáveis e sintetizáveis, perceba durações diferenciadas, saiba ser sensível a cesuras ínfimas e vagas, aos ritmos nervosos e longuíssimos, sucumba ao encanto da visão retrospectiva que apaga, ilusoriamente as diferenças, aprenda a ter paciência com infindáveis reorganizações e indecisões e sinta alegria no meio do caos de mudanças caleidoscópias, intransparentes e provisórias que ele próprio construiu? (1986, p.42-43)

A resposta não está nos estudiosos aqui analisados que, mesmo revisando e atualizando suas histórias, nelas mantiveram seu caráter linear e, por conseguinte, evolucionista e hierarquizante, no qual a literatura destinada à infância ainda carrega o rótulo de “gênero menor”, apesar dos avanços constatados nos trabalhos de Antônio Soares Amora e, em especial, de Luciana Stegagno-Picchio. Mas possivelmente a resposta estará naquele que admitir que a reflexão literária sobre a literatura infantil não deixa de ser uma contribuição significante para entender o fenômeno literário em novas e múltiplas dimensões contingentes, posto que suas formas de articulação com a vida social ganham novos contornos quando contempladas também por um fragmento de si mesma. O Sítio do Picapau Amarelo não pode constar apenas nas histórias da literatura infantil brasileira. Por ele, podem ser iluminadas zonas de penumbra que a circulação restrita da produção literária lobatiana não-infantil impede que sejam observadas. Por ele somente, a literatura brasileira pode ganhar mais uma história.

 

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