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Matéria de Capa

A Casa de Boneca

Esta escritora inglesa, nascida na Nova Zelândia, deixou-nos histórias reunidas em três livros publicados em vida – In a German Pension, Bliss, The Garden Party. Depois de sua morte, apareceram mais duas coletâneas de contos – The Dove’s Nest e Something Childish, muitos dos quais inacabados. Mas a incompletude não impede o leitor de desfrutar a arte da escritora.

 

Quando a velha e querida Sra. Hay voltou para a cidade depois de passar um tempo com os Burnell, mandou para as crianças uma casa de boneca. Era tão grande que o carroceiro e Pat a levaram para o pátio, e lá  ficou escorada em duas caixas de madeira ao lado da porta da despensa. Não havia perigo de dano, era verão. E talvez o cheiro de tinta já se tivesse dissipado, quando fosse necessário levá-la para dentro. Porque, realmente, o cheiro de tinta emanado daquela casa de boneca – (“Tão gentil da Sra. Hay,  claro, muito gentil e generoso!”)… Mas o cheiro de tinta era mais do que suficiente para fazer qualquer um ficar seriamente doente, na opinião de Tia Beryl. Mesmo antes de se tirar o saco de embrulho. E quando se tirou…

Lá estava a casa de boneca, um verde espinafre escuro, oleoso, atenuado com amarelo brilhante. Suas duas chaminés pequenas e sólidas, coladas ao telhado, eram pintadas de vermelho e branco, e a porta, brilhando com verniz amarelo, parecia uma lasquinha de puxa-puxa. Quatro janelas, janelas de verdade, tinham as vidraças divididas por uma larga risca verde. Também havia um pórtico diminuto verdadeiro, pintado de amarelo, com grandes grumos de tinta solidificada pendendo ao longo da varanda.

Mas perfeita, uma casinha perfeita! Quem se importaria com o cheiro? Era parte da alegria, parte da novidade.

– Abre depressa… alguém!

O gancho no lado estava bem preso. Pat ergueu-o usando o canivete como alavanca, toda a frente da casa pendeu para trás, e… todos se viram fitando num mesmo momento a sala de estar e a sala de jantar, a cozinha e dois quartos de dormir. É assim que uma casa devia se abrir! Por que todas as casas não se abrem dessa maneira? Tão mais excitante que espiar, pela fresta de uma porta, um pequeno e pobre saguão com um porta-chapéus e dois guarda-chuvas! É isso – não é mesmo? – o  que se deseja saber de uma casa quando se coloca a mão na aldrava. Talvez seja o modo como Deus abre as casas na calada da noite, quando dá uma volta silenciosa com um anjo…

– Oh…Oh! – As crianças Burnell soavam como se estivessem desesperadas. Era muito maravilhoso, era demais para elas. Nunca tinham visto nada parecido em toda a sua vida. Todos os quartos tinham as paredes cobertas de papel. Havia quadros nas paredes, pintados sobre o papel, com molduras douradas e tudo. Um tapete vermelho cobria todos os soalhos com exceção do chão da cozinha; cadeiras de pelúcia vermelha na sala de estar, verdes na sala de jantar, mesas, camas com lençóis de verdade, um berço, um fogão, um armário com pratinhos e uma grande jarra. Mas do que Kezia mais gostou, do que ela gostou de modo espantoso, foi da lâmpada. De pé, no meio da mesa da sala de jantar, uma requintada pequena lâmpada de âmbar com um globo branco. Estava até cheia, toda preparada para ser acesa, embora, é claro, não se pudesse acendê-la. Mas havia algo dentro que parecia óleo e que se movia, se você a sacudia.

Os bonecos pai e mãe, que se estatelavam bem rígidos como se tivessem desmaiado na sala de estar, e as duas criancinhas dormindo no andar de cima eram realmente grandes demais para a casa de boneca. Não tinham o ar de pertencerem a ela. Mas a lâmpada era perfeita. Parecia sorrir a Kezia, dizer: – Eu vivo aqui. A lâmpada era real.

As crianças Burnell mal conseguiam caminhar rápido o bastante na manhã seguinte. Ardiam por contar a todo mundo, descrever,… bem… vangloriar-se de sua casa de boneca antes que o sino da escola soasse.

– Eu é que vou contar – disse Isabel – porque sou a mais velha. Vocês duas podem me ajudar mais tarde. Mas eu é que vou contar primeiro.

Não havia o que responder. Isabel era mandona, mas sempre tinha razão, e Lottie e Kezia conheciam bem demais os poderes associados ao fato de ser a mais velha. Roçavam pelos grossos botões-de-ouro na beira da estrada e não diziam nada.

– E eu é que vou escolher quem vem primeiro para ver. A mãe disse que deixava.

