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Prosa

Cultura Chinesa, psicologia e TAIJI QUAN: Transformando o Comportamento

Recanto das Mangueiras – foto de Lillian Meyer

Quem mora no Rio de Janeiro sabe que o Jardim Botânico, criado por D. João VI em 1808, é um recanto do paraíso sobre a terra. E o privilégio ainda é maior para aqueles que têm a oportunidade de aprender e praticar Tai Ji Quan no jardim com o Grupo Art’Chi do professor Estevam Ribeiro.

“Art’Chi consiste num sistema de pesquisa e prática nas artes internas que trabalha com a energia vital e a criatividade, promovendo uma harmonia entre espírito, mente, corpo e ambiente. É ensinado pelos professores do Grupo Art’Chi, que faz parte da ABEC – Associação Brasileira Estilo Chen de Tai Ji. A ABEC tem como principal objetivo o estudo, a pesquisa, a formação e a divulgação do estilo Chen de Tai Ji Quan, seguindo a didática do Grão-Mestre CHEN XIAO WANG.” Maiores informações no site http://www.chenxiaowangbrasil.com.br

Ana Cloe Marrelli é professora do Grupo Art’Chi e estudiosa do Tai Ji Quan e do pensamento e cultura chineses.

 

 

 

O Taiji Quan tornou-se, provavelmente, muito  popular no Ocidente por ser uma  “prática” completa, que proporciona bem-estar físico e mental, sendo muito adequada àqueles que procuram um estilo de vida mais saudável e adaptado ao ritmo contemporâneo. Por isso, muitas pessoas, hoje em dia, buscam  novas ferramentas e outras linguagens que possibilitem uma sensação de maior entendimento e harmonia em suas vidas, reconhecendo a  necessidade constante de transformação pessoal devido às crises pelas quais passa atualmente a nossa sociedade.

O Taiji Quan, como Arte que exercita  não só o corpo, mas o indivíduo como um todo, oferece esta  possibilidade de transformação pessoal, pois é um sistema completo, que oferece tanto uma “filosofia de vida” quanto um “modo prático” para vivê-la!

O  Taiji é uma das mais sofisticadas expressões da Cultura Chinesa. E como representação e expressão desta Cultura, ele condensa, naturalmente, seus mais altos valores,  materializando, por meio de um sistema teórico-prático, séculos de tradição filosófica que estão embutidos em cada forma, em cada gesto, em cada postura, em cada exercício, existindo, portanto, uma relação direta entre  tradição cultural chinesa e os fundamentos do  Taiji Quan.  Esses  fundamentos são, justamente, fontes valiosas para a  transformação do comportamento.

Ao abordarmos esta questão, devemos ser  receptivos e cautelosos, pois trata-se de uma Cultura muito diferente da nossa. A  diferença está na  maneira de conceber, interpretar o mundo, e no próprio “modo de ser chinês”, com seu jeito peculiar de ser, de pensar e relacionar-se com o mundo.

Imediatamente podemos perceber que este modo particular de pensar e conceber parece ser de natureza integradora, circular, espiral, que conjuga, aprofunda, onde a realidade é concebida de forma holográfica.

O Taiji Quan pertence a este “modo holístico” de conceber as coisas, pois o ser humano é sempre percebido em sua relação com o ambiente, possuindo não apenas uma dimensão física, mas também energética  e espiritual:  O corpo, a energia, a mente e o espírito  são realidades indissociáveis dentro do paradigma chinês.

O “modo chinês de pensar” e, consequentemente, todas as atividades desta Cultura baseiam-se numa espécie de raciocínio associativo  que, no Ocidente, denominamos  por “correspondência sistemática ”:  uma espécie de pensamento por correlação, que estabelece ligações entre fenômenos,  acontecimentos, enlaçando Homem e Cosmos.

Esse tipo de  raciocínio  parece  intrínseco a esta Cultura desde seus primórdios: A “Ordem Cósmica” ( Céu ), em seu ciclo infinito, estabelece as estações do ano na Terra, que, por sua vez, estão relacionadas, naturalmente, à época das chuvas,  cultivo, colheita, tendo, também, ampla influência no Homem.  Por exemplo, a Medicina Chinesa estabelece que, para cada estação do ano, há um órgão, uma víscera, uma enfermidade, uma cor, um sabor, um clima, uma direção, uma emoção,  uma qualidade energética, correspondente ou associado. Essas correlações ou associações não são meramente arbitrárias; ao contrário, são baseadas na observação e também na premissa fundamental de que no Universo as coisas correspondem-se pelo simples fato de tenderem à harmonia .

