Poucos anos antes de sua morte em 1940, Scott Fitzgerald publicou um ensaio sobre a crise existencial que então experimentava, a que deu o nome de Crack Up [Colapso]. Nesse texto escreveu:
Bem, quando atingi esse período de silêncio, fui forçado a uma medida que ninguém adota voluntariamente: fui impelido a pensar. Deus, como foi difícil! Era como arrastar grandes baús invisíveis por todo lado. Na primeira parada, em exaustão, eu me perguntei se jamais pensara.
[Crack Up, L&PM 2007, p. 82]
E num ensaio sobre algumas questões de filosofia moral, Hannah Arendt afirma que o ato de pensar, esse diálogo do homem consigo mesmo segundo Sócrates, não é especialmente comum entre os humanos.
Entretanto, apesar de o pensamento, nesse sentido não técnico, não ser certamente prerrogativa de nenhum tipo especial de homens, filósofos ou cientistas etc. – nós o encontramos presente em todas as esferas da vida e podemos descobri-lo inteiramente ausente no que chamamos de intelectuais –, não se pode negar que seja muito menos frequente do que pensava Sócrates, embora se espere que seja um pouquinho mais frequente do que temia Platão.
[Hannah Arendt, Responsabilidade e Julgamento, Companhia das Letras 2004, p. 159]
O interesse pelo modo de pensar humano alimentou o desejo de propiciar uma leitura que guiasse os passos no caminho muitas vezes acidentado da formação do pensamento de cada um. O filósofo Carlos Roberto Cirne Lima teve a generosidade de permitir a apresentação de sua obra – Dialética Para Principiantes [Editora Unisinos, Coleção Ideias 5, 1996] – em partes, como num seriado ou folhetim, para que se tornasse possível um contato lento e refletido com o pensar dos homens na civilização ocidental.
Carlos Roberto Velho Cirne Lima, também referido como Carlos Cirne Lima (Porto Alegre, 1931), é um filósofo dialético contemporâneo brasileiro. Cirne Lima recebeu, em 1958, seu doutorado em Filosofia pela Universidade de Innsbruck na Áustria, e tem lecionado Filosofia em Viena como professor visitante, e em Porto Alegre como professor titular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e UNISINOS. Mais informações em seu site pessoal www.cirnelima.org
PREFÁCIO
Escrevi esta Dialética para principiantes pensando em meus alunos. Escrevi para eles. Fiz um texto voltado para principiantes, Dialectica Ingredientibus, como diria Abelardo. Para aqueles jovens de cara limpa e olhos brilhantes, atentos, lúcidos, sequiosos de aprender, que sabem muito bem que não sabem nada. E que por isso querem aprender. Para eles escrevi este livro, a eles o dedico. Muito justo, aliás. Pois foi com eles, com as perguntas, as discussões e debates com eles que esta Dialética nasceu, cresceu e se consolidou. Não que eu seja autodidata, ou que faça desfeita a meus mestres. Nada disso, tenho na mais alta conta aqueles que foram meus professores. Devo muitíssimo a eles. Mas foi com meus alunos que, neste passar dos anos, aprendi o que agora, com este livro, lhes devolvo.
Principiante é aquele que não sabe nada, ou quase nada. Principiante é quem se dá conta de que não sabe nada. E por isso quer aprender, quer entender as palavras, quer captar o sentido das frases, quer acompanhar a montagem da argumentação. Para eles escrevi. Escrevi em estilo simples e direto, escrevi uma Filosofia singela, sem frescura, sem enfeites, sem ranço acadêmico e sem demonstrações aeróbicas de erudição. As idéias aqui expostas são muito antigas. Há novidades, sim, pois quem faz Filosofia e entra em contenda com as idéias, com as idéias mesmas, sempre descobre alguma novidade. Quando pegamos e levamos adiante a riqueza que herdamos da tradição, esta se revitaliza e cresce. Este trabalho nasceu da grande tradição filosófica. Que ele conduza os leitores de volta aos mestres-pensadores da tradição são os meus votos.
1 O PÁTIO DE HERÁCLITO
1.1 Perguntas iniciais
De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido do mundo e de nossa vida? O universo teve um começo? Terá um fim? Há leis que regem o curso do universo? Estas leis valem também para nós? Podemos desobedecer a estas leis? O que acontece quando desobedecemos a elas? Há recompensa e castigo? Há mesmo ou deve haver? Isso ocorre já durante esta vida ou numa existência após a morte? Pode-se pensar, sem contradição, uma vida eterna, uma existência após a morte? Pode haver um tempo depois que todo tempo acaba? Pode haver um depois após o último e definitivo depois? Afinal, o que somos?
