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Matéria de Capa

Thomas W. Higgison apresenta Emily Dickinson

Emily Dickinson

Em 1983, a Editora Noa Noa publicou o texto em que Thomas Wentworth Higgison apresenta a poeta Emily Elizabeth Dickinson, relatando um pouco da história de sua amizade e trazendo a público algumas das cartas que ela lhe escreveu.

Cartas de Emily Dickinson a Thomas Wentworth Higgison
Tradução de Rosaura Eichenberg
Desenhos de Pedro Pires
Editora Noa Noa  Ilha de Santa Catarina   1983

Do original Selected Poems & Letters of Emily Dickinson, edited by Robert N. Linscott. Anchor Books edition, 1959.

A tradução de Rosaura Eichenberg contou com a colaboração de Maria do Horto Soares Mota.

 

 

Em 16 de abril de 1862, recebi pelo correio a seguinte carta:

        Mr. Higginson, – o senhor anda muito ocupado para dizer se meu verso tem vida?
aaaaO conhecimento está tão próximo de si mesmo que não pode ver com clareza, e não tenho ninguém para perguntar.
aaaaSe achar que ele respira e encontrar tempo para me mandar dizer, ficarei muito grata.
aaaaSe cometo um erro, que tenha a coragem de me falar, tornará mais sincera a estima que sinto pelo senhor.
aaaaJunto o meu nome, pedindo-lhe, por favor, que me diga o que é verdade.
aaaaQue não me traia é desnecessário pedir, pois a honra é seu próprio penhor.

       A carta tinha o carimbo de “Amherst” e estava escrita com uma caligrafia tão peculiar que era como se sua autora tivesse aprendido as primeiras letras estudando os famosos rastros fossilizados de pássaros no museu daquela cidade universitária. Entretanto, não era de modo algum iletrada, mas cultivada, excêntrica e totalmente original. Pontuação, havia pouca; usava sobretudo travessões, e considerou-se melhor, na publicação destas cartas, bem como de seus poemas, adotar a esse respeito as convenções usuais; procedeu-se do mesmo modo em relação ao seu hábito de usar caixa alta, como dizem os tipógrafos, seguindo o método, do inglês antigo e do alemão moderno, de distinguir desse modo todos os substantivos. Mas o aspecto mais curioso da carta era a ausência de uma assinatura. Descobri, entretanto, que escrevera seu nome num cartão que colocara sob a proteção de um envelope menor dentro do maior; e mesmo esse nome estava escrito a lápis, e não à tinta, como se a autora, tímida, quisesse se esconder o mais possível. O nome era Emily Dickinson. Junto com a carta vieram quatro poemas, dois dos quais foram publicados separadamente: “Safe in their alabaster chambers” e “I’ll tell you how the sun rose”

aaaaA impressão de um gênio poético totalmente novo e original foi tão clara na minha mente, por ocasião da primeira leitura desses quatro poemas, quanto o é neste momento, depois de meio século de maior conhecimento; e com ela surgiu o problema, até agora não resolvido, sobre que lugar atribuir na literatura ao que é assim tão notável, mas tão arredio à crítica. A própria abelha não foge mais de um menino do que ela se esquivou de mim; e até hoje ainda permaneço um tanto perplexo, como a criança.

aaaaAs circunstâncias, entretanto, logo me puseram em contato com um tio de Emily Dickinson, um cavalheiro já falecido: era um cidadão proeminente de Worcester, Massachusetts, um homem íntegro e de muita personalidade, que possuía a rudeza e a impulsividade da sobrinha, mas certamente não compartilhava o seu temperamento poético, do qual estava, na verdade, particularmente distante. Pouco pôde me dizer a seu respeito, sendo ela evidentemente um enigma para ele , assim como era para mim. É difícil dizer que resposta dei, nessas circunstâncias, a essa carta. É provável que o conselheiro tenha procurado ganhar um pouco de tempo e descobrir com que estranha criatura estava lidando. Lembro-me de ter ousado alguma crítica, que ela mais tarde chamou de “cirurgia”, e algumas perguntas, parte das quais ela evitou, como se verá, com um talento ingênuo digno de inveja da coquete mais experimentada e mundana. Sua segunda carta (recebida em 26 de abril de 1862) foi a seguinte:

     Mr. Higginson, – Sua bondade pedia gratidão mais pronta, mas estava doente e escrevo hoje de meu travesseiro.
aaaaObrigada pela cirurgia; não foi tão dolorosa como supunha. Trago-lhe outros, como pede, embora talvez não se distingam dos primeiros. Enquanto meus pensamentos estão despidos, posso fazer a distinção; mas, quando os visto, parecem iguais e amortecidos.
aaaaPergunta quantos anos eu tinha então? Nada escrevi, a não ser um ou outro verso, antes deste inverno, senhor.
aaaaTenho sentido um terror desde setembro, não pude contá-lo a ninguém; e por isso canto, como o menino ao pé da cova, porque tenho medo.
aaaaPergunta-me sobre minhas leituras. Para a poesia, tenho Keats e Mr. e Mrs. Browning. Para a prosa, Mr. Ruskin, Sir Thomas Browne e o Apocalipse. Fui para a escola, mas, segundo sua forma de expressão, não recebi uma educação. Quando menina, tive um amigo que me ensinou Imortalidade; mas, arriscando-se ele próprio perto demais, nunca retornou. Logo após meu mestre morreu, e por vários anos meu dicionário foi meu único companheiro. Depois encontrei mais um outro, mas ele não ficou contente em me ter por aluna, por isso deixou o país.
aaaaPergunta-me por meus companheiros. Montanhas, senhor, e o pôr-do-sol e um cachorro do meu tamanho, que meu pai me comprou. São melhores que seres humanos, porque sabem, mas não falam, e o barulho na lagoa ao meio-dia supera meu piano.
aaaaTenho um irmão e uma irmã; minha mãe não faz caso da inteligência, e meu pai, ocupado demais com suas causas para notar o que fazemos. Compra-me muitos livros, mas pede que eu não os leia, porque teme que perturbem a mente. Todos são religiosos, exceto eu, e dirigem-se, todas as manhãs, a um eclipse que eles chamam de “Pai”.
aaaaMas receio que minha história o canse. Gostaria de aprender. Poderia me dizer como crescer, ou isso é intransmissível, como a melodia ou a bruxaria?
aaaaO senhor fala de Mr. Whitman. Não li o livro dele, mas disseram-me ser vergonhoso.
aaaaLi Circumstance, de Miss Prescott, mas seguiu-me no escuro, por isso a evitei.
aaaaDois editores de jornais vieram à casa de meu pai neste inverno e perguntaram por minhas ideias, e, quando lhes perguntei “por quê?”, responderam que eu era avarenta, que eles poderiam torná-las úteis para o mundo.
aaaaNão posso me pesar, eu mesma. Meu tamanho parece pequeno para mim. Li seus capítulos em Atlantic e senti um grande respeito pelo senhor. Tinha certeza de que não rejeitaria uma pergunta em confiança.
aaaaÉ isso, senhor, o que me pediu para lhe dizer? Sua amiga,

                                                                      E. Dickinson

      Pode-se ver que ela agora chegara um pouco mais perto, assinando seu nome e como minha “amiga”.  Também deve ser notado que eu a sondara a respeito de certos autores americanos, na época muito lidos, e que ela soube formular suas próprias críticas de uma maneira muito aguda. Com essa carta, vieram mais alguns versos, ainda com a mesma caligrafia, lembrando pássaros…

aaaaÉ possível que, numa segunda carta, eu tenha dado um elogio ou um encorajamento mais claro, pois a sua terceira está escrita num estado de espírito diferente. Foi recebida em 8 de junho de 1862. Há algo surpreendente na sua imagem inicial, e na expressão, ainda mais estranha, que se segue, quando ela aparentemente usa “tumulto” no sentido de caos ou perplexidade:

Caro amigo, – Sua carta não me causou embriaguez, porque já provara rum antes. Domingo [sic no texto em inglês] acontece apenas uma vez; entretanto, dos prazeres que já tive, poucos foram tão profundos como o que sua opinião me deu, e, se tentasse agradecer-lhe, as lágrimas bloqueariam minha língua.
aaaaMeu mestre moribundo me disse que gostaria de viver até que eu fosse uma poeta, mas a Morte era um tumulto que eu não podia dominar então. E quando, muito mais tarde, uma luz súbita nos pomares ou um novo modo no vento me perturbavam a atenção, sentia um entorpecimento que os versos apenas aliviam.
aaaaSua segunda carta me surpreendeu e, por um momento, abalou. Não a esperava. A primeira não me desonrou, porque a verdade não conhece vergonha. Agradeci-lhe por sua justiça, mas não pude abandonar os sinos cujo som me alivia a caminhada. Talvez o bálsamo pareça melhor, porque me fez sangrar primeiro. Sorrio quando sugere que devo esperar para publicar, sendo isso alheio ao meu pensamento como o firmamento à barbatana.
aaaaSe a fama me pertencesse, não poderia escapar dela; se não, perderia o dia inteiro na corrida e deixaria de ter então a aprovação de meu cachorro. Minha posição descalça é melhor. Acha meu ritmo “espasmódico”. Estou em perigo, senhor. Acha-me “descontrolada”. Não tenho tribunal.
aaaaSerá que teria tempo para ser o “amigo” que deve pensar que necessito? Sou pequena de tamanho: não abarrotaria sua escrivaninha, nem faria tanto barulho como o rato que habita seus corredores.
aaaaSe pudesse mandar-lhe o que faço – não com tanta frequência que fosse perturbá-lo – e perguntar se me expressei com clareza, isso seria um controle para mim. O marinheiro não pode ver o Norte, mas sabe que a agulha consegue. Na “mão que estende no escuro”, ponho a minha, e me despeço. Não sei como me expressar agora: –

As if I asked a common alms,
And in my wandering hand
A stranger pressed a kingdom,
And I, bewildered, stand;
As if I asked the Orient
Had it for me a morn,
And it should lift its purple dikes
And shatter me with dawn!

Como se eu pedisse uma esmola comum,
E na minha mão errante
Um estranho comprimisse um reino,
E eu, perplexa, me deixasse estar;
Como se eu pedisse ao Oriente
Que me concedesse uma manhã,
E ele levantasse seus diques de púrpura
E me despedaçasse com a aurora!

Mas o senhor será meu preceptor, Mr. Higginson?

