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Matéria de Capa

Katherine Mansfield

Fotografia da escritora por volta de 1913, publicada no livro de seu pai , Reminiscences and Recollections, 1937. © Alexander Turnbull Library, Wellington.

Fotografia da escritora por volta de 1913, publicada no livro de seu pai , Reminiscences and Recollections, 1937. © Alexander Turnbull Library, Wellington.

Nos seus contos curtos e elegantes, Katherine Mansfield esmerou-se na arte de sugerir o efêmero, de captar as nuanças. Foi escritora atenta à realidade, mas dessas que gostam de espiar pelas suas frestas. Econômica e sugestiva, sua prosa condensa em cada traço muitas facetas, sensações e sentimentos, de tal modo que, depois de um conto seu, o leitor se pergunta se realmente seria assim tão curto.

Ela escrevia com pinceladas leves como as dos pintores impressionistas, mas imbuídas de um matiz sombrio. Se isso não é uma contradição em termos, uma impressionista trágica. Criava cenas nuançadas de tons coloridos, mas deixando visíveis nas entrelinhas as sombras onde a luz não passa. Ao visitar uma exposição do Pós-Impressionismo em 1910, ela comentou sobre pinturas de Vincent Van Gogh: “Elas me ensinaram algo sobre escrever que era estranho, uma espécie de liberdade – ou melhor, um libertar-se.” Um movimento de sugerir, insinuar, esboçar. Contra o fundo mais escuro que insistia em aparecer, ainda que atenuado pela vivacidade do ritmo da escrita curiosa e irônica.

Katherine Mansfield nasceu e cresceu na Nova Zelândia, quando essa ilha ainda era uma colônia britânica. Com 20 anos quase feitos, migrou para a Inglaterra onde mergulhou na efervescência da vida londrina, exibindo até um ímpeto transgressivo na sua entrega às novas experiências, na sua busca de vida sem entraves. Mas a vida foi lhe cobrando os excessos, e em 1918, pouco antes de completar 30 anos, ela recebeu o diagnóstico de tuberculose, doença ainda sem cura naquela época. Os médicos alertaram para a gravidade de seu mal, afirmando que, mais do que sair da Inglaterra nos meses de inverno, a medida correta seria a internação num sanatório, pois a disciplina era fundamental para a possível cura. Katherine se recusou a procurar um sanatório, pois temia que o modo de vida do lugar viesse a interferir no seu ofício de escrever. Os médicos avisaram que nesse caso ela teria quando muito quatro anos de vida, e, apesar de recorrer a novos tratamentos então em voga, Katherine realmente veio a falecer em janeiro de 1923. A maior parte de sua obra foi escrita nesses quatro anos em que a morte avultava no pano de fundo. Em 17 de novembro de 1919, escreve em seu diário:

“O frio me atemoriza. É tão sinistro. Respiro-o, e lá dentro é como se uma faca pressionasse o meu peito de leve, bem de leve, e dissesse: ‘Não tenha tanta certeza’.”

No início de 1915, Katherine começa a escrever “The Aloe” [“O Aloé”] (que viria a se tornar “Prelude” [“Prelúdio”], conto publicado primeiro pela editora Hogarth Press, de Virginia Woolf, e incluído em Bliss and Other Stories em 1920) recorrendo a suas reminiscências da infância e juventude na Nova Zelândia, veio que passa a explorar cada vez mais, principalmente depois da morte de seu irmão na guerra em outubro de 1915. Os contos em que mergulha nas lembranças do passado estão entre seus textos mais elaborados, e não deixam de ser um modo intenso de enfrentar a sombra da morte infiltrada na sua vida. No final de 1917, ela escreve numa carta a Dorothy Brett:

Você sabe, se a verdade fosse conhecida, que tenho uma verdadeira paixão pela ilha onde nasci. Bem, lembro-me de que, de manhãzinha, sempre sentia que a pequena ilha mergulhara no mar azul escuro durante a noite, para reaparecer à luz do dia, toda dependurada de pequenos objetos reluzentes e gotas cintilantes. (Quando se corria sobre a grama molhada de orvalho, tinha-se realmente a sensação de que os pés sentiam o sal.) E assim como naquelas manhãs névoas brancas e leitosas levantavam-se e deixavam a descoberto alguma beleza, depois abafavam-na de novo para mais uma vez revelá-la, assim tentei suspender esta névoa de meu povo, deixar que fosse visto para depois escondê-lo de novo…”

Outra resposta à espada de Dâmocles que então pendia sobre sua cabeça surge tingida pelo mesmo ímpeto com que ela se atirava à vida. Assim como desafiava a vida, não hesitou em desafiar a morte. Nesse sentido, é comovente o seu diário de 14 de outubro de 1922, quando expressa o desejo de ser… “uma filha do sol”. Era o dia de seu aniversário, mais ainda, era o dia de seu último aniversário, pois ela viria a falecer em janeiro do ano seguinte. Não, essa página de seu diário não é patética, é mais que isso – é trágica. Quando morreu, Katherine encontrava-se em Fontainebleau, no “Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem” de George Gurdjieff. Escreveu ao marido John Middleton Murry pedindo que viesse visitá-la, e durante o encontro quis lhe mostrar o quanto estava se sentindo bem, como havia melhorado. Subiu correndo um lance de escada e teve a hemorragia fatal, vindo a falecer naquela noite de 9 de janeiro de 1923. Uma folha oscilando em meio a ventanias e tempestades, ciosa de seu destino, isto é, do que escrevia com seu movimento.

No seu túmulo, lê-se o epitáfio que escolheu – uma citação da peça Henry IV First Part  de Shakespeare:

Hotspur, reading a letter: …‘but I tell you, my lord fool, out of this nettle, danger, we pluck this flower, safety.’
Hotspur, lendo uma carta: …‘mas vou lhe contar, milorde tolo, desta urtiga, o perigo, colhemos esta flor, a segurança.’

Na sua vida e na sua escrita, a urtiga é presença constante. E a segurança que soube colher está nos traços leves de suas frases, firmes o suficiente para apreender a aventura humana. Ao falar numa carta sobre a experiência da guerra finda no ano anterior, ela expressa o conhecimento que procura captar com seus escritos e o modo como   revelá-lo:

“…É, de certa maneira, um conhecimento trágico: como se, mesmo ao reviver, víssemos a morte diante de nós. Mas através da Vida: aí é que está o principal. Vemos a morte na vida, assim como a enxergamos numa flor que acaba de abrir. Nosso hino é para a beleza da flor; gostaríamos de torná-la imortal, porque sabemos.

“…não pense que com isso eu me refira a “então vamos comer e beber”. Não, para mim significa ‘valores de vasta eternidade’. Mas… eu não poderia sair falando a ninguém a respeito desses valores: eles são o meu segredo. Poderia escrever sobre um menino comendo morangos ou uma mulher penteando o cabelo numa manhã de vento, e esta é a única maneira como posso falar deles. Mas eles têm de estar presentes. Nada mais servirá.”


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