Em 1979, ao fim de uma longa viagem, eu estava numa Nova York gelada de fins de novembro e, para me despedir da cidade e da vida errante daqueles meses, resolvi subir até o mirante do edifício do World Trade Center. O dia chuvoso, envolto em neblinas e ventos frios, não me deixou ver o rio com sua cidade por baixo das alturas em que me encontrava. No dia seguinte, no desconforto do aeroporto e das horas entrecortadas do retorno, escrevi uma nota apressada sobre o passeio do dia anterior.
Décadas se passaram, e um dia por acaso descobri a nota entre papéis misturados. Um calafrio correu pelo meu corpo, quando constatei que meu ponto de observação na cidade de Nova York não existe mais. Caiu pela loucura humana que, passado o primeiro solavanco, ainda foi capaz de entabular arengas de contar e comparar os números das vítimas nos dois lados do campo de batalha. Li a nota, enxuguei um pouco as frases tortas, e guardei num canto em silêncio, sem arengas.
Ainda mais alguns anos, e me vi escrevendo uma espécie de cartão de Natal para uma amiga americana de longa data que ia passar os feriados de fim de ano em Nova York com a família da irmã. Não sei bem o que me levou a enviar junto a nota de 1979. Talvez apenas um abraço solidário recíproco em meio ao perigo dos tempos. Foi uma alegria muito grande quando ela me respondeu com um presente de Natal delicado – traduziu a nota. Portanto, agora em português e em inglês, uma foto tremida, pouco nítida, enevoada, embaçada, de uma Nova York que se negou a meus olhos de certa altura que já não existe, mas que continua a puxar nosso olhar para si. É só preciso cuidado para não virarmos estátuas de sal.
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In 1979, at the end of a long trip, I was in an icy New York in the last weeks of November and, to say good-bye to the city and to the wandering life of those months, I decided to climb to the belvedere at the top of the World Trade Center building. The rainy day, wrapped up in mist and cold winds, prevented me from seeing the river with its city below the heights where I was standing. On the following day, uncomfortable at the airport and tired of the uneasy hours of the return trip, I wrote a hasty note about the tour of the day before.
Decades went by, and one day I happened to find the note among some mixed papers. A chill ran through my body, when I realized that my point of observation in New York City does not exist anymore. It fell down due to human folly that, after the first jolts were over, was still capable of engaging in harangues to count and compare the number of victims on both sides of the battlefield. I read the note, I improved a little the broken sentences, and I put it away in silence, without any harangue.
Some more years went by, and I found myself writing a kind of Xmas card to a longtime American friend that was going to spend Xmas holidays in New York with her sister’s family. I really don’t know what made me send her the 1979 note. Maybe just a mutual hug of solidarity amid the dangers of our time. It was a great joy when she answered my message with a delicate Xmas gift – she translated the note. So, now in Portuguese and in English, a blurry, not very clear, misty photo of a New York that refused to open up before my eyes from a certain height no longer extant, but that continues to draw our attention. We must only take care not to become statues of salt.
20 de novembro de 1979
Quis o tempo
Que eu visse a liberdade
Em meio à penumbra,
Uma sombra mal e mal visível
Um pouco mais além rio acima.
Quis meu desejo
Que eu adivinhasse ainda assim
E, lutando com minha vista,
Saudasse do alto do mastro
Com o rosto coberto de sal e água.
Quer a vida
Que, contra o esquecimento,
Meus olhos desenhem o que não vi,
Resquícios de terra à vista
Na névoa à frente de meu barco.
Rosaura Eichenberg
A moment in time
Wanted me to see liberty
In the midst of gloom,
A dark and barely visible shadow
Only a bit further along, upstream.
Desire wanted me,
Even so, to perceive
And, struggling with my vision,
My face covered in water and salt,
To salute it,
From the top of the mast.
Life wants,
To counter oblivion,
That my eyes trace
What I did not see,
Hints of land beyond
The boat’s prow.
Tradução de Sandra Robertson
Sandy Robertson é americana, professora aposentada de literatura espanhola e uma aficionada das letras em qualquer língua, incluindo a portuguesa, que ela está estudando no momento presente. Mora no sudoeste dos Estados Unidos, perto da fronteira mexicana.
I thank Victor Smith, my former classmate at Sidwell Friends School – class of ‘63, for his valuable help.