Para elucidar melhor este conceito e termos  noção do quanto este raciocínio é antigo e “fundador”, vamos nos reportar à  Dinastia Shang (1750 -1040 a.C.), cujos Sacerdotes – que também eram chefes dos clãs – perceberam que havia uma ordem cósmica e que esta interferia no mundo natural da Terra, e que também o comportamento humano interagia com estas dimensões. Estas correspondências ou influências mútuas entre  Céu, Terra e Homem selaram as bases do Pensamento Chinês .

Ao longo do tempo, consequentemente, a  produção cultural  foi  sendo aperfeiçoada, principalmente por meio dos Pensadores da Época Han (206 a.C.- 220 d.C). Estes levaram a “correspondência sistemática” ao apogeu, estabelecendo e atribuindo correlações entre todas as manifestações e áreas de conhecimento – Artes em geral, Medicina, Astrologia, organização sócio-política…  Vale lembrar que este pensamento por correlação, cujo princípio aplica-se a qualquer ocasião, está, em última instância, relacionado à conexão primordial, aquela que fundamenta todas as outras: A tríade Céu – Terra – Homem.

O Taiji Quan é uma Arte que reflete claramente este  paradigma integrador, pois cada  “movimento” corporal  foi concebido para ser, necessariamente, um “movimento” mental que é organizado, orquestrado e animado pelo Qi , pela  energia que, por sua vez, compõe e anima todos os processos  físicos e psicológicos.

Quando executamos a postura da “garça branca que abre as asas”, por exemplo, ao intencionarmos fazê-la (ato mental), automática e instantaneamente o  corpo movimenta-se, animado pelo qi. O “caminho” contrário também pode ser feito: ao executarmos a postura, nosso estado mental e energético é alterado, pois a postura física “estimula” estados mentais! Portanto, as correlações entre Mente, Corpo e Energia são naturalmente experimentadas e estimuladas  dentro da prática do Taiji .

Os Orientais perceberam (justamente por causa de sua visão holográfica) que posturas físicas inspiram estados emocionais. E que estados emocionais refletem-se no corpo, pelas posturas,  aparência  e  o  modo como o corpo se movimenta.
Wilhelm Reich , médico e psicanalista austríaco, transcendendo os conceitos freudianos de sua época, foi o grande estudioso das relações entre o funcionamento mental e o corpo físico, desenvolvendo  a noção e a importância do conceito de Qi para a promoção e manutenção da saúde como um todo e, notadamente, da saúde da vida psíquica, no contexto da Psicologia Ocidental.

Essencialmente, pode-se dizer que a pesquisa  reichiana  apontou diretamente para o fato de que alterações no funcionamento psíquico repercutem no corpo, gerando distorções, bloqueios musculares e posturais, que, em última instância, estão intimamente vinculados ao bloqueio do livre fluxo de Energia Vital ( Qi ), gerando inúmeras doenças.

A partir disso, foi possível, para a Psicologia Ocidental, abordar o  Ser Humano por meio do conceito de “realidade bioenergética”, bem mais próximo do paradigma oriental, reconhecendo o elo entre Mente, Corpo e Qi.

Embora  reconheçamos esta realidade bioenergética e o Taiji como disciplina psicossomática, a “mentalidade ocidental” ainda predomina, provocando uma abordagem dissociada e uma percepção limitada da relação estabelecida entre mente, movimento, postura, e como tudo isso repercute diretamente no comportamento, na personalidade e na vida do praticante de Taiji. Por isso, sabemos da importância do estudo sob orientação de um  professor qualificado, com visão ampla de todo o processo que se estabelece com a  prática.

Temos, com o Taiji Quan, uma oportunidade maravilhosa de estabelecer uma outra visão da vida – um tanto incomum para nossa maneira costumeira de lidar com as coisas. Isso porque as Artes Chinesas nos proporcionam vivências e experiências, ampliando nossas possibilidades para além das verbalizações, análises críticas e abstrações. Essa possibilidade de experimentar e vivenciar, que as Artes Chinesas nos proporcionam, se deve ao fato de que os chineses lidam com suas teorias, paradigmas e  premissas básicas de modo bastante objetivo e, portanto, de forma muito prática, parecendo não haver razão, diferentemente do que acontece em nossa Cultura, para discutir teorias pelo simples prazer de criar ou exercitar o intelecto, se estas  não estiverem relacionadas a uma possibilidade prática e concreta de experienciá-las! É preciso poder “vivenciar o que é pensado”, ter a experiência do que algo significa.

