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Não Ficção

Algumas Notas

                        para minha mãe
A ferro e ouro
Gravaste em mim o ser.
E o fogo em que me consumo
Retorna em chispas
Às tuas mãos delicadas.
Não há atalhos.
A vida é sempre íntegra.
a                              setembro 1999

como se ela falasse o azul
e de seus olhos de água
descompostos
me interrogasse sobre
o hospício
como se eu buscasse pele nova
e cabelos pretos
e me acomodasse
como o cachorro num canto
longe e perto
dos meus antigos sentimentos
                                     abril 1985

Ríspido sorriso
nervosos gestos
embaixo
arranham
a carne sensível.
Mais um véu
as cicatrizes.
Nenhum outro modo
De viver entre as gentes?
a                          fevereiro 1985

As palavras envoltas em muitos panos
bem lá dentro amedrontadas
do voo futuro
das brigas
o esvoejar estilhaçado dos corvos.
a                                        março 1984

A voz me afundando
passagens renascidas
por aqui certamente
Saio da água arrepiada
para todos os lados
respingos de teus gritos
a paixão lancinante
Ao sol
em silêncio
as palavras à espera
a                         março 1984

Não consigo dormir.
Teu rosto
ora imóvel
se inclina e sorri.
Quem atrás de meus olhos,
a         à espreita?
Só mais uma palavra
e o vento apagará
os resíduos do dia
ambiguamente
a                    março 1985

A luz é muita atrás da porta,
mais forte ainda
do que se estivesse aberta.
Na sombra de dentro,
me transfiguro,
o corpo transparente
de crepúsculos e amanheceres.
Para quem se assusta com milagres,
ainda é riqueza de monta
sonhar com eles.
a                                dezembro 1980

As horas arrastam acontecimentos
que me escapam das mãos.
Sempre volto à página vazia,
seca de emoções,
o olhar de soslaio para a porta,
à espera de que o possível filtre o real.
Na peneira, entre os resíduos,
oculto, o impossível.
a                             março 1981

O retrato do bisavô
é enigma diante do tempo,
a sonhar passados e futuros,
debruçado sobre a escrivaninha.
Mas o fio do que ele diz
ainda é guia suficiente
para quartos amplos,
as cortinas esvoaçando com o vento.
O desconcerto é muito mais completo
diante do rosto vivo do bisneto.
Ali os olhos barram a entrada,
e os gestos iludem o tempo
por meio de ângulos retos.
aaaaaaaaaaaaaadezembro 1980

Ser
do véu
tão somente
a fímbria.
Estar
da árvore
tão somente
à sombra.
Saber
de ti
tão somente
o passo,
ora futuro
e já passado.
aaaaaaadezembro de 2010

 

Rosaura Eichenberg


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