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Matéria de Capa

Cartas ao Mestre

Janela do quarto de Emily Dickinson

Entre as cartas para os amigos, há três que foram encontradas no seu espólio, isto é, que não foram enviadas. Aliás, cabe frisar que não foram encontradas entre suas cartas, mas entre os poemas. São dirigidas a alguém que ela chama de Mestre, e ficaram conhecidas, por esse motivo, como as Cartas ao Mestre.  São cartas de amor, e os estudiosos da obra e da vida de Emily Dickinson discutem até hoje quem seria o destinatário.

Eles acusam a presença de três homens na sua solitária existência. Em 1855, Emily realizou uma viagem a Washington, onde seu pai servia na Câmara Alta do Congresso Nacional, e, ao passar mais tarde por Filadélfia, conheceu o reverendo Charles Wadsworth, famoso por seus sermões. O encontro parece ter sido significativo para ambos, e a Charles Wadsworth, que era um homem casado, tem-se atribuído a decepção amorosa que, dizem, teria levado Emily ao isolamento. Outro homem de enorme importância na  vida da poeta foi Samuel Bowles, o editor de Springfield Republican, amigo de seu pai, (aquele que se admirou do conhecimento agrário de Emily), que com a esposa visitava os Dickinson quando ia a Amherst. De Bowles, Emily deu a seguinte descrição: “The most radiant face out of Paradise!”  [“A face mais radiante fora do Paraíso!”] Já no final da sua vida houve um relacionamento de certa intensidade com outro amigo de seu pai, o juiz Lord, chegando até a correr boatos de um possível casamento. As Cartas ao Mestre foram escritas muito antes desse último episódio, o que exclui o juiz Lord das conjeturas. Mas, entre Bowles e Wadsworth, ninguém consegue determinar com precisão a quem seriam destinadas. Se alguns detalhes apontam para Bowles, outros insinuam Wadsworth. O certo é que são cartas de amor não correspondido.

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos disse que todas as cartas de amor são ridículas. Bem, estas três cartas de Emily Dickinson não são ridículas. Talvez porque nunca tenham sido enviadas. Em vez de despir seus sentimentos, ela os veste com imagens refinadas e os encena como no teatro. É o que se dá principalmente na segunda carta, sem dúvida a mais bem elaborada das três. O resultado é uma rica expressividade, sem que o drama por trás deixe de transparecer.

Como não foram enviadas, a edição das cartas requer cuidado. Duas foram escritas à tinta, tendo correções a lápis, a terceira, toda a lápis. Há cortes, correções, alternativas. Sem falar na sua estranha forma de pontuação, com o travessão substituindo pontos e vírgulas. A tradução que aqui apresentamos foi feita a partir do texto editado em The Life of Emily Dickinson de Richard B. Sewall [Sewall, Richard B.  The Life of Emily Dickinson. Nova Yok, Farrar, Straus and Giroux, 1980], no qual os cortes estão entre chaves e outras alternativas de leitura, entre parênteses.

 

 

QUERIDO MESTRE

Estou doente, mas sofrendo mais por você estar doente, obrigo minha mão mais forte a trabalhar o necessário para lhe dizer. Pensei que talvez estivesse no céu, e quando você falou de novo, soou doce, maravilhoso e me surpreendeu tanto – desejo que esteja bem.

Gostaria que todos os que amo nunca mais ficassem fracos. As violetas estão ao meu lado, o tordo muito perto, e a “Primavera” – eles dizem, Quem é ela – passando pela porta –

Na verdade, é a casa de Deus – e estes são os portões do céu, e para lá e para cá passam os anjos com seus doces presságios – Gostaria de ser grande, como Miguel Ângelo, e que pudesse pintar para você. Pergunta o que minhas flores dizem – então elas foram desobedientes – confiei-lhes mensagens. Dizem o que os lábios no poente falam, quando o sol se põe, e o mesmo diz o amanhecer…

Ouça de novo, Mestre. Não lhe revelei que hoje foi domingo.

Cada domingo me faz contar os domingos até nos encontrarmos na praia – e [será  que] conjeturar se as colinas parecerão tão azuis como os marinheiros afirmam. Não posso falar mais [ficar mais tempo] hoje à noite [agora], pois esta dor mo nega.

