I’m nobody! Who are you?
Are you nobody too?
Then there’s a pair of us – don’t tell!
They’d banish us, you know.
How dreary to be somebody!
How public like a frog
To tell your name the livelong day
To an admiring bog!
Não sou ninguém. E você?
Ninguém também?
Então somos dois – não espalhe!
Eles nos baniriam, você sabe.
Que tédio é ser alguém!
Tão público como um sapo
A dizer o nome o dia inteiro
A um reverente charco!
aaaaaQuem assim se apresenta atendia pelo nome de Emily Elizabeth Dickinson em Amherst, Massachusetts, no século XIX, mais precisamente de 1830 a 1886. E responde por uma obra ímpar na poesia norte-americana.
aaaaaQuase 2.000 poemas escritos, cuidadosamente guardados e atados com fitas, que, à exceção de um ou dois, só vieram à luz depois de sua morte. Apesar de criada e educada num ambiente intelectual, seu avô fundou a universidade em Amherst, seu pai foi membro da Câmara Alta do Congresso Nacional e tinha uma rede de amizades influentes na Nova Inglaterra, a poeta não só conservou inéditos os seus escritos, como levou uma vida de reclusa na casa paterna, chegando ao ponto de recusar sair do quarto nos últimos anos em que viveu. Vestindo-se então apenas de branco, negando encontros a amigos e conhecidos, ela ganhou a reputação de excêntrica, embora tivesse passado sua existência cumprindo tarefas domésticas simples, como fazer o pão caseiro e cuidar do jardim, sempre ao lado de Carlo, seu cão de estimação. Existência que lhe bastava, como afirmou a Thomas Wentworth Higgison, o crítico coetâneo a quem procurou para saber se seu verso tinha vida. O sustento provinha de sua vida interior. Personalidade muito forte, rebelde ao ambiente religioso de seu tempo a ponto de recusar fazer sua profissão de fé cristã, talvez tenha sido a intensidade de seus sentimentos o que a fez isolar-se cada vez mais, porque as outras pessoas simplesmente não tinham condições de corresponder com igual intensidade.
aaaaaSempre é bom lembrar que ela escreveu: “Abyss has no biographer” – “O abismo não tem biógrafo.” E afirmou também que a biografia primeiro nos convence da fuga do biografado… Diante de Emily Dickinson esbarramos em dois mistérios, o de sua vida e o de sua poesia. Muito possível perder-se em conjeturas, mas vale o trabalho para tentar cercar cada enigma, ainda que indecifrado. Os fragmentos que nos caem nas mãos guardam nas arestas lembranças da água jorrando nos cântaros ainda inteiros.
aaaaa
Um enigma de Emily Dickinson que todos os biógrafos tentam esclarecer é sua reclusão. Sempre preferindo estar só, pronta a fugir de qualquer contato humano, refugiando-se em geral na sombra da irmã mais moça, que se incumbia das relações sociais e de detalhes práticos como provar as roupas novas, a poeta desde cedo deixou claro que lhe bastava a companhia de seu amigo peludo, Carlo. Mas cabe frisar que estava longe de possuir uma timidez que a tolhesse sobremaneira. Formou seu círculo de amizades na escola que freqüentou desde os nove anos, Amherst Academy, bem como na instituição de educação superior Mount Holyoke onde passou um ano estudando, e, bem ou mal, participava da vida social da Amherst que se curvava aos poderosos Dickinson, a ponto de eles terem uma calçada coberta de cascalho que as pessoas comuns não usavam. O irmão Austin deixou seu testemunho de que, no grupo social de que participavam, Emily era sempre a mais procurada por seu brilho, originalidade e inteligência. Outro aspecto seu que contribui para a imagem de uma personalidade forte é a crítica constante ao ambiente social da provinciana Amherst, no que era secundada pelo irmão mais velho. Além disso, era rebelde. Insurgia-se até contra o pai, o homem severo que não sorria, e recusou fazer sua profissão de fé cristã contra toda a pressão familiar e social. O pai chegou a pedir que um pastor conversasse com a filha para descobrir se ela não sofria de algum distúrbio que explicasse a teimosia. Difícil, portanto, reunir todas essas impressões contraditórias – retraimento, poder, rebeldia, dependência, crítica – que compunham o perfil de “the Queen Recluse”, como a chamou Samuel Bowles, o jornalista amigo da família.
