À memória de
José Fernando Cirne Lima Eichenberg
Sigo a admirá-la. Não perdeu o hábito de escovar o cabelo antes de dormir. O movimento soa mais leve, as mãos resvalam. Tento esconder o porta-retrato. Ela é viva. Segue-me, o peito corajoso. Os olhos brilham. Derramam.
Procuro a porta, a maçaneta, a fechadura. O pé de coelho ainda enfeita a chave de casa. Não tenho força para girá-la. Eles me puxam. Querem que eu fique mais um pouco. O menor tem problemas de matemática para resolver. O mais velho não sabe cavalgar sozinho. E a menina me pede conselhos.
A mãe convence-os a desistir. Gesticula. Eles, atentos. Passa a mão no cabelo. Os dedos desembaraçam os fios. Lado esquerdo, meio, lado direito. Trança. Consigo refazer sem olhar. Aprecio cada detalhe. A respiração em silêncio. Ela não percebe.
Rendem-se ao som do passado. De novo aquela música. Pensei que tivesse escondido também o disco. Tento fugir, mas me prendem de novo. A filha grita. Não sei mais dar conselhos. Esqueci as leis, as contas, o churrasco, os dados, as necessidades. Menos ela. Tampouco eles.
O desespero é sufocante. Não agüentam. Deixam-me sozinho na sala, em meio àquele vazio esbranquiçado. O som é o mesmo. Hipnotiza. O sentimento infiltrando-se na cristaleira. Confiro as heranças. Os copos de vinho nunca foram usados. O açucareiro de prata, só no meu último aniversário. Fizera questão de preparar os drinques na companhia dos amigos. Muita vodka, frutas, gelo e açúcar, antes e depois.
Derrubo a memória. Não quero carimbar lágrimas na poltrona. Suja e envelhece. Vou atrás do porta-retrato. Perco o último refúgio. Ela havia achado. Meus olhos se fecham. Começo a lembrar.
Foi numa manhã nublada. O mormaço disfarçava o frio. A posição, na horizontal, dificultava minha visão. Conseguia identificar poucas pessoas em meio a uma multidão de olhares amolecidos. O aroma das rosas estava distorcido. O ar congelava. Ela arrumou a foto entre meus dedos. A luz escureceu. Meu sangue ressecou.
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A última pedra chata picava na água. Um capim úmido e pálido escondia a íntima trilha. Os arbustos estavam mais altos, esquisitos. Borrões quentes de ferraduras camuflavam pistas. Ele esperou uma vaca cruzar a sanga para se atrever. Quando alcançou a margem, a pedra afundou.
Desarmou-se ao lado da mulher, estranhando as torções agitadas daqueles pés escorregadios. Lambeu-lhe a orelha, reconhecendo o ardor no pescoço. Preferiu transmitir os recados da irmã, do vizinho enólogo e da passadeira. Calou-se para acompanhar aqueles olhos que desciam a apática correnteza.
Ela assobiou. Parou. Indagou sobre o vinho que encomendara. O olhar atento ao percurso da sanga. Tornou a assobiar. Lançava notas de cantigas de roda. Aroma de leite morno desprendia da terra. Ele concentrou-se para recordar a infância. Uma imagem inquieta o invadiu: a vaca.
– A correnteza mudou – ela deixou escapar.
Voltou a observar os pés da mulher. Aquelas torções se mantinham, porém em ritmo lento. Explicou-lhe. As mãos se refugiando. As raízes do velho guapuruvu renderam-se ao tempo e aos minuanos, partindo a sanga.
Com o olhar marejado, ela escondeu um sorriso entre a face comprimida. Perguntou que horas degustariam o vinho. Ele, mudo. Reparava nos desejos de tantos cílios deslizarem pela maldita correnteza.
Ela inclinou o corpo o mais próximo da margem. As mãos, de um branco cintilante, mergulharam, garimpando o fundo. Aqueles pés permaneciam contraídos, irritando-o. Ela arremessou a pedra molhada. Afundou.
– Pegue as chatas – ele disse.
– Não há mais.
Ele percorreu a margem. Os calcanhares esmagaram a terra umedecida. As mãos encheram-se de pedras salientes. Recordou o olhar dissimulado da vaca. Arriscou um lançamento. Ela copiou. Quando a sombra cobriu a coxilha, estavam empatados. Somente duas picaram.
Caminhou até o raso, vendo-a recolher as pedras enfeitadas. Buscou a outra margem da sanga. Queria se livrar do vinho e retornar à cidade.
Os passos distanciaram-se mudos. Aqueles olhos cuidavam o vulto se formar entre os arbustos e a noite. Abraçou as pernas, protegendo o rosto entre os joelhos. Sentiu-se sozinha.
Assobiou à procura de ruídos. Ergueu o corpo. As mãos receosas voltaram, ajudando-a a cruzar a sanga. A margem resvalava. Os dedos dos pés esticavam-se para alcança-lo.
– Abra o vinho. Vamos ser pais.
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Pilhas de livros de Direito criavam formas abstratas próximas à estante. Ele adiou a vinda do marceneiro ao escritório. Uma, duas, cinco, oito vezes. O pó envelhecia, cobrindo capas pretas e grifos dourados. Ele desviava-se das obras do irmão, estragando-as com a sua apatia. Ignorava o calor, a sujeira, a lembrança, a umidade e as traças.