         Com essa veio o poema agora já publicado num de seus livros e intitulado Renunciation; e também aquele que começa com Of all the sounds dispatched abroad, fixando assim aproximadamente a data desses dois poemas. Devo ter respondido logo, pedindo-lhe um retrato, para que pudesse ter alguma ideia de minha enigmática correspondente. Para essa carta recebi a seguinte resposta em julho de 1862:

 Acreditaria que estou sem nenhum? Não tenho retrato agora, mas sou pequena como a corruíra, e meu cabelo é atrevido como a casca da castanha; meus olhos como o xerez que o convidado deixa no fundo do copo. Isso fará as vezes de?
aaaaEsse fato frequentemente alarma meu pai. Diz que a morte pode ocorrer, e ele tem imagens de todos os demais, mas não tem nenhuma imagem minha. Mas notei que os vivos gastam essas coisas em poucos dias, e evito a desonra. Não pense que seja capricho meu.
aaaaO senhor disse Escuro. Conheço a borboleta, o lagarto e a orquídea. Esses não são seus conterrâneos?
aaaaEstou feliz por ser sua aluna e procurarei merecer a sua bondade que não posso retribuir.
aaaaSe realmente consentir, recito agora. Diga-me, por favor, as minhas falhas, tão francamente como se para si mesmo, pois prefiro levar um susto a morrer. Os homens não chamam o cirurgião para elogiar o osso, mas para endireitá-lo, senhor, e fratura interna é mais crítica. E por isso, preceptor, lhe darei obediência, as flores do meu jardim e toda a gratidão que conheço.
aaaaTalvez sorria de mim. Não poderia parar por isso. Meu objetivo é a circunferência. Uma ignorância, não de costumes, mas se surpreendida com a aurora ou se o pôr do sol me vir, eu, o único canguru entre a beleza, por favor, senhor, isso me aflige, e pensei que a instrução o afastaria.
aaaaComo tem muitas ocupações, além do meu crescimento, me dirá, o senhor mesmo, com que frequência devo vir, sem lhe causar incômodo.
aaaaE, se em algum momento se arrepender de me ter recebido, ou se eu provar ser de um estofo diferente do que supôs, deve me banir. Quando me declaro a representante do verso, isso não quer dizer eu, mas uma pessoa fictícia.
aaaaTem razão sobre a “perfeição”. O dia de hoje torna o dia de ontem mesquinho.
aaaaFalou de Pippa Passes. Nunca ouvira ninguém falar de Pippa Passes antes. Veja como sou ignorante.
aaaaAgradecer-lhe me confunde. O senhor é todo-poderoso? Se eu tivesse um prazer que lhe faltasse, ficaria encantada em proporcionar-lhe.

                                                                                                        Sua Aluna

aaaaParece que primeiro tentei um pouco – muito pouco – orientá-la ma direção das regras e da tradição; mas receio que esse cuidado foi apenas superficial e que ela me interessava mais na sua condição, por assim dizer, irregenerada. Todavia, ela reconheceu o esforço. Nesse caso, como se verá, chamei-lhe a atenção para o fato de que, enquanto ela se esforçava para corrigir a ortografia de uma palavra, descuidava completamente irregularidades maiores. Pode-se ver, pela resposta, que com sua sagacidade instintiva, ela inverte meu argumento:

     Caro amigo, – Estes estão mais ordenados? Agradeço-lhe pela verdade.
aaaaNunca tive um monarca na vida e não posso me governar a mim mesma; quando tento organizar, minha pequena força explode e deixa-me despida e crestada.
aaaaAcho que me chamou de “irregular”, me ajudará a melhorar?
aaaaSuponho que o orgulho que suspende a respiração, no meio do mato, não é de nós próprios.
aaaaDiz que confesso o erro pequeno e omito o grande. Porque posso ver a ortografia, mas a ignorância fora de meu ângulo de visão fica ao encargo de meu preceptor.
aaaaQuanto a “evitar os homens e as mulheres”, eles falam de coisas sagradas em voz alta e encabulam meu cachorro. Acho que Carlo lhe agradaria. É calado e corajoso. Acho que gostaria da castanheira que encontrei na minha caminhada. Chamou a minha atenção de repente, e pensei que o céu estivesse em flor.
aaaaDepois há um barulho sem som no pomar que eu deixo as pessoas escutarem.
aaaaDisse-me numa carta que não poderia vir me visitar “agora”, e eu não dei resposta; não porque não tivesse nenhuma, mas porque não me julguei prêmio suficiente para que viesse tão longe.
aaaaNão peço um prazer tão grande, com medo de que me pudesse negá-lo.
aaaaO senhor diz “além do seu conhecimento”. Não brincaria comigo, porque acredito no senhor; mas, preceptor, não estava falando sério, não é?
aaaaTodos os homens dizem O que? para mim, mas julguei que fosse um costume.
aaaaQuando mato adentro, em criança, disseram-me que a cobra me picaria, que eu poderia colher uma flor venenosa, ou que gnomos me raptariam; mas eu continuei e só encontrei anjos que tinham muito mais medo de mim do que eu poderia ter deles, de modo que não tenho essa confiança no engano que muitos exercitam.
aaaaObservarei seu preceito, mesmo que não o compreenda, sempre.
aaaaSublinhei um verso, porque o encontrei depois que o fiz, e nunca mexo conscientemente numa tinta misturada por outra pessoa.
aaaaNão me desfaço dele, porque é meu. O senhor tem o retrato de Mrs. Browning?
aaaaAlgumas pessoas me mandaram três. Se o senhor não tiver nenhum, ficará com o meu?

