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Não Ficção

Dialética para Principiantes

Na edição#1 de Íbis Literatura e Arte, o filósofo Carlos Roberto Cirne Lima começou a traçar um panorama do pensamento ocidental, frisando a importância de Parmênides e Heráclito, dois filósofos pré-socráticos, para sua formação. A esfera imóvel de Parmênides, representando o Todo e o Uno, o ser uno, único e imutável, e o fluir da água de Heráclito, introduzindo o movimento do ser para o não-ser e do não-ser para o ser, estabelecem a base do pensamento ocidental. Do confronto dos opostos, que se anulam, surge por vezes a possibilidade de conciliação numa síntese que lhes é superior, processo dialético que rege o desenvolvimento da esfera impelida pelo fluir da água. Seguem abaixo mais dois capítulos de Dialética para Principiantes.

Carlos Roberto Velho Cirne Lima, também referido como Carlos Cirne Lima (Porto Alegre, 1931), é um filósofo dialético contemporâneo brasileiro. Cirne Lima recebeu, em 1958, seu doutorado em Filosofia pela Universidade de Innsbruck na Áustria, e tem lecionado Filosofia em Viena como professor visitante, e em Porto Alegre como professor titular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e UNISINOS. Mais informações em seu site pessoal  www.cirnelima.org

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2  O JOGO DOS OPOSTOS

2.1 A Filosofia da Natureza dos Pré-Socráticos

Os filósofos pré-socráticos foram os primeiros, em nossa cultura, a esboçar uma visão racional do mundo, dizendo como a Natureza se origina, como e de que ela se compõe, qual o lugar do homem nela. Antes desses primeiros construtores da racionalidade, havia apenas o Mito. O Mito é uma primeira forma, ainda não crítica, de filosofar, isto é, de pensar o mundo como um todo, de pensar o universo em sua totalidade. O Mito, entre os gregos, assume a figuração da genealogia. No começo, bem no começo, contam os antigos gregos, há apenas caos. Caos é o começo de tudo e o primeiro dos deuses, pai e origem de todas as coisas. Do deus Caos surgem, então, outros deuses numa seqüência genealógica em que um deus sucede a outro por filiação, até chegarmos aos deuses atuais, aos atuais habitantes do Olimpo, um grupo de deuses que é comandado por Zeus.

Também na tradição judaico-cristã o Mito assume a forma básica de genealogia. No começo, diz a Bíblia dos judeus e dos cristãos, havia somente Deus. Deus, antes de criar as coisas, era só ele mesmo, estava sozinho. Então, no primeiro dia, Deus, o Pai de todas as coisas, cria a luz, chamando a luz de dia e as trevas de noite. No segundo dia, Deus faz o firmamento e separa as águas, havendo então águas abaixo do firmamento, os mares e os rios, e águas acima do firmamento, que depois caem como chuva. No terceiro dia, Deus separa a terra e o mar, fazendo assim aparecer o solo, a terra verde, as plantas e as árvores frutíferas. No quarto dia, Deus, o Pai, cria as luzes no firmamento do céu, uma maior, o sol, e outra menor, a lua, dividindo assim o dia da noite. Ele cria também as pequenas luzes do firmamento, que são as estrelas. No quinto dia, Deus, o Criador, engendra os animais que vivem nas águas, os peixes, bem como os que vivem em terra, as bestas, e também os que voam, as aves, cada qual segundo sua espécie. Deus então os abençoa e manda que se multipliquem. No sexto dia, Deus faz o homem à sua imagem e semelhança, para que ele presida os peixes do mar, as aves do céu, as bestas e todos os répteis, e domine assim sobre a terra. Deus, então, pára, olha para as coisas que criou e vê que todas elas são boas. E no sétimo dia, diz o mito bíblico, Deus descansou. A partir deste primeiro começo, toda a Bíblia é uma história genealógica, é uma história dos patriarcas e de seus povos, com ênfase específica no povo dos judeus.

Tanto o mito dos gregos como o mito dos judeus e cristãos contam a história da origem do universo desde seu começo até a seqüência histórica dos tempos. O tempo passado é sintetizado como uma história que tem começo e que conduz até o tempo presente, dando sentido às coisas e, assim, às nossas vidas. Esse apanhado histórico do tempo passado, que sempre contém juízos de valor – o Bem e o Belo –, constitui o pano de fundo em que se insere o tempo presente. Feito assim o travejamento entre passado e presente, também o cotidiano se entranha de valores éticos e estéticos, permitindo que se projete o tempo futuro. Heródoto, de um lado, e o Gênese judaico-cristão, do outro, são uma história do primeiro começo do mundo e da seqüência histórica das gerações. Ambos os mitos têm grande valor poético e funcionam como arquétipos estruturadores de uma determinada visão do mundo. No mito judaico-cristão há uma estrutura que contrapõe, de um lado, uma primeira causa, Deus, que engendra tudo, e, de outro lado, as coisas criadas, as criaturas que, depois, entram em seqüência genealógica. Deus, causa primeira de tudo, é pensado aí também de forma genealógica como o Criador e o Pai de todas as coisas. Por isso Ele é, em última instância, responsável por tudo e escreve direito até por linhas tortas. No mito grego há um deslocamento. A causa, no pensamento grego, não é pensada como uma causa eficiente externa ao processo do universo, mas como uma causa interna, um princípio interno de autodeterminação que molda o universo de dentro para fora. O deus inicial é o caos. O deus Caos, como o nome diz, é totalmente indeterminado; não há nele coisas ou seres com limites e contornos. Mas é de dentro desse caos, é de dentro desse deus Caos que o universo bem ordenado vai surgindo. O caos se organiza, se amolda e, a partir de si mesmo, engendra suas determinações. O caos, ao determinar-se a si mesmo, se dá forma e figura. Surgem aí os outros deuses e, na seqüência destes, também os homens.

Os filósofos pré-socráticos conhecem o Mito e apreciam sua beleza selvagem e sua relevância pedagógica. Mas há que se pensar e argumentar racionalmente. Isso é Filosofia, e é por isso e para isso que existem filósofos. Isso significa que o processo de gênese do universo deve ser analisado e descrito com a exatidão e a frieza objetiva que caracterizam a ciência. É na geometria que os primeiros pensadores se inspiram em seu ânimo de objetividade científica. A Filosofia da Natureza deveria ser tão exata, tão objetiva e tão convincente quanto a geometria. Os pré-socráticos bem que tentaram, mas não chegaram até lá.