aaaaaSegundo os familiares, a reclusão de Emily se deu aos poucos, gradativamente, de tal forma que não os teria surpreendido. Mas foi só depois dos trinta anos que essa tendência se acentuou, e ela se isolou na casa paterna. Em 2010, Lyndall Gordon publicou uma biografia de Emily Dickinson com o título de Lives Like Loaded Guns [Gordon, Lyndall. Lives like Loaded Guns. Emily Dickinson and Her Family’s Feuds. Nova York, Viking Penguin, 2010], na qual introduz uma tese inusitada sobre a vida excêntrica da poeta. Sugere que seu comportamento teria sido causado por uma doença neurológica, mais precisamente, por Emily Dickinson sofrer de epilepsia. Sabe-se pelos dados biográficos disponíveis que a poeta tinha uma saúde frágil. Quando estudou em Mount Holyoke Female Seminary (de setembro de 1847 a agosto de 1848), Emily teve de voltar para casa nas férias da primavera por motivo de doença, e seu pai decidiu que ela não retornaria em setembro para mais um ano de estudos na instituição. Em 1864, a poeta passou sete meses em Boston para um tratamento dos olhos. Seus problemas de visão chegaram a deixá-la praticamente cega por algum tempo, impedindo que se dedicasse a suas leituras e escritos. A temporada em Boston foi longa, mas os médicos conseguiram curá-la. São frequentes as menções a doenças nas cartas de Emily Dickinson, e seus biógrafos registram mais de uma consulta com médicos de Boston.
aaaaaaQuando o sobrinho Gilbert, o filho caçula de Austin Dickinson, morreu de febre tifóide aos 8 anos, Emily atravessou o espaço entre a casa paterna e a do irmão para vê-lo em seu leito de morte, mas passou mal e teve de ser levada de volta pela empregada. A morte da criança abalou toda a família, e nos três anos que ainda viveu depois desse trauma, Emily teve várias perdas de consciência que se tornavam cada vez mais longas. Quando morreu depois de um desses episódios, o irmão Austin relatou seu respirar pavoroso nos momentos finais. Não se conhecem os males de que sofria Emily Dickinson, os médicos falam hoje em doença de Bright, um nome antigo para insuficiência renal crônica, que é uma consequência de hipertensão grave e prolongada, mas é muito possível que os médicos à época também não soubessem o que a afligia, ainda mais porque nos últimos anos só podiam examiná-la de longe, observando-a caminhar à distância. É seguro, pois, afirmar que a poeta tinha uma constituição física frágil, o que torna a tese de Lyndall Gordon até plausível, mas o difícil é aceitar a doença aventada em meio a tantos mistérios. Havia epilépticos na família de Emily Dickinson, seu próprio sobrinho Ned, o filho mais velho do irmão, sofria de epilepsia, mas daí a atribuir esse mal específico à poeta soa um tanto forçado. Tanto quanto conjeturar que a reclusão na casa paterna teria sido causada por um desapontamento amoroso. A atitude ainda mais sensata parece ser a de respeitar os mistérios dos indivíduos. Aliás, cabe citar a esse respeito uma frase do texto escrito pela cunhada Susan Dickinson para o Springfield Republican, quando da morte de Emily Dickinson:
“Não desapontada com o mundo, nem inválida até os últimos dois anos, tampouco por falta de simpatia ou por alguma deficiência para qualquer ofício mental ou carreira social – seus dons sendo tão excepcionais – , mas a ‘malha de sua alma’, como Browning chama o corpo, era demasiado rara, e a quietude sagrada do lar se revelou a atmosfera adequada para seu valor e trabalho.”
O testemunho dessa existência misteriosa são os seus muitos poemas, que conseguem a proeza de driblar o tempo, encontrando receptividade maior nos ouvidos dos séculos XX e XXI do que nos de sua época. Estão hoje coligidos na edição de Thomas H. Johnson, The Complete Poems of Emily Dickinson, de 1955, e na edição crítica mais completa e atualizada de Richard W. Franklin, The Poems of Emily Dickinson. Variorum Edition, de 1998. Essas duas edições dos poemas respeitam a ortografia dos manuscritos, a grafia em caixa-alta de algumas palavras, e a estranha pontuação com travessões. Em cima de uma estrutura que lembra os hinos religiosos, Emily Dickinson constrói uma música refinadíssima, moderna nas suas dissonâncias e quebras de expectativa, recorrendo a palavras pouco comuns e a uma sintaxe de extremada originalidade. De leitura difícil, os poemas oferecem, para quem aceita o desafio, intuições surpreendentes sobre a vida. Dois são os temas que ela mais sabe cantar, a natureza e a morte.