                                                                                          Sua Aluna

     Um ou dois meses depois dessa carta, ingressei como voluntário no exército da Guerra Civil e devo ter-lhe escrito, durante o inverno de 1862-3, da Carolina do Sul ou da Flórida, pois a carta seguinte me alcançou no campo de batalha:

         Caro amigo, nunca supus que as forças dos planetas se aniquilassem, mas apenas sofressem uma mudança de território, ou mundo. Gostaria de tê-lo visto antes de se ter tornado improvável. Sinto a guerra como um lugar oblíquo. Se houver outros verões, virá talvez me ver?
aaaaDescobri que havia partido, por acaso, assim como percebo que os sistemas desaparecem, ou as estações do ano, e não atino com a causa, mas suponho-a uma traição do progresso que se dissolve enquanto prossegue. Carlo todavia permaneceu, e eu lhe disse:

Best gains must have the losses’ test,
To constitute them gains.

Os melhores ganhos devem passar pelo teste da perda,
Para que sejam ganhos.

        Meu aliado peludo assentiu.
aaaaTalvez a morte me tenha feito sentir um grande medo pelos amigos, atacando com violência e muito cedo, pois desde então os mantenho num amor frágil, de mais alarme que paz. Confio que possa passar o limite da guerra; e, embora não educada às rezas, quando o ritual pelas nossas armas é proferido na igreja, incluo o senhor… Estava pensando hoje, como notei, que o “Sobrenatural” é apenas o Natural revelado.

Not “Revelation” ‘t is that waits,
But our unfurnished eyes.

Não é a “Revelação” que tarda,
Mas nossos olhos não equipados.

       Mas receio que o detenha. Se, antes que esta carta o alcance, experimentar a imortalidade, quem me informará da mudança? Poderia, com honra, evitar a morte, suplico-lhe, senhor. Deixaria desolado

                                                                                                                    Seu Gnomo

Espero que Procession of Flowers não seja uma premonição.

      Não sei explicar essa extraordinária assinatura, substituindo a já então costumeira “Sua Aluna”, a não ser que ela imaginasse seu amigo numa condição incrível e remota, cuja estranheza passasse também para ela. Swedenborg tem em algum lugar uma imagem semelhante a seu “lugar oblíquo”, na qual ele simboliza o mal simplesmente como um ângulo oblíquo. Com essa carta vieram versos sobre o tordo familiar, muito agradáveis nesta região de jasmins e tordos-dos-remédios.

aaaNo verão de 1863 fui ferido e estive no hospital por algum tempo, durante o qual recebi esta carta a lápis, escrita também de uma espécie de hospital, só que para olhos fracos:

     Caro amigo, – está em perigo? Não sabia que fora ferido. Me dirá algo mais? Mr. Hawthorne morreu.
aaaaEstive doente desde setembro, e desde abril em Boston, aos cuidados de um médico. Ele não me deixa partir, porém trabalho na minha prisão e me visito a mim mesma.
aaaaCarlo não veio, porque morreria na cadeia, e as montanhas não posso tê-las agora, de modo que trouxe apenas os Deuses.
aaaaDesejo vê-lo mais ainda do que antes da minha doença. Me informará sobre sua saúde? Fiquei surpresa e ansiosa desde que recebi sua nota:

 The only news I know
Is bulletins all day
From Immortality.

As únicas notícias que tenho
São boletins o dia todo
Da Imortalidade.

     Consegue decifrar meu lápis? O médico me levou a caneta.
aaaaColoco o endereço tirado de uma carta, com medo de que meus números falhem.
aaaaSaber de sua recuperação seria melhor que da minha própria.

                                                                               E. Dickinson

 Mais tarde chegou esta outra carta:

       Caro amigo, – penso no senhor com tanta afeição que não posso resistir a escrever-lhe de novo, para perguntar se está salvo. O perigo não está no início, porque então não temos consciência dele, mas nos dias seguintes mais lentos.
aaaaNão tente ser salvo, mas deixe que a redenção venha ao seu encontro, como certamente acontecerá. O amor é sua própria salvação; pois nós, nos nossos momentos supremos, não somos mais do que seus trêmulos emblemas.

                                                                                                        Sua Aluna

      Essas foram as primeiras cartas que recebi de Emily Dickinson, na sua ordem. A partir de então e até sua morte (15 de maio de 1886), correspondemo-nos com intervalos variáveis, ela sempre mantendo persistentemente a sua atitude de “aluna” e assumindo, de minha parte, uma orientação que, é quase desnecessário dizer, não existia. Sempre feliz por ouvi-la “recitar”, como dizia, logo abandonei toda tentativa de influenciar de qualquer modo essa natureza extraordinária, e simplesmente aceitava suas confidências, fazendo o possível para dar-lhe em troca tudo que pudesse interessá-la.

aaaaÀs vezes havia uma longa pausa, de minha parte, depois da qual chegava uma carta queixosa, sempre sucinta, como esta:

      Desagradei-o? Mas não me dirá de que maneira?