Pois tinha sido combinado que, enquanto a casa de boneca permanecesse no pátio, elas poderiam convidar as meninas da escola, duas de cada vez, para vir dar uma olhada. Não para ficarem para o chá , nem para perambularem pela casa. Mas apenas para ficarem quietas no pátio, enquanto Isabel apontava as belezas, e Lottie e Kezia olhavam satisfeitas…

Mas, por mais que se apressassem, quando conseguiram alcançar a cerca embreada do pátio dos meninos, o sino já  tinha começado a desafinar. Tiveram apenas tempo de tirar depressa os chapéus e entrar na fila, antes que a chamada começasse. Não importa. Isabel tentou compensar o insucesso com uma pose muito importante e misteriosa, murmurando, com a mão sobre a boca, para as meninas perto dela: – Tenho uma coisa para contar no recreio.

A hora do recreio chegou, e Isabel viu-se cercada. As meninas de sua classe quase lutavam para colocar os braços ao redor da sua cintura e sair caminhando com ela, sorrindo cheias de bajulação, querendo ser a sua amiga especial. Ela se deparou com uma grande corte embaixo dos imensos pinheiros no lado do pátio. Cutucando-se, rindo juntas, as menores tentavam chegar perto. E as duas únicas que permaneceram fora do círculo foram as que sempre ficavam de fora, as pequenas Kelvey. Elas tinham aprendido que não deviam aproximar-se das Burnell.

Pois, para falar a verdade, a escola que as crianças Burnell freqüentavam não era de modo algum o colégio que seus pais teriam escolhido, se houvesse outra alternativa. Mas não havia. Era a única escola num raio de quilômetros. Com a conseqüência de que todas as crianças dos arredores, as pequenas do juiz, as filhas do doutor, as crianças do dono da loja, do leiteiro, viam-se forçadas a se misturar. Sem falar também de um igual número de meninos rudes e grosseiros. Mas a linha tinha de ser traçada em algum lugar. Foi traçada nas Kelvey. Muitas crianças, inclusive as Burnell, não tinham nem sequer permissão para falar com elas. Passavam pelas Kelvey com o nariz em pé e, como lançavam a moda em questão de comportamento, todos evitavam as Kelvey. Até a professora tinha uma voz especial para elas, e um sorriso especial para as outras crianças, quando Liz Kelvey chegava até a sua mesa com um ramalhete de flores de aspecto horrivelmente comum.

Eram as filhas de uma pequena lavadeira ativa e trabalhadora que andava de casa em casa durante o dia. Isso já era bastante terrível. Mas onde estava o Sr. Kelvey? Ninguém sabia ao certo. Mas todos diziam que estava na prisão. Assim elas eram as filhas de uma lavadeira e de um presidiário. Muito boa companhia para as crianças das outras famílias! E seu aspecto parecia confirmar essa origem. Difícil compreender por que a Sra. Kelvey as tornava tão espalhafatosas. A verdade era que as vestia com “pedaços” do que ganhava das pessoas para quem trabalhava. Lil, por exemplo, que era uma criança robusta e comum, com grandes sardas, vinha para a escola com um vestido feito de uma toalha de mesa de sarja verde que pertencera aos Burnell, com mangas de pelúcia vermelha tiradas de antigas cortinas dos Logan. Seu chapéu, empoleirado no topo da fronte alta, era o chapéu de uma mulher adulta, outrora propriedade da Srta. Lecky, a moça do correio. Tinha uma parte virada atrás e, como enfeite, uma grande pena escarlate. Que figurinha!  Impossível   deixar de   rir. E sua irmãzinha, a nossa Else, usava um longo vestido branco, que mais parecia uma camisola, e um par de botas de menino. Mas não importa o que a nossa Else usasse, tudo ficaria estranho nela. Era uma pequena criança ossuda, de cabelos tosados e enormes olhos solenes – uma pequena coruja branca. Ninguém jamais a vira sorrir, quase nunca falava. Vivia agarrada em Lil, com um pedaço da saia de Lil torcida na mão. Aonde Lil fosse, a nossa Else ia atrás. No pátio, na estrada indo e vindo da escola, lá estava Lil caminhando à  frente e a nossa Else agarrando-se atrás. Só quando ela queria alguma coisa, ou quando ficava sem ar, é que a nossa Else dava um puxão, um safanão em Lil, e Lil parava e se virava. As Kelvey nunca deixavam de se entender.

Agora permaneciam hesitantes à parte, não se podia impedir que escutassem. Quando as meninas se viravam zombando, Lil, como sempre, esboçava o seu sorriso tolo e envergonhado, mas a nossa Else só olhava.

E a voz de Isabel, tão cheia de orgulho, continuava a contar. O tapete causou uma grande sensação, assim como as camas com lençóis de verdade e o fogão com uma porta no forno.

