a revista » Edição #1 » Matéria de Capa » A Graça da Escrita

Matéria de Capa

A Graça da Escrita

Fernando Eichenberg

 Ao terminar a leitura de um dos contos de Katherine Mansfield, a escritora Virginia Woolf atirou o livro contra a parede e exclamou: “Ela não sabe escrever!”. Era puro ciúme, como assumiu mais tarde: “É a única escrita feminina da qual tive inveja”, disse a autora de Orlando. Já nossa Clarice Lispector certa vez pegou ao acaso um livro de Katherine Mansfield da prateleira de uma livraria, sem saber de quem se tratava. Começou a folhear as páginas ali mesmo, em pé, e não conseguiu parar de ler. Vinicius de Moraes também foi por ela enfeitiçado, e dedicou-lhe mesmo um soneto, em 1937.

O teu perfume, amada – em tuas cartas
Renasce, azul… – são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou… nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!… e a primavera
Vem já tão próxima! …(Nunca te apartas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.

Vinicius de Moraes
Livro de Sonetos, ed. Companhia das Letras, 1991

Nascida Katherine Beauchamp, em 14 de outubro de 1888, em Wellington, na Nova Zelândia, filha de pais ingleses, em 1908 partiu definitivamente para a Europa, sem nunca mais retornar à terra natal. Tive a chance de visitar a casa onde nasceu e viveu até 1893, no número 25 da Tinakori Road, em Wellington. Morada que inspirou alguns de seus belos contos e que se tornou um museu e uma fundação. “Quanto mais eu vivo, mais retorno à Nova Zelândia. Um país jovem é uma herança verdadeira, embora custe tempo recordá-lo. Mas a Nova Zelândia está dentro dos meus próprios ossos”, escreveu numa carta ao pai.

Katherine Mansfield casou duas vezes, sofreu com a perda de um bebê (o que lhe impossibilitou de engravidar novamente) e com a morte do irmão Leslie, viveu nas extremidades da felicidade (“É de manhã. As árvores, além das colinas verdes. Dia tranqüilo e calmo. Meu Deus, como sou feliz!”) e do sofrimento (“Quanto mais sofro, mais sinto-me com uma energia feroz para suportar.”). Era vivaz e audaciosa, até a morte prematura, aos 34 anos, provocada pela tuberculose, em Fointanebleau, na França, onde se refugiara para tratar da doença. Seu diário, em que expõe-se ao sol e à tempestade e luta corajosamente contra o fim anunciado, é um dos mais belos do gênero. E grande parte de sua correspondência revela igualmente uma escrita forte e sensível.

Carta de 14 de outubro de 1922:
Meu espírito está quase morto. Minha fonte de vida, tão faminta que secou. Quase todas as minhas melhoras de saúde são pura farsa – teatro. Que significam? Posso caminhar? Apenas me arrastar. Posso fazer qualquer coisa com as mãos e o corpo? Nada. Sou uma inválida sem esperança alguma. O que é a minha vida? A existência de um parasita. Cinco anos já se passaram, e estou num cativeiro mais estreito do que nunca.
Portanto, se o Grande Lama do Tibet prometeu ajudar – como pode hesitar? Arrisque! Arrisque tudo! Não dê importância à opinião dos outros, àquelas vozes. Faça o mais difícil nesta terra para você. Aja por si mesma. Enfrente a verdade.
Certo, Tchekov não a enfrentou. Sim, mas Tchekov morreu. E sejamos honestos, o que sabemos de Tchecov a partir de suas cartas? Isso foi tudo? É claro que não. Não é de se supor que ele tenha tido uma vida inteira de desejos sobre a qual dificilmente se encontra uma palavra? Leiam-se as últimas cartas. Ele abriu mão da esperança. Eliminando-se os elementos sentimentais dessas cartas finais, elas são terríveis. Não há mais Tchecov. A doença o tragou.
Mas talvez, para as pessoas que não estão doentes, tudo isso seja absurdo. Nunca viajaram por essa estrada. Como podem saber onde é que estou? Tanto mais razão para avançar ousadamente, sozinha. A vida não é simples. Apesar de tudo o que dizemos sobre o mistério da Vida, quando chegamos perto, queremos tratá-lo como se fosse um conto infantil….

Mas, Katherine, o que você quer dizer com saúde? E por que você a deseja?
Resposta: saúde para mim significa poder viver uma vida plena, adulta, viva, de fôlego, em contato íntimo com o que amo – a terra e suas maravilhas – o mar – o sol. Tudo a que nos referimos quando falamos do mundo externo. Quero entrar nele, fazer parte dele, viver nele, aprender com ele, perder tudo o que em mim é superficial e adquirido e tornar-me um ser humano direto e consciente. Quero, compreendendo a mim mesma, compreender os outros. Quero ser tudo o que sou capaz de me tornar, para que possa ser (e aqui parei e esperei, mas não adianta – só há uma expressão possível) uma filha do sol. Sobre ajudar os outros, carregar uma luz e assim por diante, parece falso dizer qualquer palavra. Fiquemos com esta Uma filha do sol.
Depois, quero trabalhar. Em quê? Quero viver de modo a trabalhar com as mãos e o cérebro. Quero um jardim, uma pequena casa, grama, animais, livros, quadros música. E a partir disso tudo, para exprimi-lo, quero escrever.
Mas uma vida quente, ávida, viva ¿ enraizada na vida – para aprender, desejar, saber, sentir, pensar, agir. É o que desejo. Nada menos. É o que tenho de tentar.”

 Algumas Cartas e Trechos do Diário, Katherine Mansfield, ed. Noa Noa, 1988, tradução Rosaura Eichenberg

O sentido para sua vida era a escrita: “Deus seja bendito de nos haver concedido esta graça”, anotou três meses antes de morrer. Sempre buscou escrever sobre coisas simples, de forma simples. E conseguiu. Suas frases são irretocáveis, concisão cristalina, o avesso do ornamento e do supérfluo. Escrita fina sem ser refinada, que toca o fundo sem sair da superfície. Descortina uma festa no jardim, o dia de uma professora de canto, o reencontro de um casal, um sentimento álacre, sem percebermos que o pano está caindo. Para ela, umas poucas folhas de outono balançando ao vento, ainda presas ao galho de um salgueiro, “debatiam-se como peixes fisgados num anzol”.

Sua teoria poética está em parte resumida numa carta ao marido John Middleton Murry, de 16 de novembro de 1919: “Eu poderia escrever sobre um menino comendo morangos ou uma mulher penteando o cabelo numa manhã de vento, e esta é a única maneira em que posso falar deles. Mas eles precisam estar lá. Nada mais servirá”. Um dia depois, confessaria, em outra carta: “Esta é parte terrível de estar perto da morte. Fica-se sabendo que morrer é fácil”.

Seus contos, cartas e diário estão acessíveis em edições brasileiras. A primeira tradução no Brasil, feita por Erico Verissimo, foi publicada pela Editora Globo, em 1941, e seus escritos podem ser encontrados ainda em edições da Revan, Cosac & Naify, Global ou Ediouro.

Poucos sairão incólumes depois de conviver algumas páginas com a prosa de Katherine Mansfield. Provavelmente, o leitor repetirá o gesto de Clarice Lispector em alguma livraria empoeirada.


Copyright 2012 © Todos os direitos reservados à Íbis Literatura & Arte