Estas são as perguntas que, desde a Antigüidade, toda pessoa que fica adulta sempre se coloca. Estas são as perguntas que, desde os pré-socráticos, ocupam os filósofos. Filosofia é a tentativa, sempre frustada e sempre de novo retomada, de dar uma resposta racional a essas questões. É isso que agora passamos, neste texto, a desenvolver de forma interativa. Resposta final e definitiva, que responda completamente a todas essas perguntas, não existe. Mais, uma tal resposta completa e acabada em Filosofia é, como veremos, impossível. Mas, assim como muitas perguntas podem ser feitas, muitas respostas podem e devem ser dadas.
1.2 Filosofia é um grande quebra-cabeça
Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, dos princípios que são universalmente válidos e que regem tanto o ser como o pensar. Hoje a Filosofia é muitas vezes pensada como a ciência das justificações racionais últimas, isto é, como fundamento racional de todas as outras ciências. O grande tema da Filosofia é, assim, usando metáfora tirada da Arquitetura, a questão de fundamentação última. É neste sentido que já na Antigüidade Aristóteles fala de Filosofia Primeira. A Filosofia Primeira trata dos primeiros princípios do universo – do ser e do pensar –, princípios estes que são o fundamento racional de todas as demais ciências, como Lógica, Física, Astronomia, Biologia, Ética, Política, Estética etc., que antigamente faziam parte daquela grande e abrangente ciência que então se chamava de Filosofia.
Nada tenho a opor contra a concepção de Filosofia como ciência da fundamentação última. Ela é isso, também. Mas essa metáfora aponta só para um dos núcleos duros daquele todo maior que realmente é a Filosofia. É como se se apontasse aí para um osso nu, descarnado. A imagem do fundamento é meio pobre. Eu pessoalmente prefiro, para caracterizar o que seja Filosofia, outra metáfora, a de um quebra-cabeça. Filosofia é um grande jogo de quebra-cabeça.
No jogo de quebra-cabeça temos que encaixar cada peça com as peças vizinhas, de modo que os contornos de cada uma coincidam com os contornos das peças vizinhas, formando um todo coerente, sem buracos e sem rupturas, e que no final mostra uma imagem. O jogo de quebra-cabeça consiste em inserir peça por peça, uma na outra, com ajuste perfeito de contornos, até que todas as peças estejam corretamente colocadas e a imagem final, coerente e com sentido, fique visível. Se sobrarem peças, o jogo não foi jogado até o fim. Se faltarem peças, o jogo está desfalcado e a imagem final ficará incompleta. Em jogos grandes pode perfeitamente acontecer que consigamos montar pedaços da grande imagem final, cada pedaço com figuras próprias, mas sem a composição final. Se jogarmos até o fim, e se o jogo não estiver desfalcado de peças, todas as peças estarão, então, devidamente encaixadas, não faltarão peças, não sobrarão peças, e a imagem global estará clara e visível.
Fazer Filosofia hoje é como montar um grande quebra-cabeça. As ciências, como a Física, a Química, a Astronomia, a Biologia, a Arqueologia, a História, a Psicologia, a Sociologia, etc., são recortes parciais do grande quebra-cabeça que é a Filosofia, a Ciência Universalíssima. Cada uma das ciências particulares monta o seu pedaço particular, ou seja, cada uma delas trata de algumas figuras. Nenhuma delas se preocupa e se encarrega da composição total do grande mosaico, que é a Filosofia, a razão, o sentido do universo. As ciências particulares trabalham, sim, na montagem do grande jogo de quebra-cabeça, mas cada uma delas se limita a um pequeno pedaço. Fazer Filosofia significa jogar o jogo até o fim, isto é, montar todas as peças, de sorte que se possa ver a imagem global.