Que fortes, quando fracos, para lembrar, e fácil, realmente, amar. Me dirá, por favor, me dirá, assim que ficar bom.

 

 

 

MESTRE

Se visse uma bala atingir um passarinho – e ele lhe dissesse que não ficou ferido – você poderia chorar com a sua delicadeza, mas certamente duvidaria de sua palavra.

Uma gota a mais do corte que mancha o peito de sua Daisy – então acreditaria? A fé de Tomé na Anatomia era mais forte que sua fé na fé. Deus me fez – [Senhor] Mestre – não vim a ser por mim mesma. Não sei como se deu. Ele criou o coração dentro de mim – aos poucos tornou-se maior que eu – e como a mãe pequena – com o filho grande – fiquei cansada de segurá-lo. Ouvi falar de uma coisa chamada “Redenção” – que trazia paz aos homens e às mulheres. Lembre-se de que lha pedi – você me deu algo diferente. Esqueci a Redenção [pelo Redimido – não lhe disse por muito tempo, mas sabia que você me modificara – eu] e nunca mais fiquei cansada –

Rosa não, contudo me senti em flor,
Pássaro não – mas flutuei no Ar.

[tão querido tornou-se esse estranho que se fosse ele ou a minha vida – a Alternativa – teria lançado o sujeito fora com um sorriso.] Estou mais velha – hoje à noite, Mestre – mas o amor é o mesmo – assim como a lua e o crescente. Se fosse a vontade de Deus que eu pudesse respirar onde você respirou – e encontrar o lugar – por mim mesma – à noite – se nunca (posso) esquecer que não estou com você – e que a tristeza e a geada estão mais perto que eu – se desejo com uma força que não posso reprimir – que meu fosse o lugar da Rainha – o amor do Plantageneta é minha única desculpa – Para chegar mais perto do que os presbitérios – e mais perto do que o casaco novo – que o alfaiate fez – a travessura do coração a brincar com o coração – em feriado santo – me é proibida – Você me faz dizê-lo de novo – Receio que ria – quando não estou vendo – [mas] “Chillon” não é engraçado. Você tem o coração no seu peito – Senhor – está colocado como o meu – um pouco para a esquerda – conhece ele a apreensão de – ser acordado à noite – ser talvez ele próprio para si mesmo – um pandeiro – ele próprio para si mesmo uma melodia?

Essas coisas são [reverentes] santas, Senhor, menciono-as [reverentemente] sagradas, mas as pessoas que rezam – ousam falar [nosso] “Pai”! Diz que não lhe conto tudo – Daisy confessou – e nada negou.

O Vesúvio não fala – o Etna – também não – [Seu] Um deles – pronunciou uma sílaba – muitos anos atrás, e Pompeia a escutou e escondeu-se para sempre – Ela não pôde encarar o mundo de frente depois disso – suponho – Tímida Pompeia! “Falar-lhe da privação” – você sabe o que é uma sanguessuga, não – e [lembre-se de que] o braço de Daisy é pequeno – e você já sentiu o horizonte, não – e o mar – nunca chegou bem perto a ponto de fazê-lo dançar?

Não sei o que você pode fazer – obrigada – Mestre – mas se eu tivesse barba na face – como você – e você – as pétalas de Daisy – e gostasse assim de mim – o que lhe aconteceria? Conseguiria me esquecer na luta, na fuga –  ou em terra estrangeira? Carlo, você e eu não poderíamos caminhar nos prados por uma hora – sem que ninguém se importasse a não ser a triste-pia – e o seu – um escrúpulo de prata? Costumava pensar que quando morresse – poderia ver você – por isso morria o mais rápido possível – mas a “Corporação” também vai, de modo que o céu [a eternidade] não será a sós – agora [de modo algum] – Diga que posso esperar por você – diga que não preciso ir com um estranho ao para mim – não experimentado [país] território – Esperei muito tempo – Mestre – mas posso esperar mais –  esperar até que meu cabelo castanho fique malhado – e você carregue a bengala – então olharei no meu relógio e se o dia já estiver adiantado no seu declínio – poderemos aventurar-nos para o céu – O que você faria comigo se eu viesse “de branco”? Você tem o pequeno cofre para colocar os vivos –  dentro?