Tales de Mileto pensava que a origem e o princípio – a arkhé – de todas as coisas é a água. As coisas se constituem e diferem umas das outras pelo grau de umidade. O deus Oceano é, assim, o Pai de todas as coisas. Anaximandro, também de Mileto, provavelmente discípulo de Tales, diz que o primeiro princípio é um ser totalmente indeterminado, sem limites e sem determinações, o ápeiron, ser este que vai sendo então ulteriormente caracterizado por determinações que o limitam mais e mais, até formar as coisas determinadas que vemos no mundo sensível. Este ser indeterminado inicial, o ápeiron, abarca e circunscreve todas as coisas, ele rege e governa tudo. Anaxímenes de Mileto, discípulo de Anaximandro, aceita a doutrina de seu mestre sobre o ser infinito, que constitui o começo de todas as coisas, mas não o toma de forma tão abstrata, definindo-o como o ar: o ar, segundo ele, é o princípio de todas as coisas. – Observamos aqui, na Filosofia da Natureza dos filósofos jônicos, uma primeira e primitiva forma do jogo dos opostos. O primeiro princípio é contraposto às coisas diferenciadas, que dele se originam e através dele se explicam. Filosofia aqui já é uma explicatio mundi, uma explicação do mundo; o mundo é concebido como um processo que se origina a partir de um só princípio e se desenvolve de acordo com determinadas regras. Não se trata ainda da doutrina da Física contemporânea sobre o Big Bang, mas é o primeiro começo dela.

Pitágoras e os pitagóricos dão um passo adiante e descobrem o número como princípio de todas as coisas. Começa aí, para nunca mais terminar, a matematização do mundo. As relações que os números estabelecem entre si constituem as regras que determinam o processo de explicação do mundo. O universo se desenvolve a partir de um primeiro princípio, segundo regras e proporções numéricas, que determinam o processo e dão forma às coisas. Cada número possui aí um sentido próprio e dá às coisas uma forma determinada. O número 10 é considerado o número perfeito e é visualizado como um triângulo equilátero, no qual cada lado se forma por quatro números; no centro do triângulo assim delineado, há um único ponto, o ponto central, totalizando o número 10. A assim chamada mística dos números dos filósofos pitagóricos, que vai influenciar depois Platão e toda a escola neoplatônica, é o berço de onde vêm as equações da Física contemporânea.

Em paralelo com a doutrina sobre os números, os filósofos pitagóricos desenvolvem ulteriormente o jogo dos opostos. Já os números têm entre si a relação de contrários. O Um se opõe ao Outro, que então é chamado de Dois. Dessa primeira oposição saem os números 1 e 2. Mas é preciso haver síntese, é preciso pensar tanto o 1 como o 2 como um novo conjunto, e aí surge o 3. Tese é o 1, antítese é o 2, a síntese é o 3. É por isso que, segundo os pitagóricos, os números ímpares são mais perfeitos: neles se pensa, além da oposição dos dois pólos contrários, também sua síntese. O triângulo formado de dez pontos, ou o 10 em forma de triângulo, é a própria perfeição. Depois de atingirmos o 10, tudo é apenas uma repetição. Surge assim, para não sair mais de nossa civilização, o sistema decimal de contagem e de cálculo.

A essa mística dos números soma-se, então, a lista dos dez pares de contrários – as substâncias elementares –, que, conforme combinados entre si, dão forma a todas as coisas:

 

1. Limitado Ilimitado
2. Ímpar Par
3. Uno Múltiplo
4. Direita Sinistra
5. Macho Fêmea
6. Quieto Móvel
7. Reto Curvo
8. Luz Trevas
9. Bem Mal
10. Quadrado Retângulo

 

O jogo dos contrários aqui se apresenta como uma tabela básica dos contrários. Segundo os filósofos pitagóricos, quem aprende a jogar com esses dez pares de contrários, que são como que os elementos constitutivos dos seres existentes, pode compor a constituição interna de cada coisa. Eis aqui a primeira forma, ainda muito tosca e primitiva, daquilo que hoje chamamos na Química de Tabela dos Elementos. Os átomos, na Química de hoje, são pensados conforme o modelo atômico de Niels e Rutherford. Um elétron gira em torno de um núcleo atômico, a eletricidade positiva e a negativa entram em equilíbrio e assim temos uma molécula estável, aí temos o hidrogênio. Se, em vez de um elétron, houver dois a girar em órbita, então já se trata do segundo elemento da Tabela dos Elementos, e assim por diante até chegarmos ao elemento 112, que só surge em laboratório. Os químicos hoje usualmente não se dão conta, mas eles são descendentes diretos dos filósofos pitagóricos.

Na mesma linha de seus antecessores, sempre fazendo o jogo dos opostos, Empédocles é o primeiro que expressamente tenta resolver o problema colocado por Parmênides e Zenão de Eléia. Ele se dá conta de que o Não-Ser não existe e não pode nem mesmo ser pensado. Aceita essa premissa inicial do argumento dos Eleatas, mas não aceita a conclusão. Não se pode concluir, afirma ele, que o movimento seja impensável, seja contraditório e, por isso mesmo, seja impossível e, assim, seja inexistente. Pelo contrário, o movimento existe, só que não é a passagem do Ser para o Não-Ser, ou vice-versa, e sim misturas e dissoluções de quatro substâncias fundamentais, que permanecem eternas e indestrutíveis: a água, a terra, o ar e o fogo. Os elementos básicos não são dez pares de opostos e sim dois. As determinações das coisas variam conforme a composição nelas desses quatro elementos. A dosagem de líquido e de sólido, de fogo e de ar, a proporção em que esses elementos se misturam é o que dá forma e figura às coisas.

Anaxágoras de Clazomene também aceita a premissa de que o Não-Ser não pode existir e continua pensando o mundo como um processo de composição e de dissolução de elementos básicos. Em oposição a Empédocles, julga Anaxágoras que só dos quatro elementos não é possível construir a diversidade real das coisas. Postula, para isso, a existência de spermata, de espermas. A própria palavra, que já em grego significa o espermatozóide masculino, mostra a tendência biológica dessa Filosofia. Os espermas seriam numericamente infinitos, de infinita variedade, cada um divisível em si mesmo, sem com isso perder sua força germinadora e determinante. Essa massa inicial de esperma é a matéria-prima do mundo. As determinações das coisas são então produzidas por uma Inteligência Ordenadora, o nous, que mistura os espermas de forma ordenada. A figura do Deus criador aparece aqui, não como uma causa externa, mas como uma causa interna, que, a partir de dentro do caos, faz com que este se organize.