E aqui aparece a primeira diferença entre o brinquedo mencionado e a Filosofia. Na Filosofia não temos todas as peças. O universo ainda está em curso, a História não terminou. Muitas coisas, que nem sabemos quais são, estão por vir. O Filósofo não dispõe de todas as peças – o futuro ainda não chegou –, e, assim, o mosaico final sempre estará incompleto. Isso não obstante, é preciso montar o jogo com todas as peças existentes, inclusive o próprio jogador. Cada um de nós, que somos os jogadores concretos, temos que pular para dentro do mosaico final da Filosofia, que é o sentido universal do universo em que vivemos, o sentido último de nossa vida; aí a Filosofia fica existencial. Mas, como a História e a Evolução não terminaram, a imagem que aparece no mosaico, embora global, sempre conterá grandes lacunas. Isso significa que a Filosofia como sistema global do conhecimento é e sempre ficará, enquanto correr o tempo da História, um projeto inconcluso. A Grande Ciência nunca estará completa e acabada, a Filosofia sempre é e continuará sendo apenas Amor à Sabedoria.
Não se pode fazer de conta que as ciências particulares não existam. Não se pode fazer de conta, como alguns Filósofos hoje fazem, que Filosofia seja apenas Filosofia da Linguagem ou Teoria do Conhecimento. Isso também é importante, isso também é parte da Filosofia. Mas Filosofia é mais do que apenas uma Teoria sobre Metalinguagens; Filosofia é a Grande Ciência, que contém dentro de si todas, repito, todas as ciências particulares com suas teorias e suas questões ainda em aberto. Aí surge a pergunta: isso ainda é possível? Hoje, em nosso século, com o incrível e inédito desenvolvimento das ciências particulares, ainda é possível fazer uma Grande Síntese? Claro que é necessário e que é possível. Pois assim como se desenvolveram as ciências particulares, cresceram também os recursos à disposição do Filósofo para, sempre de novo, tentar construir o travejamento básico da Grande Teoria Unificada. É meio vergonhoso, mas devemos admitir que muitos filósofos hoje abandonaram a idéia da Grande Síntese e se contentam com subsistemas parciais; isso significa, porém, que deixaram de fazer verdadeira Filosofia. Com alegria, entretanto, se vê que os Físicos continuam procurando a Grande Teoria Sintética, na qual os subsistemas atualmente trabalhados possam ser integrados. Só que a Grande Síntese é mais do que apenas a conciliação da teoria geral da relatividade com a mecânica quântica. A tarefa programática da Filosofia é ainda mais ampla que a da Física do início do século XXI. A Biologia, a Psicologia, a Sociologia, a História, etc., também têm que entrar nessa teoria sintética que é a Filosofia, pois queremos descobrir quais as leis que são válidas para tudo, para todas as coisas. Essa grande tarefa era chamada antigamente de explicatio mundi. Fazer Filosofia sempre foi e continua sendo fazer a explicação do mundo. Voltaremos ainda muitas vezes a esta palavra, pois com ela se diz realmente tudo o que a Filosofia pode e deve pretender.
1.3 Crítica da razão pós-moderna
Após o colapso intelectual do sistema de Hegel, na segunda metade do século passado, e após o colapso político do marxismo, que é um tipo de hegelianismo de esquerda, em 1989, com a queda do Muro de Berlim e, logo depois, com o esfarelamento da União Soviética, a Filosofia parece ter chegado a um beco sem saída. Ao invés da Grande Síntese temos apenas um grande impasse. A razão, que era ambiciosa e andava sempre à procura da Grande Síntese, a razão una, única e universalíssima, é destruída a golpes de marreta. A Razão, una, única e com letra maiúscula, é declarada morta. A Razão morreu, vivam as múltiplas pequenas razões, as razões das muitas perspectivas diferentes, como diz Nietzsche, as razões dos múltiplos horizontes, como quer Heidegger, as razões dos múltiplos jogos de linguagem, como afirma Wittgenstein. A Razão, una e única, morreu, vivam as múltiplas razões com seus relativismos. Esta a tese do pensamento pós-moderno.
O lado positivo dessa dissolução da razão que era defendida pelo Iluminismo é que ficamos em nosso século mais modestos, mais compreensivos, mais abertos para com as outras culturas, mais tolerantes para com o estrangeiro, mais atentos à alteridade. O particular, inclusive as ciências particulares, progridem imensamente. Até a Lógica, que era antes una, única, no singular e com letra maiúscula, ou seja, a Lógica de Aristóteles e dos mestres pensadores da Idade Média, transforma-se. Hoje temos, ao lado da lógica aristotélica, escrita em letra minúscula, muitas outras lógicas. Hoje falamos de lógicas no plural e com letra minúscula. Isso que ocorreu com a Lógica aconteceu também com a Razão como um todo. Ao invés da Razão, temos hoje as múltiplas razões, no plural e com letra minúscula.
