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Para a Honorável Dorothy Brett [11 de outubro de 1917 – Londres]

…Acho maravilhoso que você esteja agora pintando Naturezas Mortas. O que se pode fazer diante desta extraordinária confusão de frutas redondas e brilhantes, senão juntá-las e brincar com elas – e como que transformar-se nelas? Quando passo por uma barraca de maçãs, não posso deixar de ficar olhando, até sentir que eu também me torno uma maçã, e que a qualquer momento serei capaz de tirar milagrosamente uma maçã de meu próprio ser, assim como o mágico faz surgir o ovo… Quando você pinta maçãs, não sente que seus joelhos e seios também se tornam maçãs? Ou você acha tudo isso o maior absurdo? Não penso assim. Tenho certeza de que não é. Quando escrevo sobre patos, juro que sou um pato branco de olho redondo, nadando num lago com flores amarelas na orla e de vez em quando arremetendo contra o outro pato de olho redondo que, de cabeça para baixo, nada sob mim… De fato, todo o processo de se tornar o pato (o que Lawrence chamaria talvez essa consumação no pato ou na maçã!) é tão excitante que mal respiro, só de pensar. Pois, embora seja até onde a maioria das pessoas consegue chegar, é realmente apenas o “prelúdio”. Segue-se depois o momento em que você é mais pato, mais maçã ou mais Natasha que qualquer um desses objetos poderia ser, e então você os cria de novo.

Brett (desligando o instrumento [o aparelho de surdez de Brett]): “Katherine, por favor pare, eu lhe peço. Deve falar-nos a esse respeito na Igreja da Fraternidade numa tarde de domingo.”

K.: “Perdoe-me, mas é por isso que também acredito na técnica. (Você me perguntou se eu acreditava.) Sim, exatamente porque não vejo como a arte vai dar esse pulo divino para dentro dos contornos que limitam as coisas, se não passou pelo processo de tentar tornar-se esses seres antes de recriá-los.”

Deixei sua carta sem resposta por mais dias do que teria desejado. Mas não pense que foi só porque sou negligente e infiel. Não, realmente não. Gostei de ficar em silêncio com a carta, assim como se tem prazer em caminhar em silêncio com outra pessoa, até chegar o momento em que você se vira, estende a mão e fala.

Atirei meu querido aos Wolves [Wolves = lobos. Trocadilho referente a Leonard e Virginia Woolf, que publicavam “Prelude”], e eles o comeram e serviram-me tantos elogios numa taça dourada que não pude deixar de me sentir gratificada. Pensei que não fossem gostar nem um pouco, e ainda estou surpreendida de que tenham gostado.

“Qual é a sua forma?” você pergunta. Ah, Brett, é tão difícil dizer. Pelo que sei, é mais ou menos uma invenção minha. “Como a modelei?” O máximo que posso dizer a respeito é o seguinte. Você sabe, se a verdade fosse conhecida, que tenho uma verdadeira paixão pela ilha onde nasci. Bem, lembro-me de que, de manhãzinha, sempre sentia que a pequena ilha mergulhara no mar azul escuro durante a noite, para reaparecer à luz do dia, toda dependurada de pequenos objetos reluzentes e gotas cintilantes. (Quando se corria sobre a grama molhada de orvalho, tinha-se realmente a sensação de que os pés sentiam o sal.) Tentei captar esse momento – com um pouco do seu brilho e sabor. E assim como naquelas manhãs névoas brancas e leitosas levantavam-se e deixavam a descoberto alguma beleza, depois abafavam-na de novo para mais uma vez revelá-la, assim tentei suspender esta névoa de meu povo, deixar que fosse visto para depois escondê-lo de novo… É tão difícil escrever tudo isso, e talvez soe vão e ambicioso demais. Mas não sinto nada tão intensamente quanto este desejo de servir o meu tema da melhor maneira possível.

A emoção imperdoável e indizível da arte! O que há que se lhe possa comparar? O que mais podemos desejar? Para mim, não se trata de manter o fogo da lareira aceso. Trata-se de manter o fogo da lareira a uma chama respeitável, razoavelmente  baixa. Se você não vier me visitar logo, não haverá nada mais que um monte de cinzas e duas penas cruzadas sobre ele.


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