Quando ela acabou, Kezia se intrometeu: – Você esqueceu a lâmpada, Isabel.

– Oh, sim – disse Isabel – e tem uma lâmpada miudinha, toda feita de vidro amarelo, com um globo branco, em cima da mesa de jantar. Vocês não a distinguiriam de uma real.

– A lâmpada é o melhor de tudo – gritou Kezia. Ela achava que Isabel não estava dando à pequena lâmpada nem metade do seu valor. Mas ninguém prestou atenção. Isabel começava a escolher as duas meninas que iriam voltar com elas naquela tarde, para ver a casa. Escolheu Emmie Cole e Lena Logan. Mas quando as outras ficaram sabendo que todas teriam uma chance, não houve agrado que não fizessem a Isabel. Uma a uma colocavam os braços ao redor da cintura de Isabel e saíam caminhando com ela. Tinham uma coisa a lhe sussurrar, um segredo. – Isabel ‚ “minha” amiga.

Só as pequenas Kelvey afastavam-se esquecidas, não havia mais nada para escutar.

Os dias se passaram e, à medida que mais crianças viam a casa de boneca, a fama desta se espalhava. Tornou-se o único assunto, a mania. A única pergunta que se fazia era: – Você já viu a casa de boneca das Burnell? – Oh, não é encantadora? – Você não viu? Oh, que pena!

Até dedicavam a hora da merenda para falarem dela. As meninas sentavam-se embaixo dos pinheiros comendo os grossos sanduíches de carne de ovelha e grandes fatias de pão de milho cobertas de manteiga. Enquanto isso, como sempre, o mais próximo que conseguiam chegar, sentavam-se as Kelvey, a nossa Else agarrada em Lil, também escutando, enquanto mastigavam os sanduíches de presunto embrulhados num papel de jornal empapado de grandes manchas vermelhas.

– Mãe – disse Kezia – não posso convidar as Kelvey, só uma vez?

– Certamente que não, Kezia.

– Mas por que não?

– Vá embora, Kezia. Você sabe muito bem por que não.

Por fim, todos a tinham visto exceto elas. Nesse dia, o assunto esmoreceu um pouco. Era a hora da merenda. As crianças estavam embaixo dos pinheiros e de repente, enquanto olhavam as Kelvey que comiam os sanduíches embrulhados naquele seu papel, sempre sozinhas, sempre escutando, sentiram vontade de ser más com elas. Emmie Cole começou o boato.

– Lil Kelvey vai ser uma criada quando crescer.

– Oh… Oh, que terrível! – disse Isabel Burnell, fazendo um trejeito com os olhos para Emmie.

Emmie engoliu em seco num modo muito significativo e acenou com a cabeça para Isabel, como tinha visto sua mãe fazer nessas ocasiões.

– É verdade. É verdade. É verdade – disse.

Então os pequenos olhos de Lena Logan fuzilaram. – E se eu perguntar a ela? – sussurrou.

– Aposto como você não pergunta – disse Jessie May.

– Ora, não tenho medo – disse Lena. De súbito, deu um gritinho e dançou na frente das meninas. – Fiquem olhando! Olhem para mim! Olhem para mim agora! – disse Lena. Esgueirando-se, com passos furtivos, arrastando um pé, rindo com a mão sobre a boca, Lena aproximou-se das Kelvey.

Lil levantou os olhos de sua merenda. Embrulhou o resto rapidamente e pôs de lado. A nossa Else parou de mastigar. O que ia acontecer?

– É verdade que você vai ser uma criada quando crescer, Lil Kelvey? – disse Lena com voz estridente.

Silêncio mortal. Mas, em vez de responder, Lil apenas abriu seu sorriso tolo e envergonhado. Ela não parecia se importar nem um pouco com a pergunta. Que malogro para Lena! As meninas começaram a dar risadinhas.

Isso Lena não agüentou. Colocou as mãos nos quadris e disparou. – Seu pai está na prisão! – sibilou com desprezo.

Foi uma coisa tão maravilhosa de ter sido dita que as meninas se afastaram apressadas em grupo, profunda, profundamente excitadas, com uma alegria selvagem. Alguém descobriu uma corda, e elas começaram a pular corda. E nunca pularam tão alto, entraram e saíram da corda tão rapidamente, nem fizeram tantas coisas ousadas como naquela manhã.

À tarde Pat veio buscar as crianças Burnell com a charrete, e elas foram para casa. Havia visita. Isabel e Lottie, que gostavam de visitas, subiram para trocar os aventais. Mas Kezia saiu furtiva pelos fundos. Não havia ninguém por perto. Ela começou a se balançar no grande portão branco do pátio. Foi então que, olhando pela estrada, viu duas pequenas manchas. Tornavam-se maiores, vinham na sua direção. Agora podia ver que uma ia à frente e a outra logo atrás. Logo conseguiu perceber que eram as Kelvey. Kezia parou de se balançar. Escorregou do portão como se fosse sair correndo. Depois hesitou. As Kelvey  chegavam mais perto e ao lado delas caminhavam as suas sombras, muito longas, cruzando toda a estrada, as cabeças nos botões-de-ouro. Kezia trepou de novo no portão, tinha-se decidido, balançou-se para fora.

