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Ficção

Mercúrio – Um Ensaio de D. H. Lawrence

Mercúrio é um deus romano sempre associado ao deus grego Hermes, sendo os dois frequentemente representados com as mesmas sandálias e gorro alados, o mesmo caduceu. Filho de Zeus e Maia, Hermes era primitivamente cultuado como um deus da fertilidade, e seu nome significa um monte de pedras como os que demarcavam as fronteiras nos campos. Na sua imagem pastoral, Hermes protegia os rebanhos e tinha ligações com as divindades da vegetação, mas na Odisséia ele aparece como o mensageiro dos deuses e aquele que conduz os mortos para o Hades. Mercúrio assimilou principalmente essa sua característica de poder estabelecer a ponte entre os diversos mundos, o dos homens, o dos deuses, o dos mortos. Os dois absorvem o dom da comunicação e da eloqüência. Mercúrio é o deus dos comerciantes, favorecendo como Hermes os ganhos, honestos ou não, que provêm do intercâmbio entre os homens. Quando se pensa nesses dois deuses, o que passa pela cabeça é movimento, viagem, linguagem, comunicação, brincadeira, o ar agitado pelas asas de suas sandálias ou gorro. No ensaio que aqui apresentamos, o escritor inglês D. H. Lawrence relata um passeio ao morro de Mercúrio perto de Baden-Baden na Alemanha, onde ainda existe um antigo altar romano a esse deus. É uma descrição da paisagem, mas, fiel à sua concepção da natureza como fonte de vida subjacente à sociedade moderna intelectualizada, Lawrence pinta o terror e a maravilha das forças elementares, produzindo uma imagem um tanto diversa do deus da comunicação. Um mensageiro talvez impiedoso entre mistérios.

 

Mercúrio

Era domingo, e estava muito quente. Os excursionistas afluíam em bandos ao morro de Mercúrio, para se elevarem seiscentos metros acima do labirinto fumegante dos vales. Pois o verão fora muito úmido, e o calor repentino envolvia a terra num vapor quente.

Cada vez que fazia a subida, o funicular ia lotado. Ele se içava pelo declive íngreme que perto do topo parecia quase perpendicular, a linha de aço dos trilhos pendendo no meio da voragem dos pinheiros como uma corda de ferro contra um muro. As mulheres prendiam a respiração e não olhavam. Ou voltavam o olhar para os níveis descendentes do rio, cobertos de vapores e indistintos, estendendo-se muito além da fronteira.

Quando se chegava ao topo, não havia o que fazer. O morro era um cone coberto de pinheiros; as trilhas serpeavam entre os altos troncos das árvores e podia-se caminhar ao redor e vislumbrar o mundo em todas as direções: o vale do rio, distante e pouco nítido, com o brilho opaco da grande corrente, a oeste; ao sul, os morros negros, cobertos de florestas, parecendo vivos, com clareiras verdes-esmeraldas e uma ou duas casas brancas; a leste, o vale interno, com duas vilas, chaminés de fábrica, igrejas pontiagudas e morros à distância; e ao norte, os montes escarpados da floresta, com rochedos avermelhados e ruínas de castelo avermelhadas. O sol quente ardia no alto, e tudo estava mergulhado em vapor.

Só bem no cume do morro é que havia uma torre, um mirante; e um longo restaurante com sua cervejaria ao ar livre, todas as mesinhas amarelas aprumando seus discos redondos sob os castanheiros-da-índia; depois um pequeno jardim de pedras na encosta. Mas as grandes árvores voltavam a aparecer no ermo alguns metros além.

A multidão domingueira subia em ondas a partir do funicular. Em ondas refluía pela cervejaria ao ar livre. Mas poucos se sentavam para beber. Ninguém estava gastando dinheiro. Alguns pagavam para subir ao mirante, para ver lá embaixo um mundo de vapores e morros negros, vivos, encolhidos, além de cidades meio calcinadas. Depois todos se dispersavam pelas trilhas, para sentar entre as árvores no ar fresco.

Não corria nem sequer uma aragem. Deitados no chão e com os olhos virados para o alto, fixos no mundo intermediário bárbaro e emaranhado dos pinheiros, era difícil decidir se os altos troncos puros sustentavam a mata superior da escuridão, ou se dela caíam como grandes cordas estendidas para baixo. De qualquer modo, no espaço entre o mundo dos cimos das árvores e o mundo da terra passavam as maravilhosas cordas bem limpas de inúmeros troncos orgulhosos, claros como a chuva. E ao se observar, via-se que o mundo superior se movia ligeira, tenuemente, balançando muito de leve, com um movimento circular, embora os troncos mais embaixo se mantivessem totalmente imóveis e monolíticos.