Conferia o primeiro processo da manhã quando a secretária o interrompeu, não mais preocupada em tropeçar nos livros. Decorara o trajeto. Entregou-lhe o jornal, aguardando a devolução. Ele mantinha a mesma atitude. Lia somente a data impressa na primeira página, calculando o número de dias. Oitenta e um haviam passado. A voz saiu curta, dessa vez sem engasgos. Ela retribuiu um olhar franzido.
Ele desconheceu, ordenando que os processos do Hospital Santa Aurora lhe fossem transferidos. Todos. A secretária, com seus gestos zelosos, arriscou não ter compreendido a ordem. Ele sorriu, os lábios molhados, o olhar seco, certeiro.
De poucas e fartas causas tributárias passou a ser responsável por todos os processos do Hospital. Deixava o escritório durante a madrugada e reiniciava sua jornada quando a secretária mal esquentava a água do café. A esposa consolava-se em silêncio, as lágrimas na bolsa ou por trás da maquiagem.
Em meio à rotina, ele recorria a outra atenção. Parou em frente ao armário que ilustrava sua sala. Arquitetura clássica, herança familiar. Abriu as portas centrais, formadas por vidro e madeira nobre. Exalaram ruídos nostálgicos. Respirou fundo. As cruzes refletiram a luz, cegando-o por alguns instantes. Retirou da pasta o novo crucifixo, o primeiro em prata. Pendurou-o ao lado dos outros três, completando uma linha horizontal.
Brindou solitário a passagem dos primeiros quatro meses. O cálice d’água na mão esquerda. Planejou o restante. Os próximos quatro seriam uma reta vertical centralizada. E os últimos quatro formariam uma linha horizontal paralela à primeira. A inicial de seu irmão Ismael se concretizaria entre os tipos da morte que vinha garimpando. Chamaria o marceneiro para sepultar os livros.
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Uma biblioteca vive nesse escritório. Os livros são muitos. Convivo com eles desde criança, mas ainda me assustam. Direito penal, Legislação tributária, Manejo de pastagens forrageiras, Direito romano, Dicionário de processos criminais e a pena. O pai e a sua obsessão pelo tudo organizado. É metódico.
Banhada em prata, iniciais gravadas, a pena sempre ocupou o mesmo lugar nesse refúgio. Estante da esquerda, primeira prateleira de baixo para cima sobre o armário do meio, ao lado do peso de papel. Ele dita as coordenadas geográficas pelo telefone lá do Alegrete. E eu me esforço para memorizá-las, sentado entre as duas enormes sábias de imbuia escura. Preciso visitá-lo.
No armário embaixo da pena. Aqui tem que estar o documento do seguro do carro. Não posso curvar a cabeça, me dói. A testa está latejando. Pasta cor de rosa na prateleira superior, coluna do meio, terceira de cima para baixo. Na etiqueta, Documentos carros casa Porto Alegre 2002. Que memória tem esse velho, não erra uma.
Abaixo, como ele frisou, está a pasta verde clara com a etiqueta Domésticas. Esse arquivo traduz a doença do pai. Vários tipos esquisitos que já passaram por aqui. Ficha completa: nome, idade, estado civil, data de entrada, cor dos cabelos, quando e por que saiu.
Na ficha da Claudete Delano Moreira, ele registra até as brigas com a patroa, mamãe. No dia vinte e cinco de março discutiu com a Zildinha. No dia seguinte, nova contenda com a Zildinha. No próximo, demissão. O pai anota na memória até a troca do esmalte das empregadas. Estranho.
Tenho que tirar uma cópia do documento para autorizar o conserto do carro. E devolvê-lo ao seu devido lugar. Não posso esquecer, caso contrário, ele morre.
Como pode um mísero cachorro me endividar só me lembro do pelo baio das manchas escuras no lombo do fuço comprido e dos olhos assustados pobre cão por que inventa de atravessar a rua na hora que eu estou passando absorto envolvido pela música que me recorda daquela chácara no Guarujá queria fugir para o passado voltar a ser muito pequeno acreditar além das estrelas e chorar sem preconceito e abraçar o velho de mente brilhante não sei mas o cachorro me viu e eu não o vi por causa da maldita música que me traz de volta aquela brisa de fantasias sem me preocupar com o dinheiro com a independência e com o futuro não sei para que servem esses malditos estudos se eu sou formado e quero morar na beira da praia ou em outra chácara a la Robson Crusué ou seria hoje a bola Wilson o melhor exemplo ai como esse galo está doendo minha testa continua latejando não quero sair agora vou deixar o documento embaixo da pena amanhã eu pego maldito cachorro ou música ou eu
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Renata Cavalcanti Eichenberg divide seu tempo entre múltiplas atividades e interesses. É jornalista com doutorado em Teoria da Literatura na PUCRS. No meio do turbilhão de seu trabalho e experiências, escreve. Esses contos foram resultado de sua participação na Oficina de Criação Literária da PUCRS, e os dois primeiros foram publicados em Oficina 30, organizada por Luiz Antonio de Assis Brasil, Porto Alegre, WS editor, 2003.