A razão pós-moderna põe um subsistema ao lado de outro subsistema, e mais outro, e ainda mais outro, sempre um ao lado do outro, sem uma unidade mais alta e mais ampla, que os abranja; os interstícios entre os vários subsistemas ficam vazios. A razão pós-moderna nega a existência de princípios ou leis que sejam universalíssimos, que interliguem os diversos subsistemas, ou seja, que sejam válidos sempre, em todos os âmbitos, em todos os interstícios e para todas as coisas. Mais, ela diz que – a rigor – não há proposição que seja universalmente válida.
Ora, quem faz tal afirmação, ao dizer, se desdiz. Tal afirmação é uma contradição em si mesma, ela detona uma implosão lógica. – Vejamos o que ocorre em outro exemplo, mais simples. Tomemos a proposição Não existe nenhuma proposição verdadeira. Quem afirma uma tal coisa está implicitamente dizendo Não existe nenhuma proposição que seja verdadeira, exceto esta mesma que agora estou dizendo. Assim, a exceção implicitamente feita desmente a universalidade daquilo que foi afirmado: não é verdade que todas as proposições sejam falsas, eis que pelo menos esta, que está sendo afirmada, está sendo afirmada como sendo verdadeira. Assim também ocorre com a proposição pós-moderna Não há nenhuma proposição que perpasse todos os subsistemas; ao dizer e afirmar isso, estamos dizendo que ao menos essa proposição é válida para todos os subsistemas. É o mesmo que ocorre em sala de aula, quando o professor reclama das conversas e Joãozinho diz: Professor, não tem ninguém falando. Ao falar e dizer isto, Joãozinho desmente exatamente o que está dizendo. É por isso que a razão pós-moderna é boa, sim, enquanto respeito para com a alteridade e apreço pela diversidade, é péssima, entretanto, como substituto da razão universalmente válida. Ela não pode ser universalizada; se o fazemos, ela se detona. Este é o motivo por que uma Filosofia pós-moderna, neste sentido, não existe e nunca existirá. Quem quiser fazer Filosofia à maneira da razão pós-moderna, justapondo subsistemas, sem jamais fazer uma teoria, por mínima que seja, abrangente, está fadado ao insucesso da autocontradição. Meu amigo Habermas me perdoe, mas não dá: implode. Fica com isso demonstrado que se pode voltar a uma razão una, única e universalíssima. Ela pode consistir de poucas regras e princípios; talvez ela consista de um único princípio, mas que uma tal razão existe, existe. Quem o negar se detona e entra em autocontradição. A explicação do mundo pode ser, talvez, minimalista. Mas que ela é possível, é.
O lado mais negativo da razão pós-moderna é o lixo que se acumula nos interstícios entre os diversos subsistemas. É para aí, para esses interstícios vazios, que varremos as contradições e os problemas mal resolvidos. Entre um subsistema e outro fica o lixo da razão. As teorias particulares, articuladas somente como subsistemas, permitem que entre um subsistema e outro brotem e vicejem os maiores absurdos. As contradições não foram resolvidas, foram apenas varridas. E isto não basta. É preciso pensar tanto a multiplicidade como também a unidade. Sem unidade a multiplicidade entra, como vimos, em contradição. Multiplicidade na Unidade, Unidade na Multiplicidade – é preciso conciliar ambos os pólos igualmente legítimos e necessários. É preciso repensar tanto Parmênides como também Heráclito.
1.4 A esfera de Parmênides
Parmênides, um dos grandes pensadores da Filosofia pré-socrática, foi de certo modo o precursor da razão pós-moderna. Ele contrapõe, um ao outro, dois grandes subsistemas: o ser realmente real e a doxa, a mera aparência. Parmênides diz que a realidade realmente real é apenas o ser imóvel, o que é puro repouso, sem nenhum movimento. Este ser imóvel e imutável é simbolizado pela esfera que não tem limites, onde o dedo corre sem nunca chegar a um começo ou a um fim. E as coisas deste mundo, que estão em movimento, que se movem, que nascem e morrem, bem, estas coisas, declara Parmênides, não são uma realidade realmente real, elas são uma doxa, uma mera aparência, sob a qual não há um ser realmente real. As aparências enganam. De um lado, o subsistema do ser realmente real; de outro lado, o subsistema das aparências. Mas Parmênides não é um pós-moderno. Ele foi mais radical, sacrificou todas as aparências, as múltiplas coisas deste mundo em que vivemos, no altar de uma racionalidade exacerbada, de um Logos uno, único, imóvel, imutável, infinito. O que é, diz Parmênides, é. O que não é não é. E o que não é não é nada, não significa nada e não faz nada. O não-ser não existe, ele não pode nem mesmo ser pensado.