Não havia o que fazer. Em todo o mundo, não havia o que fazer, nada a ser feito. Por que viemos todos ao cume do Merkur? Não temos o que fazer.

Que importa? Demos um passo além do mundo. Que ele fumegue e calcine sua realidade meio crestada lá embaixo. Sobre o morro de Mercúrio, não tomamos conhecimento. Mesmo nós não nos damos ao trabalho de passear para colher as frutinhas gordas, azuis e azedas. Apenas ficamos deitados e contemplamos os troncos de árvore limpos de chuva, estendendo-se como acordes musicais entre dois mundos.

As horas passam: as pessoas passeiam, desaparecem e reaparecem. Tudo está quente e quieto. Excepcionalmente, a humanidade não é mais barulhenta. Vai-se tomar alguma coisa, pintassilgos esvoaçam entre as poucas pessoas sentadas às mesas, todo mundo olha de relance para todo mundo, mas à distância.

Não há nada a fazer, exceto voltar e se espichar sob os pinheiros. Nada para fazer. Mas por que fazer alguma coisa na verdade? Passou o desejo de fazer alguma coisa. Os troncos das árvores, vivos como a chuva, eles já são bastante ativos.

Ao pé da torre obsoleta, há uma velha mesa de pedra com um Mercúrio muito amassado em relevo. Há também um altar, ou pedra votiva, ambos dos tempos dos romanos. Supõe-se que os romanos cultuavam Mercúrio no cume do morro. O deus amassado, com sua cabeça redonda de sol, parece pouco impressivo e de olhar vazio no arenito avermelhado do distrito. E ninguém mais vai jogar grãos de oferendas no buraco da pedra votiva, também de arenito avermelhado, muito regional e pouco romana.

Os domingueiros nem olham. Por que olhariam? Continuam a entrar na área dos pinheiros. E muitos se sentam nos bancos, muitos se deitam nas cadeiras preguiçosas. Está muito quente à tarde, e muito quieto.

Até que parece haver um leve assobiar nos cimos dos pinheiros, e da semiconsciência universal da tarde levanta-se um desassossego encrespado. A multidão se agita, olhando para o céu. E, sem dúvida alguma, uma grande escuridão horizontal ergue-se no céu a oeste, formando espirais com lascas brancas e penas soltas. Parece muito sinistra, como só os elementos ainda conseguem parecer. Sob o súbito assobiar fatídico dos cimos dos pinheiros, escuta-se um murmúrio e um chamado reprimido de vozes aterrorizadas.

Todos querem descer; a multidão quer descer do morro de Mercúrio, antes que chegue a tempestade. Sair do morro a qualquer custo! Correm em direção ao funicular, enquanto o céu escurece com incrível rapidez. E quando a multidão investe para a pequena estação, a primeira luz do raio se abre, seguida imediatamente por um estrondo de trovão e uma grande escuridão. Num único movimento estranho, a multidão busca refúgio no fundo da varanda do restaurante, acotovelando-se entre as mesinhas em silêncio. Não há chuva nem vento definido, apenas um frio repentino que faz a multidão se amontoar.

Eles se amontoam, na escuridão e em suspense. Tornou-se curiosamente unida, a multidão, como se tivesse se fundido num único corpo. Quando o ar envia um sopro gelado sob a varanda, as vozes murmuram queixosas, como passarinhos embaixo de folhas, os corpos se unem, procurando abrigo no contato.

A escuridão, preta como a noite, parece continuar por um longo tempo. Então repentinamente o raio dança branco sobre o chão, dança e saracoteia sobre a terra, para cima e para baixo, e ilumina o caminhar branco de um homem, ilumina-o apenas até os quadris, branco, nu e caminhando, com fogo nos calcanhares. Ele parece ter pressa, esse homem de fogo cuja metade superior é invisível, e em seus calcanhares nus parecem adejar pequenas flamas brancas. Suas coxas lisas e poderosas, suas pernas brancas como o fogo passam rapidamente ao relento pela frente da varanda, arrastando com o movimento pequenas flamas brancas nos tornozelos. Ele está indo para algum lugar, velozmente.

