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Poesia

Sylvia Plath

Jovem, charmosa, poeta… e suicida. Ingredientes perfeitos para um mito. Desses que escuras angústias diante da vida não se cansam de produzir, e que a literatura jamais deixou de eternizar. Mas ao abrir o gás e deixar-se morrer em 1963, aos 31 anos, a norte-americana Sylvia Plath era ainda pouco mais que uma desconhecida, o que as poucas linhas dedicadas pelos jornais à sua morte confirmavam.

Nada a estranhar. Sua obra, em quantidade, ora pequena – uma novela publicada sob o pseudônimo de Victoria Lucas, um mês antes (The Bell Jar, traduzida no Brasil pela Editora Artenova, em 1971, com o título de A Redoma de Cristal), alguns contos e dois livros de poemas, The Colossus e Ariel. Sua vida pessoal, uma como tantas outras, feita de algumas tragédias e glórias breves. “Para os poucos pequenos sucessos exteriores que eu possa ter, existem acres de receio e dúvida pessoal”, escreveria ela numa carta.

O suicídio fez tudo maior, Sylvia Plath transformada num símbolo (quase, mais que?) perfeito para os que acreditam existir, necessariamente, uma ponte entre a arte e o desejo suicida, mesmo que nem sempre os alicerces dessa ponte estejam completamente visíveis.

Ensaios, biografias, críticas, teses, Sylvia Plath tudo inspirou com seu gesto, os estilhaços da redoma dispersados em todas as direções. Alfred Alvarez, poeta britânico, ele próprio um suicida frustrado, foi um dos que se sentiram atraídos pela luz brilhante e perigosa desses fragmentos. Seu livro The Savage God (O Deus Selvagem), que investiga as relações entre a ideia autodestrutiva (e consequente execução) e a atividade criadora, teria encontrado na morte de Sylvia uma das suas principais motivações. Num comentário sobre Ariel, Alfred Alvarez escreveu: “Poesia desse tipo é uma arte assassina.”

Passadas mais de duas décadas sobre aquela manhã, 11 de fevereiro, do mais frio inverno em Londres desde o fim da Primeira Guerra, o mito Sylvia Plath ainda não perdeu sua força. E a controvérsia mais tarde surgida sobre a real natureza dos caminhos que a levaram ao suicídio, de certa forma, serviu para mantê-lo vivo. Robert Lowell, por exemplo, no prefácio para Ariel, fala de Sylvia com admiração e ternura. Um tom oposto ao usado pela também escritora norte-americana, Joyce Carol Oates. Para Carol Oates, a “estase [é estase mesmo] na escuridão” de Sylvia foi muito mais o resultado de “uma separação doentia entre o eu, a natureza e as outras pessoas”, que de uma vontade de consumir-se conforme o ideal romântico – o suicídio como uma obra de arte, como o poema mais belo e definitivo. “Morrer é uma arte, como qualquer outra coisa”, afirmou Sylvia no poema “Lady Lazarus”. Joyce Carol Oates, parece, não acreditou, talvez por desconfiar do verso que vem logo em seguida: “Eu faço isso excepcionalmente bem.”

Aurélia Plath, mãe de Sylvia, reativou a discussão ao publicar, em 1978, as cartas escritas pela filha, de Cambridge, na Inglaterra. Home Letters, título do livro, definitivamente, partiu Sylvia em duas – uma, a dos poemas, onde sempre há contusão, mesmo quando existe humor; outra, a das cartas, onde ressalta, às vezes, uma mulher excessivamente preocupada com o sucesso na vida acadêmica, narcisista, deslumbrada quase.

Essa dualidade, que também serviu para fortalecer a mística, não era estranha à própria escritora. Terá sido coincidência, apenas, a escolha da dupla personalidade na literatura de Dostoiévski como tema da sua tese? Alegre, bem-educada, sociável, colecionadora de sucessos na universidade (“tenho medo de ser poderosa demais”), que relação poderia existir entre essa mulher e a que escrevia poemas como quem lentamente crava facas, dentro de um universo aprisionado em seus próprios fantasmas? Talvez esta história – que sempre é necessário contar – , comum a ambas.

Descendente de avós austríacos e alemães, Sylvia nasceu em Massachusetts e passou a infância em Winthrop, uma cidade próxima a Boston. Aos 8 anos perdeu o pai, um professor de biologia internacionalmente conhecido pelo estudo das abelhas. Foi a primeira tragédia, que mudou radicalmente sua vida, e não apenas pela troca de cidade. De Winthrop foi pata Wallesley, um município conservador e burguês.