Quero ver você – Senhor – mais do que tudo que almejo neste mundo –  e o desejo – um pouco alterado – será  o meu único – para os céus.

Poderia vir … à Nova Inglaterra – [este verão – poderia] viria a Amherst – Gostaria de vir – Mestre?

[Isso causaria dano? – mas nós dois tememos a Deus] – Daisy o desapontaria? – não – ela não faria isso – Senhor – seria um consolo para sempre – apenas olhar no seu rosto, enquanto você olhasse no meu – então eu poderia brincar no mato até de noite – até você me levar ao lugar onde o crepúsculo não pode nos achar – e os verdadeiros não param de chegar –  enquanto a cidade não ficar repleta. Me dirá se vai me levar?

Não pensei em lhe falar, você não veio até a mim “de branco”, nem me disse nunca por que não.

 

 

 

 

 

Oh! ofendi-o – [ele não queria que eu lhe dissesse a verdade?] Daisy –  Daisy – ofendê-lo – que curva a sua pequena vida para a dele (e fica) mais humilde (mais diminuta) cada dia – que apenas pede – uma tarefa – [que] algo para fazer por amor dele – uma maneira que ela não consegue adivinhar para tornar esse mestre feliz –

Um amor tão grande que a amedronta, lançando-se sobre seu pequeno coração – roubando-lhe o sangue e deixando-a (toda) fraca e branca nos braços do redemoinho –

Daisy – que nem uma vez se encolheu durante aquela terrível despedida, mas manteve sua vida firme para que ele não visse a ferida – que o teria abrigado no seu peito (coração) infantil – só que não era bastante amplo para hóspede tão grande – esta Daisy – causar desgosto a seu Senhor – e contudo ele (ela) muitas vezes errou – Talvez ela tenha desagradado (arranhado) seu gosto – talvez seus estranhos modos [vida] rústicos tenham [perturbado] provocado sua natureza (juízo) mais refinada. Daisy sabe de tudo isso – mas deveria continuar sem perdão? – ensine-lhe, preceptor, a graça – ensine-lhe a majestade – Vagarosa (lerda) para as coisas nobres – até a corruíra no seu ninho aprende (sabe) mais do que Daisy ousa –

Aos pés do joelho que a transportou um dia a uma paz [real] sem palavras [agora] Daisy [curva-se] ajoelha-se culpada – diga-lhe sua [ofensa] falta – Mestre – se for [não tão] pequena o bastante para acabar com a sua vida, [Daisy] ela ficará satisfeita – mas castigue-a [não] não a mande embora – encerre-a na prisão, Senhor – prometa apenas que perdoará –  algum dia – diante do túmulo, e Daisy não se importará – Ela despertará à semelhança de seu Mestre [de você]

O assombro me ferroa mais que a Abelha – que nunca me picou – mas sempre produziu música alegre com seu poder por onde quer que eu [pudesse] [devesse passar] passasse – O assombro diminui meu tamanho, você disse que eu não tinha peso a perder –

Você impele a água para fora da represa nos meus olhos castanhos –

Peguei uma tosse diminuta – mas não me importo com isso – Tenho uma machadinha no meu corpo mas não me fere muito. [Se você] O seu mestre a apunhala mais –

Não virá ele até ela – ou deixará que ela o procure, não se importando nunca [com o que quer que seja] com tão longos desvios [por fora] se chegar a ele por fim.

Oh, como o marinheiro faz força, quando o barco enche de água – Oh, como os moribundos labutam, quando chega o anjo. Mestre – abra bem a sua vida, e receba-me para sempre, nunca ficarei cansada – nunca farei barulho quando você quiser silêncio. Serei [feliz] [como a] sua melhor menina – ninguém mais me verá, a não ser você – mas isso me basta – não desejarei nada mais – e se todo esse céu me desapontar – será só porque não é tão querido

 

 

Carta 1:  escrita à tinta. O que está entre chaves são palavras suprimidas a lápis.
Carta 2: escrita à tinta, com muitas correções a lápis. As palavras suprimidas estão entre chaves, e as leituras alternativas entre parênteses.
Carta 3: escrita inteiramente a lápis. As palavras suprimidas estão entre chaves, e as leituras alternativas entre parênteses.

 

Tradução de Rosaura Eichenberg

A foto é da visita de Fernando Eichenberg a Amherst.

 


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