Esta escritora inglesa, nascida na Nova Zelândia, deixou-nos histórias reunidas em três livros publicados em vida – In a German Pension, Bliss, The Garden Party. Depois de sua morte, apareceram mais duas coletâneas de contos – The Dove’s Nest e Something Childish, muitos dos quais inacabados. Mas a incompletude não impede o leitor de desfrutar a arte da escritora.
Embora soasse durante todo o ano, embora ecoasse às vezes bem cedo como seis e meia da manhã, às vezes tarde como dez e meia da noite, era na primavera, quando o canteiro de violetas de Bengel, quase junto ao portão, ficava azul de flores, que aquele piano… fazia os passantes não só deixarem de falar, mas diminuírem o passo, pararem, parecerem de repente – se fossem homens – graves, até austeros, e – se mulheres – sonhadoras, até tristonhas.
Tarana Street era bela na primavera; não havia uma única casa sem o seu jardim, árvores e um pedaço de grama largo o suficiente para ser chamado de “gramado”. Por cima das cercas baixas e pintadas, podiam-se ver, ao passar, os narcisos de quem estavam em flor, a orla de anêmonas silvestres de quem murchara e quem tinha os maiores jacintos, tão rosas e brancos, da cor de sorvete de coco. Mas ninguém possuía violetas que cresciam, que exalavam ao sol de primavera como as de Bengel. Elas realmente emanavam aquele perfume? Ou as pessoas fechavam os olhos e encostavam-se sobre a cerca por causa do piano de Edie Bengel?
Uma brisa agita-se entre as folhas como uns dedos joviais procurando as flores mais belas; e o piano soa alegre, terno, risonho. Agora uma nuvem, igual a um cisne, passa pelo sol, as violetas brilham frias como água, e um grito repentino ecoa em pergunta do piano de Edie Bengel.
… Ah, se a vida tem de passar assim rapidamente, por que é tão perfumada a respiração destas flores? Qual o significado desta sensação de ânsia, de doce inquietação – de alegria fugidia? Tchau! Adeus! As jovens abelhas jazem meio acordadas nos esguios dentes-de-leão, de prata são as pétalas em seta, de pontas rosadas, das margaridas; a grama nova treme na luz. Tudo começa de novo, maravilhoso como sempre, divinamente belo. – Deixe-me ficar! Deixe-me ficar! – implora o piano de Edie Bengel.
A tarde, ensolarada e quieta. As persianas, abaixadas na frente para poupar os tapetes, mas no andar de cima as tabuinhas estão abertas, e na luz dourada a pequena Sra. Bengel procura com a mão, embaixo da cama, pela caixa quadrada de chapéus. Está ruborizada. Sente-se tímida, excitada, como uma menina. Agora afasta o papel de seda e tira da caixa o seu melhor chapéu, aquele, enfeitado com uma borboleta preta, que fica guardado bem em cima, e solenemente sopra sobre ele.
Inclinando-se para o espelho, ela o experimenta com mãos que tremem. Puxa o casaco ao redor dos ombros pequenos, pega a bolsa e, antes de sair do quarto, ajoelha-se um momento para pedir a bênção de Deus para as suas “saídas”. E ali ajoelhada tremendo, é ela própria uma borboleta, sacudindo as asas diante de seu Deus. Quando a porta se abre, o som do piano subindo pela casa silenciosa é quase assustador, tão ousada, desafiante e temerariamente ressoa sob os dedos de Edie. E por um momento o pensamento acode à Sra. Bengel, mas logo desaparece, de que há um estranho com Edie na sala de visitas, uma pessoa fantástica, saída de um livro, um… um… vilão. É muito absurdo. Ela adeja pelo vestíbulo, gira a maçaneta da porta e defronta-se com sua ruborizada filha. As mãos de Edie caem do teclado. Aperta-as entre os joelhos, a cabeça inclinada, os cachos caídos para frente. Fita a mãe com os olhos brilhantes. Há algo doloroso nesse olhar, algo muito estranho. Está escuro na sala de visitas, a tampa do piano aberta. Edie tocava de memória; é como se o ar ainda tinisse.
– Vou sair, querida – disse a Sra. Bengel suavemente, tão suavemente que é quase um suspiro.
– Sim, Mãe – veio de Edie.
– Espero não me demorar.
A Sra. Bengel retarda-se. Gostaria muito de uma palavra de simpatia, de compreensão, mesmo de Edie, para animá-la -la a sair.
Mas Edie murmura: – Vou colocar a chaleira no fogo daqui a uma meia hora.
– Ponha, querida! – A Sra. Bengel agarrava-se até a isso. Um pequeno sorriso nervoso passou por seus lábios. – Acho que hei de querer o meu chá .