Decidida a tornar-se escritora desde os 17 anos, sua trajetória na universidade foi brilhante. Venceu concursos, teve poemas publicados em revistas, foi eleita para vários cargos na faculdade. “Com tudo isso, eu me senti elevada numa onda de sucesso de criatividade, social e financeira. Os seis meses de queda, entretanto, estavam por vir.” Vieram sob a forma de uma tentativa de suicídio – ela tinha então 22 anos – e uma dolorosa recuperação, situações que retratou em The Bell Jar, com ligeiras modificações.

Reconstruído o mundo, ao menos aparentemente, voltou ao estudo em Smith College e à poesia. Novos trabalhos publicados, prêmios, conclusão da tese, graduação com louvor. A conquista de uma bolsa Fulbright dá-lhe a chance de ir para Cambridge, na Inglaterra, onde em junho de 1956 casa-se com o também poeta Ted Hughes, o único homem, segundo Sylvia, que chegava à altura dela.

Algum tempo de permanência em Cambridge, depois Estados Unidos, e outra vez Inglaterra. Com nova bolsa, dedica-se a escrever, somente. Em abril de 1960, no mesmo ano em que publicou The Colossus, o primeiro livro, nasce Frieda. Dois anos mais tarde chega Nicholas. As relações com Ted já eram difíceis, e a separação não demorou.

Um casamento frustrado, dois filhos, dificuldades financeiras, a pressão para cumprir as obrigações assumidas com o fundo Eugene Saxton, que lhe concedera a bolsa, tudo aos poucos se avoluma sobre Sylvia. The Bell Jar, publicado em janeiro de 1963, não é bem recebido pela crítica, o que deixa a escritora mais desolada. “O que fiz”, teria dito, “foi juntar acontecimentos da minha própria vida, romanceando-os para dar mais colorido – é uma caldeira, realmente, mas acho que mostrará o quão isolada se sente uma pessoa que está sofrendo um colapso nervoso. Tentei retratar o meu mundo e as pessoas dentro dele como vistos através das lentes deformantes de uma redoma de cristal.”

Segundo informou Aurélia Plath, em 1970, o projeto de Sylvia era, posteriormente, num segundo livro, mostrar “esse mesmo mundo visto através dos olhos da saúde.”

Não houve tempo sequer para um início. O tempo que ainda se permitiu viver, Sylvia usou-o para realizar a maior parte de Ariel, seu canto de cisne. Trabalhava com uma espécie de fúria metódica, escrevendo, às vezes, dois ou três poemas por dia. Do fundo do poço, no entanto, perversas estrelas já governavam sua vida. A redoma de cristal, como já suspeitara antes, poderia, mais uma vez, descer sobre ela com suas “distorções asfixiantes”. Preferiu não esperar.

Se 23 anos bastaram para esmaecer – nunca descolorir totalmente – a aura romântica de Sylvia Plath enquanto poeta-suicida, nem o dobro disso será bastante para negar o valor de sua poesia, em que o tom confessional não exclui o rigor poético. São versos em que se pode sentir o fazer disciplinado, laborioso, do qual resultam imagens preciosas, num ritmo tenso, mas nunca completamente isento da emoção. São versos de quem sofreu impossibilidades, e não importa se a dor foi transformada em poesia por vaidade, ou porque foi esta a única forma possível que encontrou (e tentou) para, de alguma maneira, relacionar-se com o mundo incompleto, inimigo, ao qual sempre se recusara internamente. Sylvia Plath ousou uma luta desigual, que não pôde suportar, e, talvez, sequer buscou, com afinco, entender. Para quê? “É tão belo não ter apegos. Estou só como a grama. O que terei omitido? Seja o que for, será um dia entendido?” (“Três Mulheres”).

                                                                      Isis Alves – 1986

Morning Song

Love set you going like a fat gold watch.
The midwife slapped your footsoles, and your bald cry
Took its place among the elements.

Our voices echo, magnifying your arrival. New statue.
In a drafty museum, your nakedness
Shadows our safety. We stand round blankly as walls.

I’m no more your mother
Than the cloud that distills a mirror to reflect its own slow
Effacement at the wind’s hand.

All night your moth-breath
Flickers among the flat pink roses. I wake to listen:
A far sea moves in my ear.

One cry, and I stumble from bed, cow-heavy and floral
In my Victorian nightgown.
Your mouth opens clean as a cat’s. The window square

Whitens and swallows its dull stars. And now you try
Your handful of notes.
The clear vowels rise like balloons.