– Oi – disse para as Kelvey que passavam.

Elas ficaram tão espantadas que pararam. Lil abriu seu sorriso tolo. A nossa Else ficou olhando.

– Vocês podem entrar e ver a nossa casa de boneca, se quiserem – disse Kezia, e ela arrastou a ponta do pé no chão. Mas, ao ouvir isso, Lil tornou-se vermelha e sacudiu a cabeça rapidamente.

– Por que não? – perguntou Kezia.

Lil ficou boquiaberta, depois falou: – Sua mãe disse para a nossa mãe que você não podia falar conosco.

– Oh, bem – disse Kezia. Ela não sabia o que responder. – Não importa. Vocês podem entrar e ver a nossa casa de boneca assim mesmo. Venham. Ninguém está vendo.

Mas Lil sacudiu a cabeça com mais força ainda.

– Vocês não querem? – perguntou Kezia.

De repente houve um safanão, um puxão na saia de Lil. Ela virou-se. A nossa Else a fitava com grandes olhos de súplica, as sobrancelhas franzidas, ela queria ir. Por um momento, Lil ficou olhando para a nossa Else com ar de muita dúvida. Mas então a nossa Else puxou a sua saia de novo. Deu um passo para frente. Kezia indicou o caminho. Como dois gatos perdidos, elas a seguiram pelo pátio até onde estava a casa de boneca.

– Aqui está ela – disse Kezia.

Houve uma pausa, Lil respirava ruidosamente, quase bufava. A nossa Else estava quieta como uma pedra.

– Vou abri-la para vocês – disse Kezia bondosamente. Retirou o gancho, e elas olharam para dentro.

– Aqui é a sala de estar e a sala de jantar, e esta é a…

– Kezia!

Oh, que pulo elas deram!

– Kezia!

Era a voz de Tia Beryl. Viraram-se. Na porta dos fundos estava Tia Beryl, olhando como se não pudesse acreditar no que via.

– Como você ousa trazer as pequenas Kelvey  para o pátio? – disse a voz fria e furiosa. – Você sabe tão bem quanto eu que não pode falar com elas. Vão embora, crianças, vão embora imediatamente. E não voltem mais! – disse Tia Beryl. E ela deu uns passos pelo pátio, enxotando-as como se fossem galinhas.

– Embora, imediatamente! – gritou com frieza e orgulho.

Elas não precisavam de segundo aviso. Ardendo de vergonha, esquivando-se juntas, Lil encolhendo-se como sua mãe, a nossa Else aturdida, deram um jeito de cruzar o grande pátio e passaram espremidas pelo portão branco.

– Menina má e desobediente! – disse Tia Beryl asperamente para Kezia e fechou a casa de boneca com estrondo.

A tarde tinha sido horrível. Chegara uma carta de Willie Brent, uma carta terrível, ameaçadora, dizendo que se ela não fosse encontrar-se com ele naquela noite na taberna de Pulman, ele viria até a porta da frente para saber a razão! Mas agora que ela tinha assustado aquelas ratinhas das Kelvey e passado um bom sabão em Kezia, seu coração sentia-se mais leve. Desaparecera a horrível pressão. Voltou para casa cantarolando.

Quando as Kelvey se viram bem longe do alcance dos Burnell, sentaram-se para descansar num grande cano vermelho de esgoto ao lado da estrada. A face de Lil ainda ardia. Ela tirou o chapéu da pena e ficou segurando-o sobre o joelho. Sonhadoramente, deixaram o olhar passar por cima dos montes de feno, pelo riacho, até os cercados de varas onde as vacas de Logan esperavam para ser ordenhadas. Quais seriam os seus pensamentos?

Então a nossa Else chegou-se com os cotovelos mais para perto da irmã. Ela já tinha esquecido a dama hostil. Estendeu um dedo e acariciou a pena de Lil. Sorriu o seu raro sorriso.

– Eu vi a pequena lâmpada – disse suavemente.

Depois as duas ficaram outra vez em silêncio.

 ***

O conto “A Casa de Boneca” foi publicado em The Dove’s Nest. O cenário desse conto está imbuído da atmosfera de Chesney Wold, Karori, onde a família Beauchamp morou de 1893 a 1898. e onde, em 1894, nasceu seu irmão Leslie Heron Beauchamp.

Tradução de Rosaura Eichenberg


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