Mas a isso Edie não dá nenhuma resposta; franze as sobrancelhas, estende a mão, desaparafusa rapidamente um dos candelabros do piano, levanta um anel de porcelana rosa e aparafusa tudo de novo bem apertado. O anel tem chocalhado. Quando a porta da frente bate de leve atrás de sua mãe, Edie e o piano parecem mergulhar juntos em profundas águas escuras, implacáveis as ondas que passam por cima de ambos. Ela continua a tocar desesperadamente até o nariz ficar branco e o coração bater. É a sua maneira de superar o nervosismo e também o seu modo de rezar. Iriam aceitá-la? Teria permissão para ir? Seria possível que dentro de uma semana ela faria parte das meninas da Srta. Farmer, com uma fita azul e vermelha no chapéu, subindo a correr os largos degraus que conduziam à grande casa pintada de cinza que zumbia, que zunia, quando se passava pela frente? O banco deles na igreja ficava à frente das pensionistas da Srta. Farmer. Conheceria por fim os nomes das meninas que fitara tantas vezes? A pequena pálida de cabelos ruivos, a morena de franja, a bonita que segurava a mão da Srta. Farmer durante o sermão?… Mas, afinal de contas…
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Era o décimo quarto aniversário de Edie. O pai lhe deu um broche de prata com uma barra de compasso, duas semínimas, duas colcheias e uma mínima, encabeçadas por uma clave de sol bem retorcida. A mãe lhe deu luvas de cetim azul e duas caixas para luvas e lenços, pintadas à mão, a caixa de luvas com um ramo de rosas douradas amarrando o L maiúsculo e a caixa de lenços com uma borboleta maravilhosamente natural tremulando sobre o outro L maiúsculo. Das tias…
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Havia uma árvore na esquina de Tarana Street com May Street. Crescera tão próxima ao pavimento que os pesados galhos estendiam-se por cima dele, e sobre aquela parte do calçamento havia sempre um chuvisco fino de gravetos diminutos.
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Mas no escuro os namorados, desfilando, entravam na sua sombra como para dentro de uma tenda. Lá, por mais tempo que estivessem juntos, cumprimentavam-se de novo com longos beijos, com abraços que eram doce tortura, agonia para suportar, agonia para terminar.
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Edie nunca soube que Roddie “amava” aquela árvore. Roddie nunca soube que ela tinha algum significado para Edie.
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Roddie, bem arrumado, luzidio de água, fez sua bicicleta nova descer os degraus de madeira e passar pelo portão. Estava de saída, ia dar uma volta e, olhando para aquela árvore, escura no brilho do entardecer, sentiu que ela o observava. Ele queria fazer maravilhas, surpreendê-la, chocá-la, deixá-la pasma.
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Roddie recebeu uma roupa nova para a ocasião. Um terno de sarja preta, uma gravata preta, um chapéu de palha tão branco que era quase prateado, um deslumbrante chapéu de palha com uma larga fita preta. Presa ao chapéu, havia uma tira grossa que de certo modo lembrava uma linha de pescar, e o pequeno fecho na aba parecia uma mosca… Ele ficou de pé ao lado da cova, as pernas abertas, as mãos frouxamente cruzadas, e viu Edie ser baixada para dentro da sepultura – como um menino meio crescido observa alguma coisa, um homem trabalhando, um acidente de bicicleta ou um rapaz limpando a roda de uma carroça – mas, de repente, quando os homens recuaram, teve um violento sobressalto, virou-se, resmungou algo para o pai e saiu correndo, com tanta pressa que as pessoas ficaram com um ar realmente assustado; atravessando o cemitério, seguiu pela avenida de encostas de barro respingado até Tarana Road e partiu a toda velocidade para casa. O terno estava muito apertado e quente. Era como num sonho. Mantinha a cabeça baixa e os punhos cerrados, não conseguia olhar para o alto, nada o teria feito olhar acima das pontas das cercas… Em que pensava enquanto se atirava pelo caminho? Para diante, para diante, até alcançar o portão, subir os degraus, entrar pela porta da frente, passar pelo vestíbulo e chegar à sala de visitas.
– Edie! – chamou Roddie. – Edie, minha velha!
Ele emitiu um som baixo e estranho, gritou “Edie!” e cravou os olhos no piano dela.
Mas frio, solene, como se congelado, o piano lhe devolveu pesadamente o olhar. Depois respondeu, mas em seu próprio nome, em nome da casa e do canteiro de violetas, do jardim, da árvore aveludada na esquina de May Street e de tudo o que fosse maravilhoso: – Não há ninguém aqui com este nome, meu jovem!
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O conto “Coração Fraco” é um dos que ela deixou inacabados. Encontra-se entre os que fazem parte de The Dove’s Nest.
Tradução de Rosaura Eichenberg