Movimento é sempre a passagem do ser para o não-ser, ou seja, o perecer. Ou então, a passagem do não-ser para o ser, isto é, o nascer. Ora, como o não-ser não existe, como ele não é nada, não há passagem para o não-ser. Não há, por igual, passagem a partir do não-ser; do não-ser não pode sair nada. Isso significa que não há perecimento nem nascimento. Perecer e nascer são ilusões, são meras aparências. Pois, pela lógica, o não-ser não é nada. E tudo aquilo que o não-ser determina está sendo determinado como sendo nada, isto é, não é nada, é pura ilusão. Logo, argumenta Parmênides, não existe movimento. E, se pensamos que algo está em movimento, trata-se de uma ilusão.
Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, para demonstrar o que ele pensava ser a impossibilidade lógica do movimento, traz o exemplo da corrida entre Aquiles e a tartaruga e o exemplo da flecha parada. Aquiles aposta uma corrida com uma tartaruga. Como Aquiles é um grande herói e exímio corredor, a tartaruga pede dez metros de vantagem. Aquiles concorda, e a corrida começa. Reparem, afirma Zenão, como o movimento é algo contraditório, reparem que Aquiles não vai conseguir ganhar. Basta pensar. Pois antes de percorrer a distância que o separa da tartaruga, Aquiles deve percorrer a metade dessa distância. E antes de percorrer essa metade, ele tem que percorrer a metade dessa metade. E antes de cruzar a metade dessa metade, ele tem que percorrer a metade dessa metade. E assim por diante. Como a quantidade é infinitamente divisível e sempre há uma nova metade da metade, conclui-se que Aquiles não avança um passo, não consegue reconquistar a vantagem e, assim, perde a corrida para a tartaruga. Por quê? Porque o movimento, diz Zenão, é contraditório, ele não pode ser pensado até o fim sem que surja uma contradição insolúvel. – O mesmo raciocínio é aplicado à flecha disparada pelo arqueiro contra um alvo qualquer. A flecha, tendo que percorrer as infinitas metades da metade, fica parada. A flecha parada e a corrida de Aquiles com a tartaruga demonstram, pensa Zenão, a tese de Parmênides de que o movimento é impossível e que, por isso, temos que nos ater somente ao ser uno, único, infinito e sem movimento que é o ser que realmente é. Eis a esfera de Parmênides.
Parmênides, o grande pensador do ser uno, único e imutável, é, apesar desse grande erro, o pai intelectual de toda a verdadeira Filosofia, pois foi ele que primeiro pensou tão a sério a unidade da razão e do ser. Tudo é o Uno. O Todo e o Uno, Hen kai Pan, são o começo e o fim de toda a Filosofia, de toda a ciência que se queira e entenda como a Grande Síntese. O erro que cometeu, visível para todos, é não ter levado igualmente a sério o momento da diversidade e do movimento. Ele não conseguiu pensar o não-ser como algo que de certo modo é. Parmênides tem o Todo e o Uno, falta-lhe o movimento que em tudo flui. Falta Heráclito.
1.5 O pátio de Heráclito
Segundo Heráclito, tudo flui, Panta Rei, tudo está em constante fluir, tudo é movimento. A realidade realmente real não é a esfera imóvel e imutável, sem limites, dos Eleatas, mas sim o movimento que, sem jamais cessar, sempre de novo começa. Não há começo e não há fim, nisso Heráclito concorda com Parmênides, mas não porque não exista movimento, e sim porque tudo está sempre em constante transformação. O que para os Eleatas era doxa, mera aparência e ilusão, agora é a própria realidade realmente real.