Depois dos espermas de Anaxágoras temos, então, os átomos de Leucipo e de Demócrito, os primeiros atomistas. Segundo eles, que também aceitam o princípio de que o Não-Ser não pode existir, esses primeiros princípios de todas as coisas, todos eles qualitativamente iguais, são “a-tomos”, isto é, são indivisíveis. Tomein significa cortar, átomo é aquilo que não é mais divisível, o que não pode ser cortado por ser um elemento primeiro. Os átomos, indiferenciados uns dos outros, constituem inicialmente uma massa informe. Estes átomos, incontáveis, se encontram inicialmente em queda livre. O acaso – eis aqui, de novo, o deus Caos – faz que haja, nessas linhas verticais de queda livre, pequenos desvios para um lado e para outro. Esses pequenos desvios tornam a concentração de átomos mais ou menos densa. Essas variações de densidade constituem o núcleo da explicação do mundo. Cada coisa é o que é devido à mudança da concentração de átomos. Os átomos e o acaso constituem os dois elementos que explicam a natureza das coisas. Os átomos, vamos reencontrá-los no modelo atômico da Física moderna. Só que eles não estão em queda livre e, sim, em movimentos circulares. Os elétrons giram em órbita em torno de um núcleo. Aumentando o número de elétrons em órbita, aumenta o peso específico dos elementos, do hidrogênio, elemento nº 1, até o elemento nº 112. O acaso, vamos reencontrá-lo na relação de indeterminidade de Heisenberg, na Física, e, principalmente, na mutação pelo acaso da moderna Biologia.


2.2 Os Sofistas

“Sofista” é um termo que significa inicialmente o sábio, sofía significa sabedoria; daí Filosofia significar etimologicamente amor à sabedoria. O termo “sofista” bem como a palavra “sofisma” só mais tarde, depois da polêmica com Platão e Aristóteles, vão adquirir sentido pejorativo. São os sofistas que primeiro transplantam o jogo dos opostos de Heráclito do plano da Filosofia da Natureza para o plano das relações sociais. Os sofistas se ocupam, não tanto da Natureza, e sim da vida do povo nas cidades; eles se interessam pelo demos, o povo, e pela polis. É a época em que, na Grécia, a velha aristocracia entra em lenta, mas inexorável decadência e em que surge, cada vez mais forte, o poder do povo. É o povo que faz comércio, que vai de uma cidade para outra, que rompe com os estreitos limites do mundo antigo e, por intermédio das viagens e dos viajantes, abre novos horizontes e inaugura novos valores e novas virtudes. A polis não é mais a cidade isolada, com sua constituição própria e suas virtudes tradicionais, ela se descobre como uma cidade entre muitas outras. Surge aí uma novidade, surge aí a necessidade intelectual e política de rediscutir e de redefinir o que é a virtude, o que é o Bem, o que é o Mal. Não é mais líquido e certo que uma determinada maneira de agir seja virtuosa apenas por ser oriunda da tradição. A força da inércia, que a tradição possui, não serve mais como fonte única de legitimação das virtudes. Ao surgirem novos horizontes, surgem novas questões sobre o que é Bem e o que é Mal. A virtude tem que ser rediscutida e redefinida. Afinal, o que é virtude? O que é o certo? O que está moralmente errado? Eis as perguntas que os novos tempos colocavam, eis as questões que se impunham. As primeiras respostas foram dadas pelos sofistas. Os sofistas foram, em sua época, importantíssimos pensadores. Protágoras, Górgias e Pródico foram homens de seu tempo que procuraram pensar criticamente os problemas de seu tempo.

A grande característica – positiva – dos sofistas foi a elaboração ulterior do jogo dos opostos como uma maneira metódica de pensar e de agir; surge aí, mais e mais nítida, a Dialética. O jogo dos opostos, transportado para a trama das relações sociais, significa que cada homem é apenas um pólo da oposição. Para entender um pólo, para saber o que um pólo em realidade é e o que ele significa, é preciso sempre pensar esse primeiro pólo em sua relação de oposição ao segundo pólo. Pois, em se tratando do jogo de opostos, cada pólo só pode ser entendido, em si, se e enquanto for pensado em relação a seu pólo oposto. Cada homem, em suas relações sociais, é apenas um pólo, uma parte. Para entender esse primeiro homem, é preciso vê-lo em sua relação de oposição para com o outro homem, que é o seu contrário. A fílesis só se entende bem se a pensamos em relação à antifílesis; mais ainda, ambos os pólos contrários só podem ser entendidos correta e plenamente quando conciliados na unidade maior e mais alta, na filía, na qual ambos estão superados e guardados. As relações humanas são, assim, analisadas à luz do jogo dos opostos.

Isso é válido especialmente em dois campos das relações humanas: no Direito e na Política. No Direito, o jogo dos opostos se encarna como uma das mais antigas e mais importantes regras de toda e qualquer justiça: Seja ouvida sempre também a outra parte, Audiatur et altera pars. O homem que procura justiça diante de um tribunal é sempre uma parte. Ele é apenas uma única parte de um todo maior. É preciso sempre, para que possa ser feita justiça, ouvir a outra parte. Esta outra parte, o outro pólo no jogo dos opostos, nem sempre precisa ter razão. Pode ser que só a primeira parte tenha razão, pode ser que só a outra parte tenha razão, pode ser que ambas as partes tenham alguma razão, ou seja, que ambas estejam parcialmente certas e parcialmente erradas. Em todo caso, sempre, para que haja justiça, é preciso ouvir também a outra parte. A primeira parte, o primeiro pólo da oposição, é sempre apenas “parte” no sentido literal, um pedaço de um todo maior. A justiça exige que a razão de cada parte seja medida e avaliada no contexto maior da posição sintética, isto é, daquele todo maior e mais nobre dentro do qual cada parte é apenas um pedaço, um elemento constitutivo de uma unidade maior. Exatamente isso e somente isso é justiça. Justiça, pois, o que chamamos de Direito, é o exercício constante e sistemático do jogo dos opostos. Também o Direito Penal é; neste uma das partes é sempre o povo. Até hoje os processos penais nos países de tradição anglo-saxã contêm a menção do “povo versus A. Smith” (“the people against A. Smith”). É por isso que até hoje os juristas falam da necessidade do “contraditório”. O termo “contraditório” significa aqui o contexto dialético que nos vem desde a Antigüidade, o preceito de ouvir a outra parte, pois justiça é sempre o processo de formação da síntese, jamais a tese ou a antítese isoladas, uma sem a outra. A parte, no sistema de Direito, é sempre parte, um pedaço que exige a sua contraparte, o seu oposto, para que se estabeleça justiça. Até hoje. Os juristas hoje muitas vezes não se dão conta disso: eles são dialéticos, todos nós somos dialéticos.