No grande estrondo do trovão, a aparição some. A terra se move, e a casa mergulha em completa escuridão. Vem da multidão uma lamúria fraca de terror, enquanto o ar frio entra torvelinhando. Mas, apesar de tudo, sobre a escuridão não cai chuva alguma. Não há alívio: uma longa espera.

Brilhante e ofuscante, o raio cai de novo; um estranho baque contundente vem da floresta, quando todas as mesinhas e os troncos secretos das árvores ficam expostos durante um segundo inatural. Então ouve-se o golpe do trovão, que faz a casa e a multidão cambalearem como sob o impacto de uma explosão. A tempestade está caindo diretamente sobre o Merkur. Vem da floresta um som retardado de ramos se quebrando.

E novamente a pancada branca do raio sobre a terra, mas nada se move. E novamente a longa, estrepitosa e instantânea rajada do trovão, na escuridão. A multidão está ofegante de medo, quando cai mais uma vez o raio branco, e de novo algo parece explodir na floresta, com o estrondar do trovão.

Por fim, na imobilidade da tempestade penetra o vento correndo, com o arremesso flamejante de pedaços de gelo e o súbito rugido marítimo dos pinheiros. A multidão se encolhe e recua, quando os pedaços de gelo atingem o rosto como fogo. O rugido das árvores é muito grande, transforma-se em outro silêncio. E no meio dele ouve-se o tombo estrondoso e o espatifar-se da madeira, quando o furacão se concentra sobre o morro.

Até que cai o granizo, num rugido que abafa qualquer outro som, batendo pesadamente sobre a terra, os telhados e as árvores. E enquanto a multidão ondula irresistivelmente para o interior do prédio, fugindo da trituração da queda de gelo, entre os ruídos ásperos ainda soa o tinido e o crepitar de coisas se quebrando.

Depois de uma eternidade de horror, ele termina subitamente. Lá fora brilha uma tênue luz amarela sobre a neve e os intermináveis destroços de galhos e coisas quebradas. Faz muito frio, a atmosfera é de gelo e inverno rigoroso. A floresta parece negra sobre a terra branca, onde as pedras de gelo jazem aos milhares, um manto de quinze centímetros de profundidade, juncadas de todos os galhos e coisas que destroçaram.

” Sim! Sim!” dizem os homens, armando-se de repentina coragem quando a luz amarela penetra no ar. “Agora podemos ir!”
Os primeiros bravos aparecem, pegando as grandes pedras de gelo, apontando para as mesas derrubadas. Mas alguns não se demoram. Correm para a estação do funicular, querem ver se o aparelho ainda está funcionando.
A estação do funicular fica no lado norte do morro. Os homens voltam, dizendo que lá não há ninguém. A multidão começa a aparecer sobre a brancura molhada e rangente do granizo, espalhando-se ao redor com curiosidade, esperando pelos homens que operam o funicular.
No lado sul do mirante, dois corpos jaziam no granizo frio, mas já se derretendo. O azul-marinho dos uniformes parecia enegrecido. Os dois homens estavam mortos. Entretanto, o raio havia tirado toda a roupa das pernas de um deles, de modo que ele estava nu dos quadris para baixo. Ali jazia, o rosto de lado sobre a neve, e duas gotas de sangue corriam do nariz para o grande e loiro bigode militar. Ali jazia, perto da pedra votiva de Mercúrio. Seu companheiro, um jovem, estava deitado de face para baixo, alguns metros atrás dele.

O sol começava a aparecer. A multidão contemplava horrorizada, com medo de tocar nos corpos dos homens. Mas por que os mortos, os homens do funicular, tinham vindo para esse lado do morro afinal?

O funicular não queria funcionar. Algo lhe acontecera na tempestade. A multidão começou a descer serpeando o morro desnudo, sobre o gelo escorregadio. Por toda parte a terra estava eriçada de ramos e galhos de pinheiro quebrados. Os arbustos e as árvores copadas haviam sido totalmente desfolhados, como num milagre. Embaixo, a terra estava sem folhas e nua como no inverno.

“Inverno absoluto!” murmurava a multidão, enquanto se precipitavam, atemorizados, pela descida íngreme e sinuosa, desembaraçando-se dos ramos de pinheiro caídos.

Enquanto isso, o sol começava a fumegar num grande calor.

 

Tradução de Rosaura Eichenberg
Texto original in 50 Great Essays,  editado por Elizabeth and Edward Huberman.  Bantam Books, Inc.,  1971


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