 

Canção Matinal

O amor te pôs em movimento como um gordo relógio de ouro.
A parteira deu uma palmada na sola do pé, e teu grito careca
Ocupou lugar entre os elementos.

Nossas vozes ecoam, amplificando tua chegada. Nova estátua.
Num museu ventoso tua nudez
Obscurece nossa segurança. Ficamos ao redor, vazios como paredes.

Não sou mais tua mãe
Do que a nuvem que destila um espelho para refletir seu vagaroso
Desvanecer nas mãos do vento.

Toda a noite teu respirar de traça
Palpita entre as rosas lisas. Acordo para escutar:
Um mar distante move-se no meu ouvido.

Um grito, e saio tropeçando da cama, floral e pesada como uma vaca
Na minha camisola vitoriana.
Tua boca abre-se limpa como a de um gato. O quadrado da janela

Embranquece e engole as estrelas sem brilho. E agora tentas
Teu punhado de notas.
As claras vogais elevam-se como balões.

 

Edge

The woman is perfected
Her dead

Body wears the smile of accomplishment.
The illusion of a Greek necessity

Flows in the scrolls of her toga,
Her bare

Feet seem to be saying:
We have come so far, it is over.

Each dead child coiled, a white serpent,
One at each little

Pitcher of milk, now empty
She has folded

Them back into her body as petals
Of a rose close when the garden

Stiffens and odors bleed
From the sweet, deep throats of the night flower.

The moon has nothing to be sad about,
Staring from her hood of bone.

She is used to this sort of thing.
Her blacks crackle and drag.

 

Limite

A mulher está finda.
Seu corpo

Morto veste o sorriso da perfeição,
A ilusão de uma necessidade grega

Flui nas volutas de sua toga,
Seus pés

Nus parecem dizer:
Viemos até aqui, acabou-se.

Cada criança morta enrodilhada, serpente branca,
Uma em cada pequeno

Jarro de leite, agora vazio.
Ela recolheu-as

Em seu corpo como pétalas
De uma rosa se fecham quando o jardim

Enrijece e aromas sangram
Da profunda, suave garganta de uma flor-da-noite.

A lua não tem por que estar triste,
Olhando fixo de seu capuz de ossos.

Está acostumada a essas coisas.
Suas crateras estalam e fendem-se.

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Ariel

Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.

God’s lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! — The furrow

Splits and passes, sister to
The brown arc
Of the neck I cannot catch,

Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks —

Black sweet blood mouthfuls,
Shadows.
Something else

Hauls me through air —
Thighs, hair;
Flakes from my heels.

White Godiva,
I unpeel —
Dead hands, dead stringencies.

And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child’s cry

Melts in the wall.
And I
Am the arrow,

The dew that flies
Suicidal, at one with the drive
Into the red

Eye, the cauldron of morning.

 

Ariel

Estase nas trevas
Então o insubstancial azul
Fluir de montanha e distâncias.

Leoa do Senhor,
Um só nos tornamos,
Eixo de calcanhares e joelhos: – A fenda

Rompe e passa, irmã do
Arco moreno
Do pescoço que não posso agarrar,

Frutos
De olho de negro lançam escuros
Anzóis –

Gosto de sangue negro,
Sombras.
Outra coisa

Arrasta-me pelo ar –
Coxas, pelos,
Escamas de meus calcanhares.

Branca
Godiva, descasco –
Mãos mortas, restringências mortas.

E então eu
Espumo a trigo, um brilho de mares,
O grito da criança

Escorre na parede.
E eu
Sou a flecha,

O orvalho que voa
Suicida, unido com o impulso
Para dentro do olho

Vermelho, caldeirão da manhã.

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Contusion

Colour floods to the spot, dull purple.
The rest of the body is all washed out,
The color of pearl.

In a pit of rock
The sea sucks obsessively,
One hollow the whole sea’s pivot.

The size of a fly,
The doom mark
Crawls down the wall.

The heart shuts,
The sea slides back,
The mirrors are sheeted.

Contusão

Cor jorra para a mancha, púrpura escura.
O resto do corpo está desbotado,
Cor de pérola.

Numa depressão da rocha
O mar suga obsessivamente,
Um buraco eixo de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca,
A marca da sentença
Rasteja parede abaixo.

O coração se fecha,
O mar recua,
Os espelhos estão cobertos.

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Tradução de Isis Alves e Rosaura Eichenberg

 

 


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