A realidade não é apenas Ser, ela não é, por igual, apenas Não-Ser. A realidade realmente real é uma tensão que liga e concilia Ser e Não-Ser. Aparece aqui, pela primeira vez na História da Filosofia, a Dialética. Ser e Não-Ser, tese e antítese, são conciliados, num plano mais alto, através de uma síntese. Ser e Não-Ser, que à primeira vista se opõem e se excluem, na realidade realmente real constituem uma unidade sintética, que é o Ser em Movimento, o Devir. No Devir existe um elemento que é o Ser, mas existe por igual um outro elemento igualmente essencial que é o Não-Ser. Ser e Não-Ser, bem misturados, não mais se repelem e se excluem, mas entram em amálgama e se fundem para constituir uma nova realidade.
Temos aí, já em Heráclito, os traços fundamentais da Dialética. Numa primeira etapa temos dois pólos contrários que se excluem mutuamente. Tese e antítese se contrapõem, uma contra a outra, uma excluindo a outra. Nesta primeira etapa um pólo anula e liquida o outro, eles são excludentes. Só que a coisa não pára aí. Há um movimento, há um desenvolvimento, há um progresso. E então, nessa segunda etapa, os pólos se conciliam e se unificam, constituindo, num patamar mais alto, uma nova unidade.
A lira, o instrumento musical dos antigos gregos, serve de exemplo a Heráclito. A lira se compõe de um arco e das cordas. Quem quer construir uma lira pega uma peça de madeira apropriada e a verga, formando um arco. Só que o arco, deixado solto, volta à sua forma retilínea. Para manter o arco vergado, é preciso amarrá-lo com uma corda, ou com várias cordas. O arco e a corda, nessa primeira etapa, estão em tensão, um contra o outro. O arco quer rebentar a corda, a corda quer vergar o arco. Essa oposição, que existe nessa primeira etapa da Dialética, se e quando devidamente dosada, faz surgir algo completamente novo, algo maravilhoso: a música. A tensão existente na primeira etapa, o arco contra a corda, a corda contra o arco, cede o lugar à síntese que é a música, ou antes, com letra maiúscula, a Música, que é uma das nove Deusas que regem e inspiram as Artes. Na primeira etapa há oposição excludente e conflito; na segunda etapa, conciliação sintetizante que faz surgir algo de novo, mais alto, mais complexo, mais nobre.
Um dos mais belos exemplos de Dialética, muito conhecido na Antigüidade, mas raramente mencionado hoje em dia, é o movimento de fílesis, antifílesis e filía, ou seja, o movimento dialético que leva de um amor inicial, que propõe e pergunta, passando pelo amor que, perguntado, responde afirmativamente, para chegar ao amor que, amando, se sabe correspondido, amor este que, sendo sintético, não é mais exclusividade de um ou de outro dos amantes, e sim unidade de ambos. Os gregos chamavam isso de filía, amizade.
O amor tem começo. Alguém tem que começar. O começo é um ato estritamente unilateral e sempre arriscado. Não se sabe, de antemão, como o outro, ou a outra, vai reagir e o que vai responder. Este ato unilateral e arriscado é chamado em grego de fílesis. Páris ama Helena. Páris ama e sabe que ama; Helena percebe o convite feito, mas ainda não se decide. – O outro, ou a outra, pode responder que sim, como pode também responder que não. Isso de início está em aberto e é contingente. Se o outro, a outra, porém, responder que sim, então temos uma antifílesis, que também é um ato unilateral, mas não é mais um ato arriscado, pois não é mais só uma pergunta e só um convite, e sim uma resposta e a aceitação de um convite já feito. Helena decide-se a aceitar o amor de Páris e o ama de volta. Este amor de volta é a antifílesis. Fílesis e antifílesis são, ambos, atos unilaterais; fílesis contém risco, e antifílesis não. Trata-se de dois atos independentes, completos e acabados, um diferente do outro, um em oposição relativa ao outro; um é tese, o outro é antítese. Mas quando ambos se cruzam e, num plano mais alto, se fundem numa única realidade mais complexa, mais alta e mais nobre, então temos filía. Na filía, os dois pólos inicialmente diferentes e opostos, um que pergunta e outro que responde, se fundem, formando um amálgama, algo de novo. Na filía, ambos os amores individuais deixam de ser atos unilaterais e transformam-se num único ato, que é bilateral, no qual não importa mais quem pergunta e quem responde, pois ambos os amores iniciais perderam seu caráter individual, o Eu e o Tu, para se unificar como algo de novo, o Nós. Páris e Helena, ao se amarem, primeiro se perdem. Pois o sentido de toda a existência passa a residir no outro. É o outro que realiza o sentido da vida, é o outro, a pessoa amada, que é o centro do universo. Páris ama perdidamente Helena. Páris primeiro se perde: quem ama vive se perdendo. Mas, como Helena ama Páris de volta, o sentido do universo perfaz um círculo completo e retorna a Páris, que, agora profundamente enriquecido, se sabe novamente cheio de sentido e de vida. Só que esta nova vida e este novo sentido do universo não são um ato unilateral só dele, e sim um ato conjunto, um ato bilateral, um ato em que o Eu foi mediado através do Tu para constituir um Nós. É por isso que o amor de amizade, filía, é tão forte e tão precioso. É por isso que gregos e troianos lutaram por tantos anos. É por isso, somente por amor de amizade, que Aquiles, Ulisses e Agamemnon, os pastores de povos, conduzem os gregos com suas naves curvas para a interminável guerra. É só por isso que os troianos, chefiados por Heitor, lutam até morrer. Tudo só por causa de uma mulher, diz Homero na Ilíada. Tudo só por causa da filía, que transcende os indivíduos e se constitui em síntese mais alta e mais forte. Amor aí vira História. A História de gregos e troianos, a Ilíada e a Odisséia, os começos de nossa civilização.