Percebemos, portanto, que o paradigma holístico, discutido anteriormente, vai muito além do estabelecimento de associações ou correspondências sistemáticas em termos unicamente teóricos. Porque uma “teoria” vem, necessariamente, acompanhada da possibilidade de ser vivenciada … É mais importante “saber como fazer ” do que “saber que”, no sentido de apenas  conhecer ou entender!

Novamente, será necessário retroceder às origens da Cultura Chinesa para que possamos compreender a gênese desta forma  pragmática e objetiva de estruturar e elaborar o conhecimento. Foi na dinastia Han que a base  deste modo especial de agir e pensar foi solidificado.

Logo após a Era do Imperador Qin (221- 206 a. C.), os eruditos Han começaram a fazer uma reflexão sistemática de, praticamente, todas as áreas do Conhecimento, organizando, comentando, ampliando o conteúdo dos Clássicos (inclusive do I Ching, que naquela época recebeu atenção especial), elaborando, ao máximo, o tipo de raciocínio por correspondência, sempre baseado na relação entre o fenômeno celeste, o mundo natural na Terra e a sociedade humana.

Neste  ínterim, o pensamento de Confúcio (551 – 479 a. C.) foi resgatado, suas idéias começaram a formar um corpo literário, por meio desses estudiosos que  organizaram em textos e em diálogos as citações que lhe eram atribuídas, percebendo o quanto esta forma de pensamento se harmonizava com o contexto que na época se desenhava. Era preciso estabelecer alicerces que pudessem oferecer àquela cultura um forte senso de identidade. Surge, então, o Confucionismo, marcando, para sempre, a mentalidade chinesa . Este objetivo foi atingido, pois até hoje os chineses  intitulam-se “Filhos de Han”.

Continuando a tradição de pensamento que lhe precedia, Confúcio procurou, durante sua vida, um modo de harmonizar o indivíduo à sociedade, que por sua vez estava  submetida à Ordem Celeste.

A relação que conduziria o Homem a esta harmonia deveria ser mediada pelo aprendizado. Para Confúcio, todos podem ser  homens superiores, plenos, bastando para isso disposição genuína para transformar-se e aperfeiçoar-se indefinidamente. Portanto, Confúcio estabeleceu uma relação muito particular, muito especial com o “aprender”, com o Conhecimento.

Esse “aprender” não é apenas um processo intelectual, é uma experiência de vida. Não há um fosso entre os dois, entre a vida do espírito e a do corpo, entre teoria e prática. O aprender é uma experiência que se  “pratica”. O que conta, o que é mais importante, não é tanto o Conhecimento de ordem teórica, mas sim sua “intenção  prática”. O  Conhecimento, portanto, consiste mais no desenvolvimento de uma aptidão, e não tanto na aquisição de um conteúdo intelectual.

Sua proposta, em última instância, consiste mais na importância de “aprender a viver”, pois aprender é “aprender a ser Humano”.

Há, em especial, um pensamento de Confúcio que elucida sua peculiar relação com o aprendizado:

Aprender alguma coisa para poder vivê-la a todo momento, não é isto fonte de grande prazer ?”

Foto - Hans e Lillian Meyer

Ana Cloe praticando a forma da espada – foto de Hans Meyer

O Confucionismo, sedimentado pela dinastia Han, explica, em grande parte, por que os chineses têm uma relação tão concreta e  pragmática com o Conhecimento e com o Pensamento.  O pensamento de Confúcio forneceu a estrutura definitiva para esta forma de viver que integra duas realidades: a realidade mental, subjetiva à realidade concreta, objetiva. O Taiji, como produto da Cultura Chinesa, foi afetado diretamente por este modo de pensar e viver.

Por exemplo, quando procuramos responder à pergunta: “O que é Taiji Quan”, muitas vezes dizemos: “É uma  Arte Chinesa”, ou é “ uma filosofia de vida”, ou ainda “é uma prática que exercita Mente, Corpo e Espírito”… O Taiji Quan é, de fato, tudo isso. Porque ele proporciona um praticar que é ao mesmo tempo físico e ao mesmo tempo filosófico!  O Taiji Quan possui conceitos filosóficos que podem e devem ser vivenciados em termos físicos e energéticos. É preciso praticar para entender sua teoria. Mas também é preciso entender sua teoria e filosofia para poder praticá-lo!