Tão importante quanto no Direito é a função do jogo dos opostos na Política, especialmente nas assembléias de cidadãos, que se constituem em democracia. Antes que surja a decisão por consenso político, há discussão e debate. Nestes costuma haver uma polarização, às vezes uma ruptura. A opinião e a vontade de um grupo de cidadãos divergem da opinião e da vontade de outro grupo de cidadãos. Formam-se, assim, dois grupos com opiniões e vontades diversas. A unidade se quebra em duas partes, e surgem aí os partidos políticos. O partido político só se entende e só se justifica se e enquanto contraposto a seu partido oposto. Ambos os grupos precisam debater e dialogar, pois a identidade de cada um deles é determinada pela identidade do outro. Assim se faz Política. Pode ser que um grupo tenha cem por cento de razão e consiga convencer o outro grupo disso; pode também ser que cada grupo tenha razão apenas parcialmente e que, havendo concessões de parte a parte, se forme a vontade geral. A vontade geral é aí aquela unidade mais alta e mais nobre, a posição sintética, na qual e somente na qual os partidos, que são apenas pedaços, adquirem sentido e têm justificação. Por outro lado, vê-se, de imediato, que Política só existe quando há dois partidos. Em Política, partido único é um mostrengo; isso vale tanto para os regimes despóticos dos antigos gregos como para os totalitarismos do século XX. Mais uma vez temos aqui o velho jogo dos opostos. Os sofistas não foram os inventores do Direito e da Política, por certo, mas foram os primeiros filósofos, em nossa cultura, que pensaram teoricamente o jogo dos opostos como elemento constitutivo e essencial das relações sociais. Esse mérito tem que lhes ser dado. Nisso eles acertaram.

Fora disso, cometeram alguns erros graves e fizeram bobagens que a História até hoje não lhes perdoa. Até hoje os sofistas têm má fama, e a palavra “sofisma” tem conotação altamente negativa. Isso porque cometeram um grande erro teórico, que hoje podemos tematizar com precisão: em vez de dizer que tanto a tese como a antítese são falsas e que a síntese e só a síntese é a verdade inteira, os sofistas algumas vezes inverteram os sinais e disseram que tanto tese como antítese são, por igual, verdadeiras.

Esquematizemos. A dialética verdadeira e correta afirma que cada parte é apenas parte, ou seja, que tanto tese como antítese são falsas porque parciais. Os sofistas às vezes dizem: tanto tese quanto antítese são, por igual, verdadeiras. As conseqüências desse erro lógico são incríveis e politicamente pesadíssimas. Pois, se tanto tese como antítese são verdadeiras, pode-se defender tanto uma como outra. Os sofistas, agora no mau sentido da palavra, passaram então a defender tanto uma parte como outra, como se ambas tivessem razão. Justiça então deixa de existir. O senso do direito e do correto vai para o ar, e instala-se a mentalidade sofística de que qualquer posição é boa, desde que se possua desenvoltura verbal para argumentar. Os sofistas, no mau sentido, defendem qualquer pessoa, qualquer parte, qualquer partido como se fosse, ele sozinho, a verdade total. E agora ainda pior: os sofistas o fazem porque são pagos para isso, porque exigem e recebem pagamento. O pagamento em dinheiro, exigido e aceito para que um partido, uma parte, seja apresentado como se fosse o todo, eis o grande erro e a grande culpa dos sofistas. Sócrates, Platão, Aristóteles, ninguém jamais os perdoou. Com razão. Depois de resgatar e reinventar a dialética, dela se afastam. Esqueceram que parte é sempre e somente parte, parte essa que só com a contraparte correspondente forma um todo maior. O jogo dos opostos, quando desvirtuado e invertido, de ótimo que era transforma-se em péssimo.


2.3 Sócrates, o último dos sofistas

Sócrates é, muitas vezes, chamado de último dos sofistas. Está certo, se entendemos o termo “sofista” em sua conotação positiva. Sócrates foi o grande pensador da Dialética, o grande defensor, nos assuntos morais e políticos, do jogo de opostos que se completam e se unem para constituir um todo maior. Sócrates é a grande voz que, em Atenas, se levanta para criticar o desvirtuamento que os sofistas fizeram com a Dialética. Não é possível defender tanto a tese como também a antítese, como se ambas fossem verdadeiras. Não é isso, é exatamente o contrário. Ambas as posições são falsas. Verdadeira é apenas a síntese que de ambas se engendra. A virtude, pois, não consiste em defender uma tese – ou uma antítese –, como se esta fosse a verdade toda inteira, e sim, pelo contrário, em desmascarar tanto tese como antítese como sendo erradas, isto é – o que é o mesmo –, como sendo apenas elementos parciais de um todo maior. Só o todo maior, só a síntese é que é verdadeira. Os sofistas argumentavam, às vezes, a favor da tese; às vezes, a favor da antítese. Em muitos casos concretos, na vida política, o mesmo sofista, pago por um grupo, argumentava primeiro a favor da verdade da tese, e depois, pago pelo outro grupo, a favor da verdade da antítese. E, em seguida, com o dinheiro embolsado, ia embora, deixando os cidadãos entregues à perplexidade e à contradição.

É contra isso que se levanta a voz de Sócrates. O jogo dos opostos tem que ser realizado corretamente. A parte é somente parte, ela não é o todo. Ou seja, é preciso argumentar primeiro mostrando a falsidade, isto é, a parcialidade da tese, depois mostrando a falsidade da antítese, que também é parcial, para que então possa surgir, na conciliação de ambas, a verdade do todo maior e mais alto.

Sócrates é um pensador da Moral e da Política. Como os sofistas, ele se ocupa do jogo dos opostos nas relações sociais, mas, em oposição aos sofistas, ele restabelece a forma e a estrutura correta do jogo de opostos. Não é verdade que tanto tese como antítese sejam verdadeiras; o certo é que geralmente ambas são parciais e por isso falsas. É por isso que se deve sempre ouvir também a outra parte. Só assim se descobre e se engendra a verdade. Saber ouvir a outra parte significa, na vida prática, estabelecer um diálogo, diálogo de pessoa com pessoa. Isso, diz Sócrates, é fazer Política numa cidade de cidadãos racionais e livres. Mais ainda, só assim se adquire conhecimento verdadeiro e se descobre qual das antigas virtudes não é apenas tradição boba e sim atitude moralmente correta, ou seja, virtude moral. Filosofar para Sócrates é saber entabular diálogos.