O encanto, o deslumbramento, a experiência rica dos sentidos no contato com a natureza extravasam nos poemas. Em “I taste a liquor never brewed”, que chegou a ser publicado em vida da poeta, ela constrói uma metáfora deliciosa ao se descrever bêbada, embriagada de uma bebida não fermentada, isto é, a própria natureza. As imagens e os termos que em geral emprega são de grande força e também revelam um conhecimento minucioso e uma familiaridade com o mundo natural. Afinal, ela, a irmã e a mãe tinham, entre seus afazeres diários, os cuidados com o jardim nos meses amenos e com as plantas da estufa no inverno. Samuel Bowles, o jornalista amigo de seu pai, reagiu a um poema em que ela dizia – “He likes a Boggy Acre – / A Floor too cool for Corn” – “Ele gosta de um Acre Pantanoso – / Um Terreno demasiado frio para Cereais” – perguntando admirado como é que ela sabia que um terreno pantanoso não é bom para cereais.
aaaaaaOra, isso é desconhecer os estudos realizados pela poeta em Amherst Academy e mais tarde em Mount Holyoke Female Seminary. Em Amherst College, predominava a sabedoria de Edward Hitchcock, professor de química e história natural, geologia e teologia, além de presidente dessa instituição de ensino de 1845 a 1854. Cientista nato, Hitchcock jamais deixou de se dedicar à descoberta e divulgação do conhecimento científico, mesmo depois de se tornar adepto da religião revelada. Como diz Richard B. Sewall em sua biografia de Emily Dickinson [Sewall, Richard B. The Life of Emily Dickinson. Nova York, Farrar, Straus amd Giroux, 1980], ele incutiu em toda uma geração um amor pela natureza que combinava o sentido da sublimidade com um conhecimento preciso das partes e processos, de acordo com o estágio das ciências naturais àquela época. Aluna em Amherst Academy, Emily Dickinson absorveu a orientação desse professor que ela conheceu por meio de palestras e artigos, e seus estudos sempre exibiram um cunho científico. Basta ver as disciplinas que estudou, como, por exemplo, geologia, astronomia, botânica. Ainda menina, montou um herbário, e seu conhecimento da flora ao redor de Amherst era famoso entre os amigos. Por isso, seus poemas da natureza se constroem sobre um forte substrato de conhecimento e observação precisa. Os vulcões e os terremotos se tornam íntimos dos versos, o “white heat” dança na forja do ferreiro. Como ela afirma num poema,
“Faith” is a fine invention
When gentlemen can see –
But microscopes are prudent
In an emergency.
A “Fé” é uma bela invenção
Se os cavalheiros possuem visão –
Mas microscópios, prudência
Numa emergência.
Samuel Bowles não tinha por que se espantar com o conhecimento do solo demonstrado por Emily Dickinson.
aaaaaSua geografia era também considerável, e figuram em seus poemas Túnis, Trípoli, a Índia, a Líbia. Até mesmo os pampas brasileiros. Sim, isolada em Amherst, ela sabia do Brasil, país que a atraía sobretudo pelas cores fortes sugeridas pelo nome, derivado de pau-brasil, e pela descrição da flora. O Brasil mencionado pode se tingir de tonalidades míticas, mas temos hoje a confirmação de que a curiosidade da poeta procurou conhecê-lo como terra realmente existente. Entre os livros que pertenceram a Emily Dickinson, guardados na biblioteca de Harvard, encontra-se um que foi presente de seu pai: Exploration of the Valley of the Amazon, de William Lewis Herndon and Lardner Gibbon, publicado em dois volumes em 1853-54. O país descrito no livro aparece em vários poemas, e vale citar um bem famoso, em que nossa terra surge como uma talvez mercadoria de mascate, se bem que inatingível – real e irreal, ao mesmo tempo.
I asked no other thing,
No other was denied.
I offered Being for it;
The mighty merchant smiled.
Brazil? He twirled a button,
Without a glance my way;
“But, madam, is there nothing else
That We can show to-day?”
Nada pedi além disso,
Nada mais me foi negado.
Ofereci o Ser em troca;
O poderoso mercador sorriu.
Brasil? Ele girou um botão,
Sem um olhar sequer pro meu lado;
“Mas, madame, não há mais nada
Que pudesse lhe mostrar hoje?
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa(Tradução de Isis Alves e Rosaura Eichenberg)
aaaaaMas é sobretudo como um guia seguro no confronto com a morte que a poesia nos atinge em cheio o coração. Eis como ela canta suas primeiras perdas:
I never lost as much but twice,
And that was in the sod.
Twice have I stood a beggar
Before the door of God!
Angels, twice descending,
Reimbursed my store.
Burglar, banker, Father!
I am poor once more!
Nunca perdi mais de duas vezes,
E foi onde a relva floresceu.
Duas vezes parei mendiga
Diante da porta de Deus!
Os anjos, duas vezes descendo
Reembolsaram minha escassez.
Arrombador, banqueiro, Pai!
Estou pobre mais uma vez!
aaaaaIncomum dirigir-se a Deus como arrombador e banqueiro. Mais tarde, ela torna a lamentar uma dupla perda.