O Taiji nos fornece  uma possibilidade singular de transformação de atitude e comportamento. Ao praticarmos, vamos, sutilmente, incorporando seus conceitos filosóficos e transportando esses conceitos para a vida diária, em forma de atitudes e comportamentos, sem, muitas vezes, termos consciência disso. Ao praticarmos Taiji, temos  a oportunidade de  ter uma  experiência direta do que seja  aquietar-se, pois os movimentos e posturas  foram  projetados para que possamos equilibrar o  fluxo energético, por meio da sincronia, fluidez e padrão circular da movimentação.     Naturalmente, pela prática constante, essas modificações vão atingindo nossa  personalidade, pelo simples fato de “frequentarmos” a harmonia e o equilíbrio, que passam a não ser mais um conceito ou ideal a ser alcançado  por meio do “entendimento” e do “esforço” psicológico. Pois não é preciso  “induzir” a mudança de atitude. Ela se projeta naturalmente na personalidade e na vida do praticante, simplesmente porque há contato direto com o silêncio, com a beleza, com a harmonia  e com a flexibilidade contidas nos movimentos de Taiji Quan .

É muito comum, por exemplo, dependendo, é claro, do que é  buscado com a prática do Taiji, escutarmos um aluno ou colega dizer que percebeu em si mesmo uma mudança interna ou também uma modificação em seu comportamento,  modificação esta até desejada, que ele mesmo não sabe explicar como ocorreu… Bem, podemos deduzir que, justamente por ser o Taiji uma atividade não verbal, e que pertence a uma Cultura diferente da nossa, ele ativa os processos mentais inconscientes, desbloqueando pensamentos e sentimentos estagnados, atingindo diretamente o comportamento e a personalidade. As pessoas muitas vezes relatam que perceberam em si mesmas um aumento da sensibilidade, uma diferença na maneira de lidar com as situações estressantes, sem que, para isso, tivessem que empenhar-se em um trabalho psicológico específico…

O Taiji induz a um estado de maior contato interno e de maior percepção e sensibilidade ao meio e às circunstâncias. Assim o praticante torna-se mais adaptado, reagindo com mais eficácia e menos tensão às situações.

Como o Taiji é uma Arte cujo conceito fundamental é o uso da suavidade e da força interior, em vez do uso da  força bruta, o sujeito tem a oportunidade de realmente entender como a flexibilidade e a força interior podem vencer enormes barreiras, pois tanto o treinamento da forma solo quanto o da forma em dupla (Tui Shou) exigem o exercício constante destes conceitos, que na verdade se transformam em pura técnica e estratégia aplicadas aos movimentos e à atitude psicológica a fim de gerar equilíbrio e harmonia interior. A sensação de quietude  interior, então, naturalmente repercute e avança para além do treinamento, modificando atitudes, reações, transformando o comportamento e alterando a vida do sujeito.

A oportunidade de estar em contato com a beleza, com a harmonia, integrando a Mente à Energia e ao Corpo, dissolve espontaneamente padrões psicológicos que, de outra maneira, necessitariam de árduo trabalho psicológico.

Por isso, afirmamos no início do texto que os chineses têm uma relação integrada e muito prática com questões que envolvem a existência, como “vida”, “saúde”, “felicidade”, “convivência”, porque esses aspectos não são apenas conceitos, que servem meramente de fonte ou alimento para especulações filosóficas ou pesquisas científicas.

É bom comentar que esta relação direta que há entre Teoria e Prática não destitui o Pensamento Chinês da sofisticação que lhe é peculiar, nem o torna facilmente acessível. Sempre encontraremos dificuldades, sejam elas de ordem teórica ou prática. Compreender o conceito “Taiji”, em termos filosóficos, não é tarefa fácil… Praticá-lo, integralmente, também não é! Pois eles estão irremediavelmente interligados.

Este é o aperfeiçoamento da alma que a Cultura Chinesa nos proporciona, através do Taiji, Arte do Silêncio e do Movimento, que requer a construção de um espírito paciente, a fim de se penetrar num universo tão radicalmente diferente do nosso…

 

Ana Cloe Marrelli – Art’chi – Outubro / 2008
Referências Bibliográficas
:

 História do Pensamento Chinês – Anne Cheng, Ed. Vozes, 2008
China – Uma Nova História – John Fairbank / Merle Goldman, Ed. L&PM, 2007
O Pensamento Chinês – Marcel Granet , Ed. Contraponto, 1997
O I Ching , O Livro do Yin e Yang – Cyrille Javary,  Ed. Pensamento, 1989
Os Analectos – Confúcio, Ed. L&PM, 2006


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