Para Sócrates, a virtude, sempre fruto do jogo entre tese e antítese, se encontra apenas através do diálogo real que se faz nas esquinas e na praça pública. Sócrates ouve, Sócrates pergunta, Sócrates responde. Sócrates perscruta a voz interior da consciência, que ele, personificando-a, chama de daimon, o bom demônio, o bom espírito. Sócrates não escreve. Não temos dele nem um único escrito. Pois, se o importante é dialogar concretamente, diálogo de pessoa com pessoa, para que escrever? Quando Platão, discípulo e seguidor de Sócrates, ensina e escreve na Academia, continua valendo a regra de que a forma literária de tratar de assuntos filosóficos, mesmo quando se escreve, é sempre o diálogo. Daí os Diálogos de Platão.

Sócrates, o homem do diálogo ético e político, foi, como sabemos, condenado à morte por seus concidadãos. Ele teria, com seus diálogos, cometido grave crime contra os deuses da cidade de Atenas e atentado contra os bons costumes, pervertendo a juventude. O grande pensador do “Sei que não sei nada”, o grande mestre do diálogo na Ética e na Política, morre dialogando. O diálogo “A Apologia de Sócrates”, em que Platão relata os acontecimentos e as idéias que cercam a condenação e a morte de Sócrates, constitui-se numa das obras-primas de nossa civilização.

 

3  O MITO DA CAVERNA


3.1 Platão e o jogo dos opostos

No jogo dos opostos, mesmo quando o esquema lógico é transposto para o plano das relações sociais, podem acontecer três coisas. Primeiro, pode ser que o primeiro pólo seja verdadeiro; aí o segundo pólo é falso e tem que ser abandonado. Segundo, pode ser que o segundo pólo seja o verdadeiro, e aí é o primeiro que tem que ser abandonado. Mas pode ser também que ambos os pólos sejam falsos, e aí há que se descobrir, de parte a parte, as verdades apenas parciais contidas nos pólos opostos, para, unindo-as e conciliando-as, engendrar a unidade verdadeira de uma síntese mais alta. – Não ocorre nunca, pois é logicamente impossível que ambos os pólos sejam verdadeiros, que tanto a tese como a antítese sejam verdadeiras. Este é o erro lógico em que os sofistas incorreram, este o fundamento lógico-sistemático dos erros morais e políticos que cometeram.

O jogo dos opostos em Platão é levado à perfeição. Perfeito é aquilo que é feito até o fim, aquilo que fica completo e acabado, em que nada falta e nada está sobrando. Perfeição é aquilo para o que Platão nos aponta, quando faz Filosofia. Nunca antes dele, nunca depois, o homem apontou para tão alto. – Como assim? Não é exatamente o contrário? Pois todo o mundo sabe que Platão é um filósofo de aporías, isto é, de becos sem saída. Platão, em seus diálogos, esboça a tese, traceja a antítese, mas síntese que seja boa ele quase nunca elabora. Como então chamar Platão de pensador sintético, que leva o jogo dos opostos à perfeição, se ele nunca, ou quase nunca, aponta para a síntese? Sem síntese a Dialética se desarticula, e tese e antítese ficam uma contra a outra, ambas negativas e cientes de sua falsidade, sem que jamais se chegue a uma conclusão. Isso já sabemos e já vimos através do erro cometido pelos sofistas. E não é verdade que os diálogos de Platão são quase sempre aporéticos, sem síntese final? É pura verdade.

Há em Platão duas doutrinas que se complementam e se completam. A doutrina exotérica e a doutrina esotérica. A doutrina exotérica – o prefixo “ex” está a indicar – destina-se ao uso das pessoas de fora, ela é feita e explicada para os principiantes e para os que, vindos de fora, sem os pressupostos necessários, ainda não estão em condições de entender o núcleo duro da doutrina. A doutrina exotérica é mais fácil, é mais didática, é mais introdutória. Nela o jogo dos opostos realmente fica quase sempre em aberto, sem uma síntese final. Platão aí levanta uma tese; ele a discute, debate, examina por vários lados e, finalmente, a refuta. A tese é sempre demonstrada como falsa. Então é levantada a antítese, que também é examinada e debatida, sendo, no fim, invariavelmente refutada. Ficamos, então, com uma tese falsa e uma antítese igualmente falsa, ambas imprestáveis, nas mãos. Isso é a aporía, isso é o beco sem saída.

Os diálogos de Platão, quase todos – excetuam-se alguns diálogos da velhice – são aporéticos, isto é, desembocam num beco sem saída. A Dialética, o jogo dos opostos, aí não é levada a termo. Falta sempre a síntese, como, aliás, entre os contemporâneos da Escola de Frankfurt: a Dialética aí é uma dialética negativa, uma dialética sem síntese. Mas isso, diremos, não é boa dialética. Certo. E Platão, discípulo do filósofo heraclitiano Crátilo, bem como de Sócrates, sabia muito bem disso. Como sabia também que a Dialética não se faz por um passe de mágica, num instante, com um piscar de olhos, e sim num longo, sério, trabalhoso, muitas vezes doloroso processo de superação das contradições existentes entre tese e antítese. Dialética é educação e, como esta, se realiza num processo lento de aprendizado e de maturação. A criança não se faz homem num dia, a árvore não cresce numa semana, assim também a Dialética requer tempo, esforço e trabalho. Os opostos têm que ser trabalhados seriamente; se não o forem, a síntese será chocha e vazia. É por isso que, para os principiantes e para os de fora, a Dialética não é exposta e explicada de imediato em sua completude, ela aparece sob a forma de doutrina exotérica. Na doutrina exotérica, os contrários são levantados, em toda a sua seriedade, um refutando o seu oposto, mas, no final, Platão deixa seus ouvintes e seus leitores em suspenso. Realmente não há aí síntese expressamente formulada, dita ou escrita, é preciso que o próprio leitor, sozinho, procure acertar as peças do quebra-cabeça, é preciso que ele mesmo tente e experimente juntar as peças, assumindo o risco intelectual da tarefa. É preciso que essa massa meio informe de oposições contrárias sem síntese, de opostos sem conciliação, fique um bom tempo fermentando para que, então, daí surjam as grandes idéias sintéticas. Essas grandes sínteses, quando brotam e emergem, constituem então a doutrina esotérica, a doutrina que os iniciados discutem entre eles, a doutrina que os principiantes não conseguem captar nem entender. Pois as sínteses finais são tão simples e tão luminosas, que quem as busca diretamente, sem antes passar pelo longo processo de maturação dos pólos opostos, fica ofuscado e não enxerga mais nada. É como o olho a olhar diretamente para o sol. O iniciante, se olhar direto para as grandes sínteses da doutrina esotérica, fica tão ofuscado, que pensa não estar vendo absolutamente nada. Por isso é que o trabalho penoso de jogar com os contrários tem que ser realizado previamente.