My life closed twice before its close;
It yet remains to see
If Immortality unveil
A third event to me.
So huge, so hopeless to conceive,
As these that twice befell.
Parting is all we know of heaven,
And all we need of hell.
Minha vida fechou-se duas vezes antes de fechar-se;
Resta, entretanto, saber
Se a Imortalidade me revelará
Um terceiro acontecer.
Tão imenso, impossível de supor
Quanto estes dois que me couberam.
Separação é tudo o que do céu sabemos
E tudo o que necessitamos do inferno.
(Tradução de Isis Alves e Rosaura Eichenberg)
aaaaaEm outro poema, “Because I could not stop for Death”, ela pinta a morte como um cavalheiro muito gentil que vem buscá-la numa carruagem, já que ela não podia se deter. A carruagem parte conduzindo os dois e a Imortalidade, companheira de viagem que repercute em diversos outros momentos:
Take all away;
The only thing worth larceny
Is left – the immortality.
Tirem tudo;
A única coisa digna de roubo
Permanece – a imortalidade.
aaaaaEmily Dickinson não era religiosa. Foi a única na família a não fazer sua profissão de fé cristã, resistindo corajosa e determinada a uma pressão social capaz de intimidar qualquer um sem fortaleza interior. Mas me parece empobrecedor dar primazia à sua não religiosidade na leitura dos poemas sobre a morte. Meu sentimento é que neles ela se defronta, como Hamlet, com o mistério do
… undiscovered country, from whose bourn
No traveler returns…
sem tentar explicações, religiosas ou não religiosas. Seu olhar contemplativo paira acima dessas considerações. Tanto Hamlet como Emily Dickinson têm a coragem de abraçar uma solidão primária na hora de dirigir o olhar para as coisas da vida que a morte, como ela diz num poema, reescreve em itálico. Por isso, suas palavras de intuições afiadas penetram fundo no tecido dos sentimentos humanos.
After great pain a formal feeling comes –
The nerves sit ceremonious like tombs;
The stiff Heart questions – was it He that bore?
And yesterday – or centuries before?
The feet, mechanical, go round
A wooden way
Of ground, or air, or ought,
Regardless grown,
A quartz contentment, like a stone.
This is the hour of lead
Remembered if outlived,
As freezing persons recollect the snow –
First chill, then stupor, then the letting go.
Após grande dor sobrevém um sentimento formal –
Os nervos se fazem cerimoniosos como tumbas,
O Coração hirto pergunta – foi Ele que sofreu?
E ontem – ou séculos atrás?
Os pés, mecânicos, circulam
Um caminho lenhoso
De terra, ar, ou alguma coisa,
Crescido de qualquer maneira,
Um contentamento de quartzo, como uma pedra.
Esta é a hora de chumbo
Lembrada, se sobrevivida,
Como pessoas enregeladas lembram a neve –
Primeiro frio, depois estupor, depois o deixar estar.
aaaaaNum de seus poemas, ela estabelece com simplicidade seu plano de trabalho.
This is my letter to the world,
That never wrote to me –
The simple News that Nature told,
With tender majesty.
Her message is committed
To Hands I cannot see;
For love of her, sweet countrymen,
Judge tenderly of Me!
Esta é minha carta para o mundo,
Que nunca escreveu para mim –
As novas simples que a Natureza ditou,
Com delicada fidalguia.
Sua mensagem é confiada
A mãos que não posso ver;
Por amor a ela, doces conterrâneos,
Julgai-me com simpatia!
Além dessa carta para o mundo, que nos abre a porta atrás da qual ela se escondeu em vida, escreveu também aos amigos. Não são cartas como as que escrevemos em meio a nosso cotidiano tumultuado, o objetivo não parece ser a pressa em comunicar alguma coisa a alguém. Soam antes como a expressão de um gênio poético desejoso de se mostrar. Dos amigos, escreveu: “My friends are my estate” [“Os meus amigos são os meus bens”]. E o tom excessivo da emoção que gera sua prosa original ajuda a compreender por que manteve as amizades à distância. Na última carta que escreveu às suas primas pouco antes de morrer, foi intensa. Apenas duas palavras: “Called back” [“Chamada de volta”].
E a nós, “doces conterrâneos”, cabe a tarefa árdua e deliciosa de tornar a “chamá-la de volta” [“call her back”] ao longo de nossas vidas. Os que amam poesia sabem ser infindável o garimpo nos versos de Emily Dickinson.
Rosaura Eichenberg
A tradução dos poemas em português é de Rosaura Eichenberg, a não ser quando indicado em contrário.
À exceção do famoso daguerreótipo da poeta, as fotos são de Fernando Eichenberg, quando de sua visita a Amherst em 2011.