Tese e antítese são, na primeira etapa, pólos opostos que se repelem e se excluem. Numa segunda etapa, ambos se unificam numa síntese que é algo mais alto e mais nobre. Na síntese, dirá Hegel muito mais tarde, os pólos iniciais estão superados e guardados (Aufheben). Por um lado, eles estão superados, pois perderam algumas de suas características. No exemplo do amor de amizade, o caráter de unilateralidade e o de risco são superados e, assim, desaparecem. Mas, pelo outro lado, os pólos estão guardados na síntese, pois o cerne positivo, que já estava neles, continua sendo conservado. O amor, ao deixar de ser ato unilateral, fica mais amor ainda, fica um amor mais alto e mais nobre. Tese, antítese e síntese constituem aquilo que os filósofos gregos chamam de jogo dos opostos. Eis o começo e a raiz da Dialética.
Heráclito, o pai da Dialética, diz que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio. O rio não é o mesmo, nós não somos os mesmos. Tudo está em movimento, é o movimento que é a realidade realmente real. A realidade, ensina, constitui-se dialeticamente através do jogo dos opostos. No começo, tudo é luta e guerra, pois os opostos se opõem e se excluem: Pólemos patér pánton, A luta é o começo de tudo. Mas depois há, muitas vezes, uma síntese conciliadora que faz nascer algo de novo, mais complexo, mais alto, mais nobre.
No jogo de opostos, nem sempre surge um resultado positivo. Muitas vezes, o que ocorre é só morte e destruição. Os pólos opostos nesse caso atuam só como agentes destrutivos. O primeiro anula o segundo, ou vice-versa, ou ambos se anulam mutuamente. Aí não surge síntese, aí não se faz Dialética.
Percebe-se, de imediato, que a grande questão, para que se possa compreender o universo, passa a ser a Síntese. Quando e por que há síntese? Que existam sínteses no universo é claro. Vê-se, basta olhar o cosmos. Mas a pergunta é: por que às vezes há síntese, às vezes não? Quem descobrir isso descobrirá a resposta à pergunta sobre a harmonia no universo, que é um cosmos ordenado. A pergunta central de toda a Filosofia, Ciência da Grande Síntese, é: por que os opostos às vezes se excluem, às vezes se conciliam?
É entre Parmênides e Heráclito que se abre o espaço em que, desde então, se faz Filosofia. Parmênides, dizendo que Tudo é o Uno, fornece o elemento do Logos universal que abrange tudo; Heráclito, dizendo que Tudo flui, que tudo é movimento de pólos opostos, fornece o elemento da Dialética. Hen kai Pan e Panta Rei, O Todo e o Uno e Tudo flui são, desde então, lemas de toda e qualquer Filosofia. É por isso que num pátio que se queira simbólico de nossa Filosofia ocidental tem que haver, em seu ponto central, uma esfera de pedra, uma esfera que remeta ao Ser-Uno de Parmênides. Mas, como a filosofia de Parmênides tem que ser balizada e corrigida pela de Heráclito, é preciso que esta esfera esteja em perpétuo movimento de fluir. Água tem que brotar dela, como de uma fonte, para que a esfera, envolta pelo fluir da água, seja o símbolo da Grande Síntese entre Repouso e Movimento, entre Totalidade e Dialética.