É por isso que a doutrina de Platão, para o iniciante, parece ser um sistema de Filosofia dualista, um jogo de opostos em que os opostos nunca se unificam. Quem só ouve e só estuda a doutrina exotérica, sem jamais chegar à síntese final da doutrina esotérica, fica pensando que Platão considera o mundo das idéias e o mundo das coisas como duas esferas de ser existentes uma ao lado da outra, uma fora da outra, uma em oposição à outra. O mundo das coisas e o mundo das idéias são, aí, dois pólos opostos, um contra o outro, sem que entre ambos haja – à primeira vista – verdadeira conciliação. Há em Platão perfeita conciliação, só que ela só vai aparecer, com clareza e plenitude, na doutrina esotérica, na assim chamada Doutrina Não-Escrita. A doutrina exotérica é, assim, uma Filosofia estritamente dualista, em que os pólos opostos nunca se conciliam plenamente. Mundo material, por um lado, e mundo espiritual das idéias, por outro, se opõem como pólos contrários e excludentes. Matéria e espírito aí jamais se unificam na devida harmonia. O espírito se opõe à matéria, as idéias se opõem às coisas. O dualismo duro, os opostos sem conciliação sintética, a Dialética sem síntese, eis o eixo intelectual da doutrina exotérica.

Muitos autores, quando falam de Platão, só estudam e só mencionam essa doutrina exotérica. Esta é apenas uma primeira aproximação na escalada que leva ao saber filosófico, mas muitas vezes é tomada – erroneamente – como sendo a Filosofia de Platão. Platão é violentamente desvirtuado. Ao invés de ser compreendido como o pensador da Grande Síntese, ele é pensado como um novo sofista que pega os pólos opostos sem os unificar e sem os conciliar, deixando-os como dois princípios opostos, conflitantes, irredutíveis. Isso desde a Antigüidade se chama trabalhar por dicotomias. Cortar em dois, construir os pólos opostos, atiçar um contra o outro, deixar um destruir o outro, ou melhor, deixar que ambos os pólos girem um em torno do outro, como dois guerreiros em luta mortal, eis a Dialética sem síntese. O Platão de verdade é um pensador da Grande Síntese, da Dialética em seu sentido pleno de unificação e de conciliação dos opostos. Mas o Platão que geralmente se estuda nos livros e – muito grave isso – o Platão de parte grande da tradição acadêmica é apenas o Platão da doutrina exotérica, o Platão dos opostos sem síntese, o Platão dualista. E isso é, então, um desastre intelectual, pois vai gerar dicotomias em que os pólos opostos jamais são reunificados. Pólos opostos, numa Dialética plena e levada à sua devida síntese, são ótimos, pois são momentos que apontam e conduzem para mais adiante. Numa Dialética negativa, sem síntese, os pólos dicotômicos tornam-se problemas sem solução.

Lamentavelmente, em nossa tradição filosófica, isso ocorreu muitas vezes. O mundo das coisas e o mundo das idéias, matéria e espírito, a grande oposição de dois pólos que deveriam ser unificados e conciliados, transformam-se num problema dicotômico sem solução, que passam pelos filósofos posteriores e entram em nossa cultura e em nossa educação, deixando um rastro de erros teóricos e de graves deformações éticas. Pensemos na idéia errada – atribuída a Platão – que entrou em nossa tradição cristã de que o espírito é bom, a carne, porém, e principalmente o sexo, um mal moral. A doutrina agostiniana, que depois é assimilada pela esmagadora maioria dos pensadores cristãos e que vem até nosso século, diz que a concupiscência, o desejo sexual, o que hoje chamaríamos de tesão, é um mal em si, que nisso consiste o próprio pecado original. E, sendo pecado, é sempre algo moralmente negativo, algo que é uma culpa, algo de que devemos nos envergonhar. Eis aqui, num exemplo bem concreto, como um mal-entendido aparentemente pequeno no começo leva a erros de grande gravidade no fim. Quando a Doutrina Exotérica é tomada como se fosse a Doutrina Esotérica, quando a Dialética negativa é tomada como se fosse a legítima Dialética, a Dialética da Grande Síntese, aí ocorrem desastres intelectuais e culturais de grandes dimensões. O desejo sexual, então, vira pecado, o corpo é rebaixado, o homem perde a unidade sintética, que é de corpo e alma, para transformar-se num ser completamente ridículo. O homem nessa dialética sem síntese vira uma caricatura, vira um anjo a cavalgar um porco. É nisso que dá quando não se faz a síntese devida.

É por isso que devemos estudar com atenção esse primeiro binômio da filosofia platônica, o mundo das idéias e o mundo das coisas, examinando-o cuidadosamente pelos dois lados. Primeiro como dois pólos opostos que aparentemente se excluem, depois como dois elementos que se unificam, se fundem e assim se transformam numa unidade mais nobre e mais alta. Nós homens não somos anjos montados em porcos nem centauros, e sim homens, uma unidade sintética, dentro da qual os pólos primeiramente opostos, corpo e alma, desaparecem enquanto opostos e se transformam em uma nova, perfeita e acabada realidade.


3.2 O mundo das ideias e o mundo das coisas

Os sofistas argumentavam a favor dos dois pólos, defendendo indistintamente tanto um como o outro, muitas vezes argumentando a favor dos dois: argumentari in utramque partem. Sócrates, o último dos sofistas, nos ensina que assim não dá: dois pólos contrários não podem ser simultaneamente verdadeiros. Sócrates nos ensina a perguntar e a encontrar as respostas, a descobrir a síntese entre tese e antítese. Essa síntese não consiste na força do mais forte, como dizia o sofista Górgias, e sim na virtude. O que é virtude? Sócrates dizia que não sabia e mandava dialogar.

Este ainda é o tema central e o grande problema de Platão. Afinal, o que é virtude? Se não é a força bruta do pólo mais forte que decide tudo, então em que consiste a virtude? A resposta a esta questão é o começo de toda a filosofia de Platão: virtude é aquilo que deve ser. O mundo que de fato existe, como ele está aí frente a nossos olhos, nem sempre coincide com aquilo que deve ser. O Dever-Ser é o ideal a ser atingido, o Dever-Ser é a idéia. Nasce assim a idéia platônica. A condenação – injusta – e a morte de Sócrates mostraram com clareza a Platão que o Mundo-Que-De-Fato-É nem sempre coincide com o Mundo-Ideal-Que-Deve-Ser.