       Ou talvez a notícia de algum acontecimento, vasto na sua pequena atmosfera, como este:

     Carlo morreu.
aaMe instruirá agora?

Amherst
E. Dickinson

Ou às vezes chegava uma admirável pequena composição objetiva, cada palavra uma pintura, como esta:

THE HUMMING BIRD

A route of evanescence
With a revolving Wheel;
A resonance of emerald;
A rush of cochineal.
And every blossom on the bush
Adjusts its tumbled head;
– The mail from Tunis, probably,
An easy morning’s ride.

O COLIBRI

Um caminho evanescente
De um movimento em rotação;
Uma ressonância de esmeralda
Um ímpeto de carmim.
E toda flor no arbusto
Endireita a cabeça caída;
 O correio de Tunis, provavelmente,
Um passeio tranquilo pela manhã.

     Nada em literatura, tenho certeza, condensa em tão poucas palavras este átomo maravilhoso de vida e fogo, do qual ela aqui tenta a descrição. É, entretanto, desnecessário ocultar que muitos dos seus fragmentos brilhantes eram menos satisfatórios. Ela quase sempre apreendia o que procurava, mas com alguma quebra da gramática e do dicionário pelo caminho. Muitas vezes era também obscura e, em alguns momentos, inescrutável; e, embora a obscuridade seja às vezes, na expressão de Coleridge, um elogio ao leitor, nunca é seguro levar esse elogio longe demais.

aaaHavia ocasiões, por outro lado, em que seus versos encontravam uma receptividade grande demais para seu agrado, e ela era incitada a publicar. Nesses casos eu era, às vezes, apresentado como uma defesa. A seguinte carta foi fruto de uma situação assim;

    Caro amigo, – obrigada pelo conselho.
aaaaSigo-o irrestritamente.
aaaaNão conhecia aquele que me pediu os versos.
aaaaEle falou de “uma caridade”. Recusei, mas não inquiri a respeito. Voltou a insistir com energia, argumentando que dessa maneira eu poderia ajudar “crianças infelizes”. A palavra “criança” foi uma armadilha para mim, e hesitei, escolhendo os meus versos mais rudimentares, e sem critério.
aaaaPerguntei ao senhor. Mal pode imaginar o valor dessa opinião para alguém sem nenhuma orientação. Novamente obrigada.

                                                              Sua Aluna

Também recebi esta outra carta, sobre um tema semelhante:

    Amherst

    Caro amigo, – poderia me dizer o que é certo? Mrs. Jackson, de Colorado (“H. H., sua antiga companheira de escola), esteve comigo por alguns momentos nesta semana, e deseja que eu escreva para isto. (Uma circular de “No Name Series” veio junto). Disse-lhe que não queria, e ela me perguntou por quê? Disse-lhe que não era capaz, e ela pareceu não acreditar e me pediu para não decidir nada por alguns dias. Nesse meio tempo, me escreveria. Foi tão encantadora e nobre que eu lamentaria me indispor com ela, e, se o senhor quisesse me escrever uma nota dizendo que desaprova a ideia e que não me julga preparada, ela acreditaria. Lamento ter de recorrer tantas vezes ao meu amigo mais seguro, mas espero que ele mo permita.

Durante todo esse tempo, quase oito anos, nunca havíamos nos encontrado, mas ela me fizera convites como o seguinte:

     Caro amigo, – Aquele a quem meu cachorro compreendeu não saberia eludir os outros.
aaaaFicaria muito contente em vê-lo, mas julgo isso um prazer visionário, que não será realizado. Não tenho certeza de Boston.
aaaPrometera visitar meu médico por alguns dias em maio, mas meu pai é contra, porque está acostumado a me ter por perto.
aaaaÉ mais longe vir até Amherst?
aaaaEncontrará uma anfitriã diminuta, mas uma recepção vasta…
aaaaSe ainda suplico que me ensine, isso lhe desagrada muito? Serei paciente, constante, nunca rejeitarei sua faca e, se minha lentidão o atormentar, o senhor sabia, antes de mim, que

Except the smaller size
No lives are round,
These hurry to a sphere
And show and end.

The larger slower grow
And later hang;
The summer of Hesperides
Are long.

Exceto as de menor tamanho
Não há vidas redondas.
Estas se precipitam para uma órbita
Exibem-se e terminam.

As maiores crescem com vagar
E mais tarde pendem;
Os verões das Hespérides
São longos.

Mais tarde, chegou esta carta:

      Amherst

     Caro amigo,  – Uma carta sempre me dá a sensação de imortalidade, porque é a mente sozinha sem o amigo corpóreo. Dependentes em nossa conversação da atitude e do timbre da voz, parece haver um poder espectral no pensamento que caminha sozinho. Gostaria de agradecer-lhe por sua grande bondade, mas nunca tento levantar as palavras cujo peso não posso segurar.
aaaaSe viesse a Amherst, talvez eu conseguisse, embora a gratidão seja a riqueza tímida dos que não possuem nada. Tenho certeza de que o senhor fala a verdade, porque os nobres o fazem, mas suas cartas sempre me surpreendem.
aaaaMinha vida tem sido simples e austera demais para poder embaraçar quem quer que seja. “Seen of Angels”, dificilmente responsabilidade minha.
aaaaÉ difícil não ser fictícia num lugar tão bonito, mas os refúgios severos das tentações são permitidos a todos.
aaaaQuando menina, lembro-me de ter escutado essa passagem notável e ter preferido o “Poder”, não sabendo, na época, que o “Reino” e a “Glória” estavam incluídos.
aaaaO senhor notou o meu viver sozinha. Para um emigrante, o campo é indolente, a não ser que seja o seu próprio. Fala bondosamente em me ver; se lhe conviesse vir até Amherst, ficaria muito contente, mas não deixo a propriedade de meu pai para ir a nenhuma outra casa ou cidade.
aaaaDos nossos maiores atos, ficamos sem saber. O senhor não tinha consciência de que salvou minha vida. Agradecer-lhe pessoalmente tem sido, desde então, um dos meus poucos pedidos… Desculpará cada um dos que eu formular, porque ninguém me ensinou melhor.

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

aaaaPor fim, depois de muitos adiamentos, em 16 de agosto de 1870, encontrei-me cara a cara com minha até então invisível correspondente. Foi na casa de seu pai, uma dessas mansões de tijolo grandes e quadradas, tão familiares nas nossas cidades mais antigas da Nova Inglaterra, cercadas por árvores e arbustos em flor no lado de fora, e por dentro admiravelmente limpas, frescas, espaçosas e impregnadas com a fragrância de flores. Depois de uma pequena demora, ouvi no saguão um passo extremamente leve e rápido, como o de uma criança, e, quase sem fazer barulho, deslizou para dentro da sala uma pessoa pequena, tímida e simples, a face sem nenhum traço de beleza, mas com os olhos, como ela própria dissera, “como o xerez que o convidado deixa no fundo do copo”, e com fofos bandós de cabelo castanho avermelhado. Tinha uma aparência estranha e de freira, como se fosse uma cônega alemã de alguma ordem religiosa, cujo hábito prescrito era piquê branco, com um xale azul de lã trançada. Veio até mim com dois lírios amarelos que colocou de um modo infantil na minha mão, dizendo suavemente em voz baixa, “Estas são a minha apresentação”, e acrescentando, também em voz baixa, “Perdoe-me se estou assustada; nunca vejo estranhos e mal sei o que dizer.” Mas logo começou a falar, e a partir desse momento continuou quase ininterruptamente; fazendo às vezes uma pausa, para pedir que eu também falasse, mas recomeçando, assim que me calava. Não havia nenhum traço de afetação nisso tudo; ela parecia falar, na verdade, para seu próprio alívio e sem observar de forma alguma o efeito das palavras no interlocutor. Guiada por mim, contou-me muito a respeito de sua vida, na qual seu pai era sempre a figura principal, – um homem evidentemente do tipo antigo, la vieille roche do Puritanismo – um homem que, como ela disse, lia aos domingos “livros solitários e rigorosos”; e que, desde sua infância, havia-lhe  incutido um tal temor que ela nunca aprendera a ler as horas antes dos quinze anos, apenas porque ele tentara explicar o procedimento para ela em criança, e ela não tivera coragem de lhe dizer que não compreendera e também receara perguntar a outra pessoa, com medo de que ele pudesse vir a saber. Entretanto, ela nunca o ouvira proferir uma palavra áspera, e bastava um olhar para sua fotografia para ver como era verdadeira a tradição puritana por ele preservada. Não queria que seus filhos, em pequenos, lessem nada a não ser a Bíblia; e, quando, certo dia, o irmão trouxe para casa Kavanagh de Longfellow, ele o colocou secretamente sob a tampa do piano, fez sinais para ela, e ambos mais tarde o leram. Talvez tenha sido antes disso, entretanto, que um aluno de seu pai ficou surpreso ao descobrir que nem ela, nem o irmão tinham ouvido falar de Lydia Maria Child, naquela época muito lida; trouxe Letters from New York e escondeu o livro na antiquada proteção do arbusto ao lado da porta da frente. Depois do primeiro livro, ela pensou em êxtase: “Então isto é que é um livro, e ainda há muitos mais.” Mas não encontrou tantos como esperava, pois mais tarde me disse: “Quando perdi a visão, era um alívio pensar que os livros reais são tão poucos que poderia facilmente encontrar alguém para me ler todos.” Depois, quando recuperou a visão, leu Shakespeare e pensou consigo mesma: “Por que é necessário outro livro?”.

aaaaContinuava a falar sem parar e a dizer, no meio da narrativa, ditos estranhos e aforísticos. “Será esquecimento ou absorção, quando as coisas somem de nossas mentes?” “A verdade é algo tão raro, é maravilhoso contá-la.” “Sinto êxtase em viver; a simples sensação de viver é alegria suficiente.” Quando lhe perguntei se ela nunca sentira falta de uma ocupação, sem sair de casa e raramente recebendo uma visita, ela respondeu, “Nunca cheguei a imaginar que pudesse vir a sentir a mais leve sombra de uma tal necessidade no futuro”; e acrescentou depois de uma pausa, “Acho que não me expressei com bastante clareza”, embora me parecesse que o tivesse feito. Falou-me de suas ocupações domésticas, que ela fazia todo o pão da casa, porque seu pai só gostava do pão feito por ela; dizendo depois timidamente, “E as pessoas também precisam de pudins”, isso dito muito acanhada e sugestivamente, como se fossem meteoros ou cometas. Entremeadas com essas confidências, proferia expressões tão enfáticas a ponto de parecerem o próprio desregramento do exagero, como se ela sentisse prazer em colocar em palavras o que os mais extravagantes poderiam talvez pensar sem dizer, como: “Como é que a maioria das pessoas vive sem pensamentos? Há muitas pessoas no mundo – deve tê-las notado na rua – como é que vivem? De onde tiram forças para se vestirem de manhã?” Ou esta suprema extravagância: “Se leio um livro e ele me gela o corpo de tal forma que nenhum fogo consegue me esquentar, sei que é poesia. Se sinto fisicamente como se a parte de cima da minha cabeça tivesse sido arrancada, sei que é poesia. Essas são as únicas maneiras que conheço. Haverá alguma outra?”