Os sofistas pensavam que a virtude, o Dever-Ser, era algo flutuante, algo relativo, algo que variava de situação para situação, e que não havia princípios válidos para todos os casos. Platão não aceita um tal relativismo. Há princípios éticos que valem sempre e para todos, e estes princípios são universalmente válidos porque eles, antes mesmo de serem adotados pelos homens em suas comunidades políticas, são princípios gerais da ordem do mundo. O universo é um cosmos; kósmos significa aquilo que é ordenado. Platão elabora uma filosofia prática, a Ética e a Política, baseando-se em princípios que o homem tem que adotar porque são princípios de ordem de todo o universo cósmico. A Ética de Platão se baseia numa Ontologia, numa doutrina sobre o ser em geral, numa doutrina sobre a ordem do Universo.

Como podemos saber que uma determinada regra não é apenas uma invenção de algum governante tirânico ou, não tão mau assim, uma mera convenção construída pelos homens? Convenções, mesmo quando boas e úteis, são contingentes, isto é, podem ser assim, mas podem ser diferentes. Como saber que uma determinada regra ou determinado princípio é, mais do que uma mera convenção, uma regra inquestionável, uma regra que não pode ser negada, que não pode ser mudada ou transformada, que é assim e tem que ser assim, agora e para todo o sempre, em todos os lugares do mundo?

É possível encontrar e trazer à luz tais princípios fundamentais da ordem do Universo? Platão sorri e mostra que sim. No Diálogo Menon, um escravo analfabeto é trazido à presença de Sócrates, que discutia com amigos sobre a existência ou não-existência de princípios gerais do ser do Universo e de todo conhecer. Alguns duvidavam de que se pudesse descobrir e elaborar tais princípios. Afinal, onde estariam inscritos tais princípios? Onde, em que livro, em que monumento estariam eles escritos? Sócrates, sempre o personagem central de Platão, responde: Os primeiros princípios estão inscritos no âmago do ser e por isso também no âmago de nossa alma. Querem ver? Esse escravo nunca estudou nada, não sabe ler, não sabe escrever e nunca estudou Geometria. Se ele nunca estudou Geometria, não conhece o teorema de Pitágoras. Pois bem, vou dialogar com ele, vou fazer perguntas – só perguntas – e deixar que responda. E Sócrates começa, então, a perguntar, docemente, desenhando na areia do chão e formando as figuras. “E se traço esta linha aqui, o que ocorre? E se ali traço mais esta outra?” E assim, passo a passo, Sócrates sempre só perguntando, o escravo vai avançando, vai descobrindo os nexos e consegue formular o grande teorema da Geometria. Como é que o escravo conseguiu? Como é que ele sabe? Platão responde: Ele já sabia, desde sempre ele já sabia, ele precisava somente recordar o que já sabia e tinha apenas esquecido. Esse conhecimento estava inato, estava dentro da alma do escravo. E estava lá dentro porque é um princípio que está dentro de cada ser, de cada coisa, porque é um princípio da própria ordem do Universo. Esses princípios de ordem do Universo, ínsitos em cada coisa, são universalmente válidos e estão sempre presentes. Eles organizam o Universo de dentro para fora, são eles que fazem com que as coisas do mundo não sejam uma massa desordenada e caótica de eventos, e sim um Universo cósmico, ou seja, bem ordenado.

A Idéia, diz Platão, que pela ontologia da participação existe no âmago de cada coisa, é o princípio de ordem que a determina e que comanda seu desenvolvimento. No ovo de um pato há um tal princípio de ordem, que faz com que daquele ovo se desenvolvam sempre patos. Do ovo de galinha sai sempre galinha. E assim com todas as coisas. Esse princípio formador de cada coisa Platão chama de “forma”. A Forma determina o que a coisa é e como ela vai desenvolver-se.

Os muitos patos que existem têm, todos eles, a mesma forma de ser pato. As muitas galinhas possuem todas a forma galinácea. Uma única forma, um único desenho básico que é realizado em diversos indivíduos. A Forma é como que o desenho feito pelo projetista; uma coisa é o projeto de um motor, o desenho básico, outra coisa são os milhares de motores individuais que são feitos de acordo com o projeto. Temos aí, de um lado, a pluralidade dos indivíduos que existem no mundo das coisas e, de outro lado, a unidade da Forma.

Cada coisa tem sua forma determinada e específica. Pato é pato, galinha é galinha e homem é homem. Surge então a pergunta: onde estão as Formas? Onde existem as Formas? Onde podemos vê-las? Se as Formas são tão importantes, se elas são as forças formadoras do mundo, onde encontrá-las? Como conhecê-las? Como saber que o que estou conhecendo é uma verdadeira Forma e não uma ilusão? Platão responde aqui, na doutrina exotérica para principiantes, com um Mito.


3.3 O Mito da Estrela

As Formas existem desde sempre, pois são elas as forças ordenadoras da ordem do cosmos. Antes do cosmos existir, portanto, elas já existem e valem. É por isso também que possuem validez universal. As coisas ordenadas do universo cósmico vêm depois. Primeiro, antes de existirem as coisas, antes que as coisas de nosso mundo tenham começado a existir, já existiam as Formas. Este nosso cosmos não é regido e determinado por elas? Logo, elas existem já antes. Elas formam um mundo inteiro que consiste só de formas. Este mundo Platão chama de Mundo das Idéias e o localiza numa estrela fictícia. Nesse Mundo das Idéias, que existe desde sempre na Estrela, separado do Mundo das Coisas, existem também as almas individuais de todos os homens que vão nascer. As almas vêem as Idéias face a face e sabem, portanto, as determinações específicas de cada coisa, elas sabem tudo de tudo. Quando aqui no Mundo das Coisas nasce o homem, a alma dele, que já existia desde sempre na Estrela, no Mundo das Idéias, é jogada no cárcere do corpo. Esse violento deslocamento faz que a alma se esqueça de tudo ou de quase tudo que ela havia visto na Estrela. Mas quando o homem se desenvolve e cresce, ao encontrar-se com as coisas do mundo, ao esbarrar nelas, ele se lembra da Idéia que viu na Estrela durante a preexistência de sua alma e, relembrando, conhece. Conhecer é sempre uma relembrança, uma anámnesis, conhecer é lembrar-se da Idéia Universal de uma coisa e aí, diante da coisa individual, dizer: Aha, isto é um homem, isto está realizando a forma de homem, aquilo é um pato, naquilo está se concretizando a forma do pato. Isso explica por que as idéias são sempre universais, embora as coisas sejam sempre individuais. As idéias são de outro mundo. E nossa linguagem, coisa estranhíssima, diz o individual sempre de maneira universal. Porque os nomes, na linguagem, representam formas e as formas são sempre universais. Embora estejamos vivendo neste mundo de coisas individuais, nossa linguagem, o logos, possui caráter de idéia universal.

Temos aí uma belíssima explicação do mundo. As coisas do mundo são aquilo que são, são determinadas assim e não de outra maneira, porque elas participam da Forma original que existe na Estrela, no Mundo das Idéias. Esta é a Ontologia de Participação. Como o motor individual participa do projeto desenhado de motor ideal, assim as coisas participam de uma determinada idéia e por isso são assim como são. Em cima dessa Ontologia, isto é, dessa Doutrina do Ser, Platão fundamenta, então, sua Teoria do Conhecimento. Conhecer é o ato pelo qual a alma agora relembra aquilo que já tinha visto antes, durante a preexistência na Estrela, no Mundo das Idéias. O conhecimento é correto, e a ciência é universalmente válida, diz Platão, porque se apóia em Idéias que são as Formas do Universo.

Mas como é que eu sei, quando esbarro numa coisa, que estou de fato relembrando a Forma dela? Não existem erros? Ilusões? É claro que existem. É por isso que o filósofo tem que dialogar, discutir, questionar e examinar cada questão, para ter certeza de que encontrou exatamente a Idéia da coisa. Não menos e também não mais. E Platão aí, sempre no Mito para Principiantes, em sua Doutrina Exotérica, pergunta: Existe uma Idéia para cada coisa? É certo que exista a Idéia de Homem, diz ele no Diálogo O Sofista, e também a Idéia do Bem, da Justiça. Mas será que precisa haver uma Idéia do Lodo? Lodo, uma coisa tão simples e tão baixa, precisa ter uma idéia que lhe seja própria? Platão deixa a pergunta no ar. Afinal, tais perguntas não podem ser respondidas no âmbito do Mito da Estrela. Tais questões só podem ser trabalhadas satisfatoriamente na Doutrina Esotérica com aqueles que já sabem mais do que apenas os primeiros princípios.


3.4 O Mito da Caverna

Encontramos no sétimo Livro da República o mais importante e o mais conhecido Mito de Platão: o Mito da Caverna. Em nenhuma outra imagem a doutrina de Platão é tão bem representada.

Imaginemos homens que moram em uma caverna. Desde o nascimento eles estão presos lá dentro, acorrentados pelos pés e pelo pescoço, de maneira que os olhos estão sempre voltados para o fundo da caverna. Eles só conseguem enxergar essa parede no fundo. Atrás dos prisioneiros amarrados, às costas deles, na entrada da caverna, há um muro da altura aproximada de um homem. Atrás desse muro andam homens, para lá e para cá, carregando sobre os ombros figuras que se erguem acima do muro. Mais atrás ainda, bem na entrada da caverna, há uma grande fogueira. A fogueira dá luz, a luz ilumina a cena e projeta as sombras das figuras por sobre o muro até a parede no fim da caverna. Os prisioneiros vêem apenas as sombras projetadas pelas figuras. Ouvem também ecos de vozes – dos homens que carregam as figuras atrás do muro – e pensam que esses ecos são as vozes das próprias figuras. O que os prisioneiros vêem é apenas esse jogo de sombras e de ecos. Eles estão acorrentados ali desde a nascença e pensam que o mundo é isso e tão-somente isso. O mundo é isso mesmo, dizem, e apenas isso.

Imaginemos agora que um dos prisioneiros consiga libertar-se de suas amarras. Voltando-se para a entrada, ele de imediato vê o muro e percebe que as sombras projetadas no fundo da caverna são apenas isso, a saber, sombras. Percebe também que as figuras são apenas figuras. Ele pula o muro e sai; aí vê os homens que carregam as figuras, ouve suas vozes, vê a fogueira, vê a entrada da caverna e, lá fora, vê a luz. Quando sai da caverna e tenta olhar para o sol, fica ofuscado. Ele desce o olhar, baixa a cabeça, recompõe-se. Quando esse homem volta à caverna, para libertar seus companheiros, ele sabe. Sabe que as sombras são apenas sombras. Ele sabe que são, não apenas sombras, mas sombras de meros simulacros. A realidade realmente real é a realidade da luz e do sol, a realidade das coisas mesmas à luz do sol. Todo o resto são sombras e ilusões. O homem, quando se liberta das amarras que o mantêm preso, se descobre livre e vidente, ele vê então a realidade que é realmente real, a luminosa realidade das Idéias. Ele nunca mais confundirá a realidade com a sombra do simulacro da realidade. Quem viu a luz sabe.

Aí temos Platão de corpo inteiro. Aí temos toda uma Ontologia da Participação, uma Teoria do Conhecimento, uma Ética, uma Pedagogia, uma Política. Mas aí temos principalmente, e sempre de novo, o Mito que coloca os dois pólos opostos em sua contraposição, um fortemente contra o outro, sem nos conduzir a uma posição verdadeiramente sintética. Afinal, onde está a conciliação unificadora entre o Mundo das Idéias e o Mundo das Coisas? Entre Forma universal e Coisa individual? Entre Forma necessária e Coisa contingente? Platão não nos dá resposta nos Mitos da Doutrina Esotérica. Falta sempre a síntese. Esta só será apresentada e discutida, quando os principiantes tiverem amadurecido intelectualmente, quando os principiantes deixarem de ser principiantes e transformarem-se em iniciados. Para os iniciados, para estes sim, há resposta. Platão pensava que essa doutrina, por ser tão importante e tão difícil, não podia ser escrita. Daí existir o diálogo – jamais escrito pelo próprio Platão, mas cuja existência está muito bem documentada – Sobre o bem, em que é exposta a Doutrina Esotérica.

Antes, porém, de voltarmo-nos para a Doutrina Não-Escrita de Platão, vejamos, para poder fazer o devido contraste, a concepção do mundo de Aristóteles. Aristóteles foi por muitos anos discípulo de Platão, e, no entanto, ninguém criticou Platão tão duramente, ninguém elaborou um projeto filosófico tão diferente, ninguém é tão pouco platônico como ele. Depois de tematizar a Filosofia de Aristóteles, voltaremos, então, à Doutrina Esotérica de Platão, à doutrina para os iniciados.

 

 


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