aaaaTentei descrevê-la exatamente como era, com ajuda de notas feitas na época. Mas essa entrevista deixou nossa relação no mesmo ponto em que estava: de minha parte, um interesse que era forte e mesmo afetuoso, mas não fundado em nenhuma compreensão real; e de sua parte, uma esperança, sempre um tanto frustrada, de que eu pudesse lhe propiciar alguma ajuda para resolver o seu abstruso problema de vida.

aaaaA impressão que tive foi, sem dúvida, de um excesso de tensão e de algo anormal. Talvez com o tempo pudesse ter ido além dessa relação bastante tensa que não a minha vontade, mas as suas necessidades haviam forçado entre nós. Certamente teria ficado muito feliz em trazê-la para o plano das verdades simples e do companheirismo do dia a dia, mas isso não era de modo algum fácil. Ela era um ser enigmático demais para que eu pudesse compreender numa entrevista de uma hora, e um instinto me disse que qualquer tentativa de interrogatório direto a faria se retrair para dentro da sua concha. Podia apenas ficar sentado bem quieto e observar, como se faz na floresta; devia nomear meu pássaro sem usar uma arma, como fora recomendado por Emerson.

aaaaDepois de minha visita, chegou esta carta:

      A saciedade é uma doçura tão grande que suponho nunca ocorrer, só apenas imitações patéticas.
aaaaFabulosa para mim como os homens do Apocalipse que “nunca mais terão fome”. Mesmo o possível tem sua partícula insolúvel.
aaaaDepois que se foi, tomei Macbeth e me fui a “Birnam Wood”. Cheguei duas vezes a “Dunsinane”. Pensei e me vi às voltas com meu trabalho…
aaaaA veia não pode agradecer à artéria, mas seu reconhecimento solene para com ela, até os mais parvos admitem; o mesmo se dá comigo que tento e cujo esforço não produz nenhum som.
aaaaO senhor faz grandes perguntas casualmente. Respondê-las seriam acontecimentos. Confio que esteja bem.
aaaaPeço-lhe que me perdoe por toda a ignorância que demonstrei. Não considero nenhuma apreciação tão doce como sua desaprovação.
aaaaFale, nem que seja para repreender sua aluna obediente.
aaaaMencionou-me os poemas de Mrs. Lowell. Poderia me dizer onde encontrá-los, ou não se pode vê-los? Um artigo seu também, talvez o único que escreveu que eu não tenha lido. Era sobre um “ferrolho” [“Latch”]. Estaria disposto a me dar estas informações? (Talvez “Um Esboço” [“A Sketch”]).
aaaaSe peço demais, por favor recuse. A brevidade da vida me tornou audaciosa.
aaaaO exterior está perto hoje à noite, e não preciso mais que levantar as mãos para tocar as “Alturas de Abraão”.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaDickinson

      Quando disse, ao me despedir, que voltaria daqui a algum tempo, ela respondeu: “Diga, daqui a muito tempo; assim fica mais próximo. Algum tempo não é tempo nenhum.” Encontramo-nos apenas mais uma vez, e não tenho registro expresso da visita. Correspondemo-nos durante anos, com longos intervalos, a sua parte da correspondência tendo sido, receio, mais bem mantida. E por vezes também escreveu para minha esposa, enviando-lhe flores ou folhas de árvores perfumadas, junto com alguns versos. Certa vez mandou-lhe um dos livros de George Eliot, acho que Middlemarch, e escreveu: “Trago-lhe um pequeno livro de granito em que se apoiar.” Outras vezes enviava apenas poemas.

aaaaDepois sobreveio a morte de seu pai, este forte pai puritano que lhe havia transmitido uma parcela tão grande do vigor de sua própria natureza, e que lhe comprara muitos livros, mas pedira que não os lesse. Depois de servir na Câmara do Congresso Nacional e de ocupar outras funções públicas, Mr. Edward Dickinson tornara-se membro da Câmara Baixa no legislativo de Massachusetts. A sessão fora inusitadamente longa, e ele proferia um discurso sobre alguma questão ferroviária no auge de um dia muito quente (15 de junho de 1874), quando de repente se sentiu mal e se sentou. A sessão foi suspensa, e um amigo caminhou com ele até seus aposentos em Tremont House, onde começou a fazer as malas para voltar para casa, depois de ter mandado buscar um médico; mas morreu em três horas. Pouco tempo depois disso, recebi a seguinte carta:

     Na última tarde que meu pai viveu, embora sem nenhum pressentimento, preferi estar com ele e inventei uma saída para a mãe, enquanto Vinnie (sua irmã) dormia. Ele pareceu particularmente feliz com isso, já que quase sempre prefiro ficar comigo mesma; e observou, enquanto a tarde passava, que “gostaria de que não terminasse”.
aaaSeu prazer quase me encabulou, e, chegando meu irmão, sugeri que fossem caminhar. Na manhã seguinte, acordei-o para o trem e não mais o vi.
aaaSeu coração era puro e terrível, e acho que não existe outro igual.
aaaAlegra-me que haja a imortalidade, mas preferia tê-la experimentado eu própria, antes de confiá-lo a ela. Mr. Bowles esteve conosco. Fora isso, não vi ninguém. Tenho desejado estar com o senhor desde que meu pai morreu, e, se tivesse uma hora desocupada, seria quase sem preço. Obrigada por toda a bondade…

Mais tarde escreveu:

     Quando penso na vida solitária de meu pai e na sua morte ainda mais solitária, há este consolo –

Take all away;
The only thing worth larceny
Is left – the immortality.

Tirem tudo;
A única coisa digna de roubo
Permanece – a imortalidade.

     Meu amigo mais antigo escreveu-me na semana antes de morrer, “Se viver, irei a Amherst; se morrer, certamente chegarei lá.”
aaaaSua casa fica numa distância mais profunda?

                                                                               Sua Aluna

Um ano mais tarde, recebi o seguinte bilhete:

     Caro amigo, – Minha mãe ficou paralítica terça-feira, um ano depois da noite em que meu pai morreu. Pensei que talvez gostasse de saber.

                                                                                Sua Aluna

      Junto com ele, veio o seguinte poema com um curioso sabor setecentista:

 A death-blow is a life-blow to some,
Who, till they died, did not alive become;
Who, had they lived, had died, but when
They died, vitality begun.

Um golpe mortal é vital para alguns,
Que, até morrerem, não se tornaram vivos;
Que, se tivessem vivido, teriam morrido,
Mas, ao morrerem, inicia-se a vitalidade.

     E mais tarde recebi esta espécie de memorial de um dos mais antigos e fiéis amigos da família, Mr. Samuel Bowles, do “Republican” de Springfield.

     Caro amigo, – Senti-me protegida ao vir lhe falar.
aaaaMeu irmão e minha irmã estão com Mr. Bowles, que será enterrado esta tarde.
aaaaA última canção que escutei – ou seja depois dos passarinhos – foi “He leadeth me, he leadeth me; yea, though I walk” [“Ele me guia, ele me guia; sim, embora eu caminhe”] – depois as vozes se curvaram, o arco era baixo demais.

Após mais esta perda, a vida íntima da família diminuída tornou-se ainda mais concentrada, e o mundo foi mantido cada vez mais afastado. Entretanto, a esse período pertence a seguinte carta, escrita por volta de 1880, que possui, em grau maior do que qualquer outra que me escreveu, o que é geralmente chamado de qualidade objetiva ou concreta; mostra como poderiam ter sido acuradas sua observação e sua simpatia, se suas raras qualidades tivessem derivado por um canal diferente:

Caro amigo, – Lembrei-me dela comovida (uma criança que morrera) esta manhã, por causa de uma índia com cestas alegres e um bebê encantador na porta da cozinha. Seu garoto “morrera há tempos”, disse, a morte, para ela, afastando-o. Perguntei-lhe do que o bebê gostava, e ela respondeu “de caminhar”. A campina diante da porta estava alegre com as flores do feno, e levei-o para lá. Ele conversou com os passarinhos, encostou-se em cercas de trevo, e elas cederam e o deixaram cair. Com uma linguagem mais doce que um sino, agarrou botões-de-ouro e juntos caíram no chão, os botões-de-ouro com maior peso. Que emprego mais doce do dia! Foi a visão de uma cena assim que fez Vaughan dizer humildemente, –

“My days that are at best but dim and hoary”.
Meus dias que são, no seu apogeu, apenas turvos e desbotados”.

Acho que foi Vaughan…

     E esses poucos fragmentos de memórias – fechando, como qualquer biografia humana, com funerais, mas com os que eram para Emily Dickinson apenas a introdução solene a uma vida mais elevada – bem que podem terminar com sua descrição da morte do próprio verão que ela tanto amava.

As imperceptibly as grief
The Summer lapsed away,
Too imperceptible at last
To feel like perfidy.

A quietness distilled,
As twilight long begun,
Or Nature spending with herself
Sequestered afternoon.

The dusk drew earlier in,
The morning foreign shone,
A courteous yet harrowing grace
As guest that would be gone.

And thus without a wing
Or service of a keel
Our summer made her light escape
Into the Beautiful.

Imperceptivelmente como a dor
Passou o verão,
Imperceptível demais afinal
Para parecer perfídia.

Uma quietude ressumou,
Como crepúsculo há muito iniciado,
Ou a Natureza passando consigo mesma
A tarde solitária.

O lusco-fusco findou mais cedo,
A manhã brilhou forasteira,
Uma graça cortês mas angustiada
Como a de um convidado desejando partir.

E assim sem uma asa,
Nem o auxílio de uma quilha,
Nosso verão fugiu sutilmente
Para dentro da Beleza.


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